quinta-feira, 30 de junho de 2016

MINHA MÃE NO CINEMA



Fabrício Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi

Todos os filmes que a minha mãe assiste eu não vejo mais. O complicador é que ela é cinéfila, frequenta o cinema três vezes por semana. Não sobram muitas alternativas do que está em cartaz.
Não tem graça. Minha mãe é o spoiler em pessoa. Não se restringe a evidenciar a sinopse do filme, sempre conta o final. Sua recomendação é um atestado de óbito cinematográfico. Transforma o roteiro em fofoca. Já estabelece a dica categorizando de que “não posso perder o filme porque a última cena é antológica”.

Preciso evitar conversar com ela no final de semana. O telefone toca na sexta e não atendo. Óbvio que vai expor o conteúdo dos lançamentos. Levanto o gancho de novo somente na segunda-feira.
Não é excesso de cautela. Ela entregou Os outros, O sexto sentido e O segredo dos seus olhos – assassinou estas obras de modo imperdoável.

Tampouco posso convidá-la a me acompanhar nas sessões, o que seria uma saída honrosa para não arcar com a sua prodigiosa antecipação. Não há como conviver, pois ela conversa descaradamente durante os filmes. Mas não é um sussurro no ouvido, não é um cochicho discreto: conversa alto, descreve o que pode acontecer, expressa verbalmente as suas reações. “Olha que lindo!". "Não acredito que foi ele que matou”. “Era o que faltava!”.

É uma narração de futebol ao vivo, mais estridente do que o saco de pipoca ou o canudo do refrigerante. Perfura o silêncio da sala escura como se estivesse de papo em casa vendo televisão.
Acredita que é uma transmissão ao vivo. Deve sofrer daquele caso grave de responder ao boa-noite dos apresentadores do Jornal Nacional.

Além disso, ela aplaude o filme ou vaia, dependendo da cotação passional. Já a observei de pé sozinha numa sala lotada gritando Bravo!. Procurei me dobrar com o assento da poltrona. Jura que o diretor e os atores estão presentes naquele momento para testemunhar a sua comoção.
Desisti de explicar que revelar o fim frustra as expectativas, condiciona o meu olhar e que não é um gesto educado. Ela rebate que é implicância de minha parte e que não faz diferença saber antes ou depois, que dá no mesmo.

Mãe a gente não muda, só se acostuma.

Publicado no site Vida Breve
Coluna Semanal
29.06.2016

terça-feira, 28 de junho de 2016

FRANCESCA

Não quero vê-la sofrendo, minha irmãzinha. Eu assumiria o seu lugar e me colocaria como escudo de suas dores, espuma de sua raiva. Mas não há como: a dor é uma ilha rodeada pelo oceano de lembranças absolutamente pessoais.

Não acharei conselho para afastar os maus pressentimentos e a sensação de ter vivido à toa. A separação é cruel de qualquer jeito, para os fortes e fracos, para os corajosos e covardes, é fazer nascer a própria velhice, tolerar a perspectiva assustadora de ficar sozinha e envelhecer sozinha, sem ajuda de parteira. É esvaziar a casa para descobrir o que ainda é seu. É colocar para fora do ventre alguém que já é grande demais para o nosso corpo. Leva tempo, só não quero que leve o seu riso ingênuo e a sua vontade de amar de novo.

Que não morra no parto da separação. Muitos ficam viúvos dos filhos que não tiveram, dos sonhos que não cumpriram, das viagens que não decolaram.

Não sei como convencê-la de que você é belíssima. Não existe colo que restaure a vaidade. Não enxerga o seu brilho porque se acostumou a se enxergar pelos olhos de quem foi embora e apenas mantém à frente uma imagem distorcida de sua estatura, impregnada de carência, pequeneza e orgulho ferido.

O que posso dizer é: amarre a sua sapatilha, que enfrentará o seu mais complicado salto, saltar sobre si.

Você é uma bailarina acostumada a torcer o calcanhar pela obediência acrobática do voo. Quantas vezes quebrou o pé e seguiu dançando mesmo assim? Voar é segurar o corpo com as mãos. Não pense no sofrimento, pense em terminar os movimentos: tendu, jenté, rond de jambé, grand battement...

Um de cada vez, esqueça a ferida, siga a elasticidade do gesto, complete a coreografia, este quebra-cabeça feito de pesada leveza. Às vezes não dá para andar, mas dá para dançar. É dançando que não doemos.

Não contará com a parceria para o pas de deux, apoie-se em sua respiração, nos seus projetos, não deixe os dias livres e vazios para esperar uma reconciliação que não virá, senão vai cair, crie o seu apoio. Será agora o passo de um. Terá que flutuar no palco com o terceiro pé da persistência. Espante as dúvidas e incertezas, não é momento de vacilar, um espetáculo a aguarda, permita o que aprendeu nas barras vir à tona, o músculo é o nosso melhor conselheiro, atenda aos pedidos do corpo que não cansa de levantar toda manhã apesar dos pesares.

Estarei no fundo do público, naquela cadeira que reservou para mim, com os dedos estirados em sua direção, prontos a disparar aplausos. Você não cai, minha bailarina, você muda o chão com os seus passos.

Publicado no Jornal Zero Hora
Coluna Semanal
28.06.2016

segunda-feira, 27 de junho de 2016

SOU UM HOMEM DE RÁDIO



Texto Fabrício Carpinejar
Foto Diego Vara

Eu me arrepio quando vou ao estádio e vejo alguém com radinho de pilha grudado na orelha. Nenhuma tecnologia, nenhum fone, nenhum Wi-Fi do celular, com o radinho mesmo, do tamanho de um tijolo, carregado até a cabeça.

Lembro de meu pai.

O meu pai com o seu radio velho ajeitando a antena de um lado para o outro, mexendo no dial com a precisão de um cofre. Ele levantava um haltere permanentemente com seu braço esquerdo. Não praguejava o incômodo. Colocava o volume ao máximo, feliz com seu aparelho de estimação, aquele que, acreditava, se esquecesse em casa, seu time perderia o jogo.

Havia sempre uma arte de estar em dois lugares ao mesmo tempo, sintonizado na narração e também atento aos sons de ebulição do estádio. Um fanático de um clube que não se isolava em si mesmo, não se fechava na cabine tecnológica, capaz de entoar os cânticos da torcida e colher as informações com os comentaristas quando não enxergava direito o que aconteceu num lance.

Da mesma forma, apesar dos aplicativos que me facilitam escutar qualquer música sem interrupção, prefiro as estações do rádio. Sou ligado ao improviso, à possibilidade de ser surpreendido por uma canção inesperada, algo que não sei ou não tinha noção. Fico no carro ou na residência navegando em minha estação predileta, deixando o coração suspenso pelos próximos acordes.

Não recrimino os comerciais, não censuro os boletins noticiosos, aguardo que venha uma melodia do acaso, potente o suficiente para me despertar lembranças longínquas e me inspirar a cantar alto refrões que não suspeitava recordar. É a adrenalina de reaver a memória amorosa por trás das camadas das idades. Recupero uma reunião dançante, a trilha de uma viagem, um hábito de infância. Exercito um descontrole generoso da vida. Penso que aquela música aparecendo do nada é um sinal de que devo telefonar para um amigo esquecido. A rádio é o interurbano que recebo diretamente do destino.

Hoje existe um controle excessivo dos ouvidos. Ouvir tudo o que se quer é surdez.

A rádio quebra as obsessões e me abre para a diversidade. Trata-se de um lançamento de um ritmo que nunca descobriria em meus filtros, de uma cantora que jamais tomaria conhecimento, de uma banda que passaria despercebida entre as modinhas.

O que quero mesmo é ser incomodado pelas emoções, ser levado para um destino espiritual que estava dentro de mim e é absolutamente desconhecido para o meu GPS.

Coluna Semanal
Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
26.06.2016

sexta-feira, 24 de junho de 2016

VAMOS RIR DISSO TUDO



Texto Fabrício Carpinejar
Foto: Gilberto Perin

Não há frase tranquilizante depois de uma separação. Os amigos tentando ajudar costumam infeccionar as feridas. Desejam livrar você do sofrimento o quanto antes e não respeitam o luto demorado e gradual.

Procuram despertar a sua vontade para sair e conhecer novas pessoas enquanto o que anseia é desaparecer  e se esconder dentro do passado.

Não costuma funcionar dizer para o dolorido da perda recente que "vai passar!". É subestimar a importância do pertencimento e da entrega. "Vai passar" é desprestigiar as pontadas da saudade. O enlutado quer lutar contra o esquecimento e você insiste em apressá-lo a mudar de assunto.

Da mesma forma, é nada aconselhável decretar que ele ou ela "encontrará alguém melhor". Ninguém acredita na esperança quando acabou de assassinar a fé.

O separado não aceitará a profecia, entenderá como maldição, já que experimenta um asco de amar, um nojo de amar. Sua reação será de absoluto descrédito, com a intenção irritada de jamais namorar de novo.

Tampouco deboche advertindo que "escapou de uma fria". O descorneado não tem como julgar coisa alguma, voltaria na primeira oportunidade. Está se vendo como um enterrado vivo na lápide de um romance - fria é a sua pedra de solidão, fria é a sua cruz bordada com os nós da garganta.

A melhor consolação é "ainda vamos  rir disso tudo". No plural, avisando que permanecerá junto no futuro, que não abandonará a amizade à míngua dos acontecimentos.

É projetar a alegria no tempo de trevas, é antecipar a cumplicidade que surgirá com o amansamento das mágoas. O riso dói, o riso é cedo, mas prepara a serenidade do rosto.

Graças aos amigos, a tragédia amorosa pode vir a ser a nossa grande piada.

Publicado no Jornal O Globo (Blog)
Coluna Semanal - 24.06.2016

quarta-feira, 22 de junho de 2016

ACHADO NÃO É ROUBADO



Texto: Fabrício Carpinejar
Arte: Eduardo Nasi

Não ganhava mesada, nem ajuda de custo na infância. Eu me virava como dava. Recebia casa, comida e roupa lavada e não havia como miar, latir e reivindicar mais nada aos pais, só agradecer.

As minhas fontes de renda eram praticamente duas: procurar dinheiro nas bolsas vazias da mãe, torcendo para que deixasse alguma nota na pressa da troca dos acessórios, ou catar moedas nas ruas e nos bueiros.

A modalidade de caça a dinheiro perdido exigia disciplina e profissionalismo. Saía de casa pelas 13h e caminhava por duas horas, com a cabeça apontada ao meio-fio como pedra em estilingue. Varria a poeira com os pés e cortava o mato com canivete. Fui voluntário remoto  do Departamento Municipal de Limpeza Urbana.

Gastava o meu Kichute em vinte quadras, do bairro Petrópolis ao centro. Voltava quando atingia a entrada do viaduto da Conceição e reiniciava a minha arqueologia monetária no outro lado da rua.

Levava um saquinho para colher as moedas. Cada tarde rendia o equivalente a três reais. Encontrar correntinhas, colares e broches salvava o dia. Poderia revender no mercado paralelo da escola. As meninas pagavam em jujubas, bolo inglês e guaraná.

Já o bueiro me socializava. Convidava com frequência o Liquinho, vulgo Ricardo. Mais forte do que eu, ajudava a levantar a pesada e lacrada tampa de metal. Eu ficava com a responsabilidade de descer às profundezas do lodo. Tirava toda a roupa – a mãe não perdoaria o petróleo do esgoto – e pulava de cueca, apalpando às cegas o fundo com as mãos. Esquecia a nojeira imaginando as recompensas. Repartia os lucros com os colegas que me acompanhavam nas expedições ao submundo de Porto Alegre. Lembro que compramos uma bola de futebol com a arrecadação de duas semanas.

Espantoso o número de itens perdidos. Assim como os professores paravam no meu colégio, acreditava na greve dos objetos: moedas e anéis rolavam e cédulas voavam dos bolsos para protestar por melhores condições.

Sofria para me manter estável, pois nunca pedia dinheiro a ninguém. Desde cedo, descobri que vadiar é também trabalhar duro.

Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
22.06.2016

terça-feira, 21 de junho de 2016

CASA DA SOGRA

A operadora telefônica não parava de ligar.

O telefone vivia ocupado. Milagrosamente, entre uma conversa e outra, a sogra colocou rapidamente o fone no gancho e, sem nenhum trinado, no mais completo silêncio, escutou uma voz do além, um timbre plangente do outro lado:

– Alô, alô, senhora Clara, senhora Clara? Não desligue. Pode falar agora?

– Pronto! Sim, sou eu. Posso falar. Quem é?

– É da operadora de sua linha. A conversa será gravada. O número do protocolo é 458438. Gostaria que repetisse?

– Não. O que deseja?

– Mudar o plano da senhora.

– Mas o plano é ótimo: ilimitado. Não preciso mudar.

– Mas, senhora, é um plano antigo.

– Estou satisfeita, muito obrigada, não pretendo mudar nada.

– Senhora Clara?

– Sim!

– A senhora não entendeu, nós desejamos mudar. A operadora deseja mudar. A senhora usou 9 mil minutos no último mês no aparelho fixo.

– Tudo isso? Então estou aproveitando.

– Sim, só que está nos trazendo prejuízo.

– Que horror se dirigir assim a um cliente.

– Senhora, não desligue, por favor, raciocine comigo: a senhora usou 9 mil minutos de 44 mil. É um recorde, não tem precedente.

– Nem falo muito, as minhas amigas é que me telefonam na maioria das vezes.

– Não, senhora, com todo o respeito, um comitê de 30 teleoperadores foi escalado numa operação chamada de "Fidel Castro" para lhe ligar ao mesmo tempo porque ninguém conseguia a linha desocupada.

A força-tarefa durou 20 dias, das 8h às 22h, sem cessar...

– Pois é, será que a linha estava com algum problema?

– Não minha senhora, o problema é a senhora, a senhora é o nosso problema.

– Não pode falar comigo desse jeito. E não gosto de Fidel Castro, é um ditador. Por que logo Fidel Castro?

– Os discursos dele são intermináveis, senhora.

– Preciso desligar, alguém pode estar querendo falar comigo.

– Senhora Clara, tenha compaixão da operadora. Você fica quase cinco horas em média por dia no telefone. Não há nenhum parâmetro igual no mercado. Oferecemos um celular grátis em troca, qualquer aparelho, que pode ser retirado em nossas lojas.

– Não gosto também de celular. Prefiro a privacidade doméstica.

– Senhora, o que podemos propor para demovê-la do plano? Está excessivamente oneroso.

– Uai, meu plano não é ilimitado?

– Estou buscando explicar que até o que é ilimitado tem limites.

– Passe bem, tenho mais coisas a resolver do que perder o meu tempo no telefone.

Publicado em Zero Hora
Coluna Semanal publicada em 21.06.2016

segunda-feira, 20 de junho de 2016

ALMA COLETIVA



Você pode estar julgando o outro por aquilo que você é. Você perdoa o outro por aquilo que deseja obter, a qualquer custo e não enxerga os contrastes e as diferenças gritantes das personalidades. Você pensa pelos dois, ama pelos dois, suporta tudo pelos dois.

Acha natural que a sua felicidade será a felicidade de quem ama. Confia piamente na simbiose, na fusão, na complementaridade automática. Entretanto, os seus prazeres e sofrimentos são totalmente imaginários. Nada que crê costuma ser partilhado na prática. Na realidade, amarga um isolamento, amortizado pela ficção romântica. Não contabiliza as provas objetivamente. Os fatos são contaminados pelas impressões e fantasias pessoais.

A ânsia de agradar e a facilidade para encontrar a alegria nas pequenas coisas impedem que tenha discernimento e separe os desejos de cada um. Você raciocina como casal, porém aquele com quem divide a vida raciocina como solteiro. Você festeja todo ato a dois, como raspar brigadeiro na panela e se agarrar debaixo das cobertas para espantar o frio, diferentemente de seu namorado, completamente imerso em seus interesses.

Jura que vem sendo correspondida porque não cogita a hipótese do ilhamento em suas vontades. Aproveita o pouco do romance como muito (o importante é a cumplicidade), já quem você namora somente enxerga como esmola (o importante é não ser incomodado).

Compra orquídeas para embelezar a mesa da sala – o espaço precisava mesmo de flor – e a companhia só acredita que gastou dinheiro à toa. Convida ao cinema sob o pretexto divertido de disputar as mãos no saco de pipoca e a companhia só queria ficar no sofá mexendo nas redes sociais. Organiza um almoço familiar, cozinha e prepara uma torta com paciência de uma manhã inteira, e a companhia só queria beber com os amigos e ouvir pagode.

Prepara um final de semana idílico na serra, com hospedagem paga e banheira de hidromassagem, e a companhia só queria dormir até o meio-dia.

Em nenhum momento, duvida de que alguém pode não gostar de amar. Mas casar é vocação para pouquíssimos de alma coletiva. É trocar o egoísmo pela gentileza, é renunciar o conforto pela generosidade. É nascer a dois, no ventre do coração, independentemente do que diz a certidão de nascimento.

Publicado em Zero Hora no Caderno Donna
Coluna Semanal
19.06.2016

quinta-feira, 16 de junho de 2016

ADEUS NÃO É TCHAU



Texto: Fabrício Carpinejar
Foto: Gilberto Perin

Separação não é discussão de relacionamento. Estaremos já fora do relacionamento para discutir.

Separação não é chantagem para ter as suas exigências atendidas. Separação não é suborno, para retornar mais intransigente do que antes. Separação não é férias, para poder sair livremente, ficar com novas pessoas e recuar apaziguado. Separação não é simulação, gritar que é a última vez quando não é nem a penúltima.

Separação não é greve, não é passeata por melhoria de condições. Separação não é manha, não é orgulho ferido. Separação não é magoar à toa, ferir gratuitamente, ofender sem pensar e ressurgir arrependido. Não é bater à porta para o outro correr atrás. Não é disputa para ver quem é o mais fraco. Não é desabafo, muito menos catarse, não é despejar o que estava guardado.

Não é caderninho de fiado, juros de investimento. Não é parcelamento da angústia. Não é pacto de carências, choro coletivo. Não é dar um tempo para se restabelecer. Não é sair de perto. Não é esfriar a cabeça. Não é conversar com os amigos para decidir a reconciliação. Não é um jeito de chamar atenção. Separação não é blefe, não é fingimento, não é uma brincadeira a dois, não é diversão de fantasmas, não é encenar a morte e imaginar quem vai no velório.

Separação não tem hora para voltar, não é para voltar.  Separação não é um intervalo para a dor almoçar, para o sofrimento lanchar. Separação não é produzir saudade. Separação não é para descobrir a fundura da falta.  Separação não é tomada de consciência, eletrochoque da sinceridade. Separação não é independência, amor próprio, reencontro das raízes - não tem nada de nobre e restaurador.

Separação é coisa séria. É absolutamente cansativa e ultrajante: fazer a malas, derrubar os cabides, inventariar os pertences, dividir os suspiros, chorar o futuro perdido, datar as fotos felizes, realizar escuta das últimas trocas de mensagens, trocar o corpo de casal pelos lençóis de solteiro.

Não confunda com uma situação provisória. É terminar os laços, é romper com a convivência, é desistir de alguém, é abandonar a casa.

Coluna semanal em O Globo
Publicado em 16.06.2016

quarta-feira, 15 de junho de 2016

O INCÊNDIO



Fabrício Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi

Minha mãe viveu a infância num hotel, onde a cozinha recebia uma avalanche de estrangeiros que passavam por Guaporé (RS) na metade do século passado. Seu pai era italiano, com estada na Argentina e no Uruguai. Ou seja, falava uma mistura de esperanto e portunhol.

A menina só podia ser babélica convivendo com o entra-sai dos hóspedes. O português servia mais para atender às gírias e ofensas.

Sua primeira redação causou estranheza na sala de aula, no Colégio Scalabrini. Ela deve ter escrito em quatro idiomas e alguns outros desconhecidos, ao apanhar as palavras pelo som e não se fixar na grafia.

Baixou o espírito santo do hotel dos Carpi em sua letra mirrada. Criou uma história sobre um incêndio no campo, em que os bois mugiam e as ovelhas baliam e ninguém entendia o pedido de socorro. Mostrava a incomunicabilidade entre os homens e os animais. Desde cedo, preconizava um talento poético para os ruídos do mundo.

Severa e metódica, a professora não acolheu bem a profusão de idiomas, não compreendeu como uma experiência joyceana de linguagem, considerou o texto apenas uma prova de dislexia.

Anotou todos os erros de cima a baixo de caneta vermelha. A lauda a lápis foi tomada de garatujas e xis. Dava pena de conferir, não sobrou espaço entre as linhas tamanha a intervenção. A felicidade involuntária da infância estava sendo assassinada pela alfabetização.

Quando foi receber o trabalho, Mariazinha olhou de cima a baixo as correções, desprezou a insuficiência gritante e apenas comentou, satisfeita, para a professora:

- Você compreendeu o meu texto!

A professora arregalou os olhos:

- Como? Não viu que a tarefa ganhou um zero?

- A senhora contribuiu pintando com a caneta vermelha e estendendo as chamas.

Coluna Semanal Vida Breve
Publicado em 15.06.2016

terça-feira, 14 de junho de 2016

NOSTALGIA DA CAPITAL

Fabrício Carpinejar

Não existe mais a nostalgia da capital como antes. Com a web e globalização, as cidades do interior não ficam atrás em serviços.

Mas houve um tempo em que Porto Alegre era longe demais, grande demais, cara demais, inacessível para os nossos colonos e peões. Filhos vinham da fronteira e colônias estudar na capital e mandavam  cartas para os seus pais contando das modernidades como escada rolante e elevador panorâmico. Os velhos reagiam com incredulidade diante dos avanços tecnológico, pediam explicações do funcionamento para depois jurar que nunca pisariam nestas geringonças.

O engraçado era o vaivém familiar. Quando os pais decidiam fiscalizar onde o filho morava e como vivia e avisavam de supetão que compraram passagens de ônibus e que chegariam sábado. Criava-se um pânico, evidentemente que o jovem  exagerava o seu bem-estar. Precisava maquiar a realidade imediatamente. Morava numa pensão no centro com outros dois colegas maconheiros, com visitas frequentes da namorada tatuada, num cortiço caindo aos pedaços e sem estrutura nenhuma. O papel higiênico acabava sendo questão de sorte no banheiro coletivo. Não parecia com a "casa de família ordeira e de horários rígidos" descrita na correspondência. Tinha que aproveitar algumas horas da véspera das aulas da universidade para impor uma faxina, esconder os cigarros e os cascos de cerveja.

Que medo da incerta dos pais. Se não agradasse a família, corria o risco de perder a mesada e ser obrigado a trabalhar na lavoura. Expiraria o sonho de estudar e de levar o final de semana na completa gandaia.

A visita significava uma punição pela  ausência de viagens à terra natal. Filho que demorava mais de três meses para aparecer levava o tranco da vistoria. O melhor sempre consistia em se prevenir e surgir na residência interiorana antes do pior. Assinar a lista de chamada no café da manhã uma vez por mês.

Constrangedor ficava sendo abrir a mochila no ônibus, de volta à capital, para ver o que estava fedendo e descobrir salame, queijo, goiabada, geleia e pão embrulhados em papel jornal. Uma verdadeira cesta colonial que os pais traficavam nos pertences dos filhos para que ele jamais passasse fome.

A vergonha é uma espécie estranha de saudade.

Coluna semanal no Jornal Zero Hora
Publicado no dia 14.06.2016

segunda-feira, 13 de junho de 2016

ATÉ A LIGAÇÃO CAIR



Faço a ronda telefônica com os meus amigos: José Klein, Mário Corso, Voltaire, Everton e Eduardo Nasi. É a ala masculina da fofoca. Todo dia falo com eles antes de começar as atividades mais pesadas do trabalho. Eles são a minha fonte de notícias, ideias de crônicas, não me deixam alienado dos principais acontecimentos noturnos da cidade. Como também efetuam a minha manutenção emocional e dou, em contrapartida, um suporte para os seus amores e dissidências.

Não pulo nenhum deles da rotina matinal e do plantão sentimental. Qualquer homem de bem tem seu bar predileto e seus apóstolos. O compromisso está acertado pelo sangue do destino. Eu escreverei a biografia deles exagerando as suas proezas, eles escreverão o meu necrológio mentindo a meu respeito. Somos leais aos sonhos mais do que aos fatos.
O engraçado é que se a ligação cai ninguém telefona de volta.

É uma etiqueta dos machos.

Diferente do tricô do timbre da mulher com as amigas, não há desespero ou mal-estar. Entendemos a fragilidade das operadoras, os vários pontos sem cobertura pelos bairros. Fazemos de conta que acabou o crédito, simples assim. Aceitamos generosamente o inesperado. O que não era para ser não será. Não confundimos a falta de retomada com indiferença e aspereza. Não nos penalizamos com hipóteses fatalistas de assalto e acidente. Não temos aquela paranoia de supor que o outro desligou na cara – coisa que só ocorre no início dos romances. Não cobramos um tchau e um aceno solene.

Eu acho que inclusive gostamos da roleta-russa da voz. É um suspense que acelera o raciocínio e previne a incontinência verbal.

Guardamos uma simpatia por não precisar enrolar com a despedida e sermos educados a ponto de ouvir o que não nos interessa.

Falamos até cair – é o nosso pacto. E vai cair, não há dúvida disso com o congestionamento caótico de linhas e sinais neste mundo.

O que não foi dito repassamos automaticamente para o próximo papo. Pendências não viram tragédias. Homem não sofre com o que ficou inacabado e imperfeito.

Para que insistir? Resumimos o que nos incomoda em 10 minutos, menos ainda. Talvez num grito ou num bah!

Amigo é econômico no afeto, mas sempre pontual na tristeza.

Publicado no Caderno Donna no Jornal Zero Hora
12.06.2016

quinta-feira, 9 de junho de 2016

NÃO ENTRA E NÃO SAI



Fabrício Carpinejar
Foto de Gilberto Perin

Criar culpa é a arte dos separados, em especial daqueles que largam uma relação para cumprir projetos pessoais.
É o ilusionismo de transformar o ex em segunda opção, no caso de tudo der errado, e ainda soar sensível e preocupado ao preparar as malas.

Estranhe o fim quando o personagem que abandonou a casa confessa saudade ou se mostra extremamente agradecido. Tem algo errado.
Está lidando com um oportunista, não emana pureza e inocência em seus gestos.
É o tipo que não entra e não sai, instaurando uma pendência sentimental, uma linha de crédito baseada em dívidas.

Mantém a porta aberta, dizendo que ama muito (quem ama muito não vai embora), estabelecendo dúvidas, defendendo o desfecho provisório e confiando na ação do destino.
Finge gentilezas, simula contatos, em situações misteriosas. Telefonou uma vez e disse que não foi atendido (não há registro do número), chamou pelo interfone e não teve resposta (quando você estava em casa).

Na verdade, apenas tentou na teoria. Fez um esforço teatral, mas não adotou nenhuma atitude prática e definitiva para a reconciliação. Ensaiou, só que não subiu no palco. Realizou declarações de paixão eterna, confessou que nunca esquecerá a convivência, chega ao ponto de dizer que o lugar ficará vago. Aproveita a fragilidade da vítima para exercer uma hipnose do mal.
Não termina definitivamente o relacionamento, disfarça o fim com a esperança de uma possibilidade mais para frente.

Não vira as costas, despede-se andando de costas, como se estivesse vindo, jamais se distanciando.
Não caia neste jogo messiânico. É preferível estar de pé e desconfortável a comprar uma cadeira no céu.

Quantos partem e deixam a culpa como sósia?
E quem fica não muda os seus hábitos, permanece esperando o retorno que pode não acontecer. E quem fica passa a se desculpar, a achar que não foi bom o suficiente, a querer fazer surpresas e provas para reconquistar a sua condição de prioridade (quando deveria ser o contrário). E quem fica declina de convites para não se comprometer com nada e estragar uma hipotética reaparição daquele que ama.

Criar culpa é montar um cativeiro, a tirania de prender alguém no passado a pão e água. Criar culpa é imobilizar o amor. Criar culpa é egoísmo. Criar culpa é mentir que as escolhas não foram feitas e que estão abertas. Criar culpa é enfeitar a dor com poesia. Criar culpa é confinar o antigo cúmplice a reconstituir as lembranças até enlouquecer. Criar culpa é aproveitar viagens e festas enquanto o outro pena em silêncio, é experimentar novas relações enquanto o outro não mexe uma vírgula de seu obituário.

O que parece mágica é truque. Amar é também não prolongar o sofrimento da perda.

Publicado no Jornal O Globo no Blog do Fabrício Carpinejar
Coluna Semanal
09.06.2016

quarta-feira, 8 de junho de 2016

BLUE JEANS



Texto: Fabrício Carpinejar
Arte: Eduardo Nasi

Abandonei a infância quando ganhei a minha primeira calça jeans. Era uma nova forma de enxergar o corpo – juro que a impressão é que me devolveram a pele. Modelava as pernas, fazia volume, não ficava exposto e nu como no abrigo.

O abrigo era uma violência emocional. Um detector de desejos.

Pois bastava ficar levemente excitado que precisava disfarçar o erotismo com pensamentos tristes. Todos poderiam descobrir as minhas vontades e lampejos. A transparência incomodava, a vulnerabilidade atrapalhava, afora as manchas seguidas dos lanches e a impossível coerência com a cor do tênis.

Para mim, o abrigo lembrava apenas um pijama de sol. Ou um avental gigante. Não dava para combinar com nada. Vinha pronto, dependendo da sobrevida do elástico. Não havia o cinto para confirmar a masculinidade e desenvolver o crescimento da cintura pelo número de furos.

Vestia um saco para acordar, assim como o pijama representava um saco para dormir. Quase como uma mochila de pano, com a diferença de que ela me carregava.

A facilidade de tirar me atordoava, ainda mais sendo tímido. Não inspirava confiança. Qualquer trapaceiro na escola desfrutava da artimanha de baixar a minha calça de surpresa para me mostrar de cueca à turma.

A rotina tampouco não provocava reviravoltas no dia. Não restava a chance de me fantasiar de outro e melhorar o humor trocando de figurino.

Usava uniforme escolar de manhã e depois, de tarde, aqueles abrigos monocromáticos: verde, vermelho, azul. Vivia sob a ditadura do conjuntinho básico.

O jeans criou o meu guarda-roupa, as possibilidades, as misturas, a indecisão do que colocar, o olhar mais demorado no espelho, o enamoramento do tempo. Quando troquei as gavetas pelos cabides, quando desafiei o certo pelo duvidoso.

O jeans desencadeou a vontade de comprar as próprias roupas, despertou a ambição de ter uma personalidade e assumir uma tribo, de me diferenciar dos meus pais e me assemelhar aos amigos nas festas. O jeans foi a minha identidade, para me perder de mim definitivamente.

Publicado no site Vida Breve
Coluna Semanal
08.06.2016

terça-feira, 7 de junho de 2016

O NOSSO NADA

Você que vive reclamando de que não há nunca nada na geladeira era só receber a visita de um chef que ele contestaria a falta de ingredientes e prepararia um prato daquilo que nem sonhava ter. Inventaria um banquete com o que desprezava e chamava de resto.

Você que vive reclamando de que não tem roupa suficiente era só receber a visita de um estilista que ele ensinaria a misturar peças antigas com novos acessórios e encontraria uma loja absolutamente pessoal entre seus cabides.

Você que vive reclamando de que não tem tempo era só receber a visita de uma amiga com quatro filhos, trabalho, casamento e cachorros que entraria em contradição.

Se o seu filho pequeno vive reclamando do tédio e da ausência de brinquedos é só ganhar a companhia de um coleguinha para redescobrir no quarto o deslumbramento de parque de diversão.

Você que vive reclamando das dívidas do cartão de crédito é só conversar um pouco com a faxineira e perceber que ela, com muito menos, adquiriu residência própria e mantém uma longa poupança.

Você que vive reclamando de que não tem paz e não tem sorte é que não olhou bem para dentro de si e vem desdenhando da simplicidade.

Você que lamenta que não encontra ninguém para amar é só ver um ex feliz que sofre ímpetos de reconciliação. É perder um amor para valorizá-lo, é perder um emprego para sentir saudade da rotina.

Existe o hábito de procurar enriquecer quando o ideal seria enobrecer o que já possuímos.

É um erro avaliar a vida pela ambição. A ambição não cessa, não cansa, não se acomoda. Jamais estaremos satisfeitos, jamais atingiremos os nossos objetivos. Estar melhor de condições não é ser melhor nem fazer o melhor. Quem comprou um carro usado vai querer um carro zero que vai querer um carro maior e mais potente que vai querer uma Ferrari. A lamúria será uma fonte perigosa de inveja. Cobiçaremos  o posto de quem está com o cargo acima do nosso. Ficaremos com ciúme de um amigo em lua-de-mel na Europa ou de um amigo solteiro enlouquecendo em festas.

Não mergulhamos em nossa casa com a curiosidade de um hóspede, não mexemos em nossos objetos com o espanto de colecionador, não observamos a decoração com a surpresa de um estranho.

As portas dos armários e as portas da despensa são cofres onde ocultamos (não guardamos) o que conseguimos, e esquecemos de conferir na ânsia de acumular novidades.

O nosso nada pode ser tudo para o outro. O nosso nada pode esconder a felicidade.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal
07.06.2016

segunda-feira, 6 de junho de 2016

GRANDES HISTÓRIAS DE AMOR



Amor não é preguiça. Amor é vencer a preguiça. Com filhos ou com esposa. É trocar a paz pela dedicação. É sair do conforto para atender alguém. É abdicar do calor das cobertas em nome do cuidado, é se antecipar em gentilezas e enfrentar o frio do inverno e dos pés descalços na cozinha.

Quem deseja dormir passando do meio-dia como fosse um eterno adolescente, ficar assistindo a séries ou futebol sem ser incomodado, deixar a bagunça se acumular para a chegada da faxineira, não lavar a louça até não encontrar mais copos e pratos limpos, permaneça solteiro. Não se case, não seja pai. Não gozará do luxo de duas horas de tranquilidade para ler ou boiar com os pensamentos. O intervalo de distração é de três minutos.

Família é perder o controle dos próprios horários. É madrugadão. É o equivalente a trabalhar como vigia ou segurança noite adentro, é assumir a condição de taxista nos momentos vagos.

Quando o filho é bebê, você terá que atender às cólicas, usará o gogó para desfiar as canções de ninar da época da vó e dar colo de um lado para o outro, incessantemente, com os faróis dos carros iluminando as janelas da sala. Quando o filho é criança, é acudir os pesadelos e de repente levar o pequeno para a cama de casal. Quando o filho é adolescente, é esperar o chamado para buscá-lo de carro nas festas.

Não conhecerá trégua. Não conhecerá moleza. O sono vem aos surtos, aos goles, aos poucos, em curvas, não ocorre em linha reta. O alarme do celular é o melhor amigo do homem de família. Há décadas que não sei o que é me espreguiçar lentamente, com os braços esticados para cima, ronronando, treinando posição de yoga e saudando o sol. Eu acordo de susto, com o coração aos pulos, determinado a cumprir tarefas. Nem penso muito, faço para depois pensar.

Tenho consciência de que amar é nunca mais ser egoísta, é renunciar ao individualismo e ao prazer de estar sozinho.

Foi uma decisão de uma vida feita na maior insignificância. Defini a minha paternidade e o meu casamento durante a segunda noite com a minha mulher. Ela estava com sede e pediu um copo d’água. Poderia fingir que não ouvi, poderia fingir sono profundo, poderia fingir que não era comigo, afinal a temperatura beirava os cinco graus. Mas empurrei o meu corpo para fora da cama, concluindo que ela merecia o meu esforço e que não custava nada oferecer um pouco de ternura.

Não duvide da banalidade. Levantar ou não para buscar o copo de água para a sua namorada é sempre onde começam grandes histórias de amor.

Publicado no Jornal Zero Hora
Caderno Donna
05.06.2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

VODU DA SEPARAÇÃO



Texto: Fabrício Carpinejar
Foto: Gilberto Perin

Como você morava junto, fazia tudo junto, ainda pensa que a outra pessoa está ligada mesmo depois da separação.

Jura que o outro faz o que você faz: se chora o outro também vem chorando, se tem um ataque de pânico o outro também suporta aceleração cardíaca, se segura o celular para esperar uma ligação o outro também aninha o celular com ansiedade, se escuta aquela música que vocês se conheceram o outro também está cantando na mesma hora com a voz embargada. Vive a ilusão da telepatia, a miragem da correspondência emocional, a síndrome da duplicidade do sofrimento.
Não desligou o Wi-Fi da sua alma e mantém o acesso do antigo parceiro às fontes de seus pensamentos.

Tranca-se no quarto, esquece que tem casa e coloca na cabeça o que o seu coração manda. Alimenta a fantasia de que a ruptura dos laços criou uma alma gêmea sofredora. Ele é você - como se estivessem dividindo um único corpo de arrependimento e orgulho ferido.
É o vodu da separação, com a diferença de que você é o boneco. Acaba se maltratando para repercutir agulhadas em seu objeto amado e agora distante.

Não come e acredita que o outro não estará comendo, não dorme e acredita que o outro não estará dormindo, não sai e acredita que o outro amarga idênticas privações, faz paralisação da felicidade e acredita que o outro não aproveita os antigos prazeres.
Todo o ex é um fantasma - o defunto amoroso não tem direito de resposta e permite o surgimento de fantasias totalitárias.

A abstinência pode durar duas a três semanas, até que rompe o casulo e
vai espiar o Facebook de quem gostava e descobre que nada disso aconteceu: só fotos de festas, piscina, bares, sorriso, algazarra com os amigos, leveza e descompromisso.

É a maior decepção, enxerga-se enganado, traído, como se não valesse nem o intervalo do luto. A vontade é telefonar e soltar os cachorros feridos: eu agonizando por você e você nem aí para mim.
Não vale a ligação. Não vale mais nada. Penou todo o tempo sozinho, como de repente amou o tempo todo sozinho.

Perceber que não são a mesma pessoa é o caminho para o amadurecimento. Daqui por diante, exponha as desilusões por você, não mais pelos dois, já que morreu a dependência. Não dê desculpas pelos dois, não justifique o fim pelos dois, não invente esperanças pelos dois, não mantenha a porta aberta pelos dois. A separação nunca será solidão a dois. Por isso que é separação: para cada um sofrer do seu jeito ou simplesmente não sofrer.

O amor, antes ditadura de um único sentimento, tornou-se democracia para os demais sentimentos, inclusive da indiferença.

Publicado na coluna semanal do Jornal O Globo
02.06.2016

quarta-feira, 1 de junho de 2016

PARAFUSO



Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi

Em casa temos uma expressão de uso corrente: “chega de falar de parafuso”. A frase é sempre empregada quando alguém empaca em um assunto ou quando a discussão não tem saída. É tentar convencer a minha mãe de algo, ou a minha mãe tentar me convencer de algo, por exemplo. A conversa nunca evolui. Um olha para o outro, sem esperança, e resmunga:
— Chega de falar de parafuso!

A origem da frase vem da minha infância. Quando tinha três anos e o Rodrigo cinco, ele sofria por mim porque todos os tios diziam que eu tinha um parafuso a menos. Eu caía ao correr, batia a cabeça com frequência, era absolutamente desajeitado. Não havia me recuperado do susto de nascer – e as pessoas tampouco do susto de me ver.

Rodrigo, conhecido como “Igo sabe tudo”, criou um plano de recuperação de metas. Retirou um parafuso da caçamba de seu caminhão azul e me deu para engolir com um copo de água. Imitou o gesto banal dos adultos da oferta de uma aspirina para enxaqueca.
Longe de contrariar a sabedoria do mais velho, obedientemente engoli, mas com esforço, precisei de um litro d’água.
Foi um deus-me-acuda quando ele explicou para a família que agora não me faltava nenhum parafuso.
— Fabrício funcionando perfeitamente!, constatou.

Desesperada, a mãe se debruçou na enciclopédia “A Vida do Bebê”, de Rinaldo de Lamare, e preparou o pior e mais espesso mingau de minha vida. Seguiram vinte e quatro horas de tensão até que demonstrasse sinais de dor de barriga.

Trancado no quarto, alheio ao tumulto, Rodrigo estava bravo. Choramingava, bufava, no misto confuso de sentimentos, entre a culpa e a incompreensão, pois ninguém alcançou o heroísmo de sua ideia. Durante duas semanas, só abria a boca para gritar: “chega de falar de parafuso!”.

Publicado em Vida Breve
Colunista de quarta-feira
1/6/2016

BARBÁRIE

Ela pode ter sido prostituta, ela pode ter sido usuária de drogas, ela pode ter se relacionado com quantos homens quisesse ao mesmo tempo, ela pode ter feito apologia de armas em sua página pessoal, pode ter dançado funk até cansar, pode ter saído de minissaia e sem sutiã, pode ter se encontrado de madrugada, pode ter fantasias eróticas de violência, pode ter se calado de vergonha, nada justifica o estupro, nada justifica ter sido contrariada, ter sido coagida, ter sido barbarizada, ter sido filmada agonizando. Ela não consentiu com a transa, muito menos com a transa coletiva, muito menos com a gravação absolutamente debochada e sarcástica no momento em que sofria. Ela foi violentada em todos os seus direitos por uma gangue de boçais.

Se alguém usar um desses argumentos para relativizar o ocorrido deve pôr a mão na consciência para ver apenas que não tem mais consciência. Está sendo álibi da misogonia no país.

A mulher não é culpada por ser mulher, não tem que se esconder ou disfarçar que é mulher, não tem que se preservar e ser recatada para não chamar atenção.

Se um homem tivesse sido estuprado por 33 sujeitos armados ninguém duvidaria de seu sofrimento. Ninguém colocaria em dúvida o seu depoimento. Ninguém insinuaria que ele facilitou o desenlace. Ninguém descontaria a sua dor pelas suas experiências anteriores.

O passado foi uma escolha dela, o presente é também a sua escolha e ela não quis sexo, ela foi dopada, manipulada, sequestrada e forçada por dezenas de homens covardes e brutais, pretendendo conseguir o prazer à força. Não tinha como se defender, como pedir ajuda, como escapar. Era uma menor indefesa naquele instante.

Os seus antecedentes não diminuem o crime. Os seus gostos culturais não atenuam a monstruosidade.  A barbárie é digna de guerra civil, de uma sociedade sem rapidez de polícia e de Justiça, com os presídios lotados, em subcondições.

Jamais a vítima será culpada. Ela tem o direito de definir quando quer ou não quer, quando deseja ir embora ou quando pretende ficar. Não é não, não não é charme, não é que ela está se fazendo de difícil, não é que ela está seduzindo e ganhando tempo.  Não é não. Ir para um lugar perigoso não significa assumir riscos. Vamos parar de hiprocrisia.

O machismo é explicar o que não tem explicação. O estupro coletivo é inexplicável. O inexplicável merece condenação sumária.

Publicado no dia 31.05.2017 no Jornal Zero Hora