quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

ANOTAÇÕES SOBRE A SAMAMBAIA

Ninguém foi condenado por matar uma samambaia. Nenhum solteiro, nenhum casado em crise. Sempre ela é vista como suicida. É ela que desistiu, nunca é culpa da falta de cuidados.

A família sai de férias, não é carregada junto, não inspira instruções para quem fica.

Ela é abandonada, como um zelador dos objetos.

Não se compra uma samambaia, recebe-se de presente. Como veio de graça, assim ela é ainda mais esquecida.

Sua aparência de mato engana, confundida com um arranjo de buquê sem as rosas.

A samambaia termina com alma de flor de plástico.

Como não oferece sementes, como não floresce, tem o preconceito dos românticos.

A samambaia poderia andar nua pela casa e não chamaria atenção. Nasceu camuflada, camuflada de si mesma. É apenas percebida com a chegada das borboletas. As borboletas são as suas roupas.

A samambaia não mete medo como uma lagartixa. Ela existe, mas não existe. Tem uma desvantagem em relação à lagartixa: não tem paredes para correr.

O fato de ocupar o alto faz com que não seja valorizada. Parece que não é dali, parece que está voando, de passagem.

A samambaia é uma pipa que foi montada e jamais ganhou o céu de uma criança.

Não se conhece o desejo de uma samambaia, a sua felicidade, o seu esporângio.

Escora-se nos lamentos do vento, uma planta triste de unhas compridas. Talvez uma manicure resolvesse o seu dilema.

A samambaia sofre de complexo de inferioridade, mas não consegue encolher. Ela cresce, inclusive, quando falece.

A samambaia é confundida com o cacto. Só que o cacto sobrevive, a samambaia não. O cacto bebe mais pedra do que água.

Lembra um cachorro, pula em cima dos móveis, abana o rabo, lambe o rosto e se esfrega em quem se aproxima. Pena que o dono não compreende as suas folhas como uma língua para fora.

Morre de sede porque todo mundo pensa que alguém já deu água para ela.

DÊ UM DESCONTO AO AMIGO QUE VIVE UM MOMENTO DIFÍCIL

Não estrague a amizade porque o seu amigo anda chato. É uma fase. Pode ser falta de dinheiro, problemas familiares, um amor doente que ele fracassa em desatar.

Mas cuidado para não tornar definitivo o que é provisório. Ele está chato, não é chato. Rememore o quanto vocês se conhecem, o quanto viveram de cumplicidade e segredos, o quanto superaram adversidades e desilusões.

Não vale a pena sacrificar uma história inteira feliz por um dia ruim. Uma indiscrição, uma grosseria e uma aspereza não significam que tudo foi em vão. Pondere, todo amigo tem o direito de errar e explodir, de incomodar e se desculpar.

Não converta a falta de sintonia passageira em distanciamento permanente. Desfazemos grandes lealdades por bobagens. Transformamos desentendimentos, resultantes de uma crise pessoal, em divergências irreversíveis da relação.

Com uma propensão imediatista, enxergamos somente o período turbulento e desagradável, e esquecemos de reconhecer o companheirismo anterior. Falta-nos paciência para encarar as lamúrias e contextualizar os ataques. No lugar de respirar um pouco e oferecer um desconto, tratamos de responder as agressões com violência.

Dê um tempo para o amigo, afaste-se por uma semana, crie saudade de um mês, porém não destrua os laços em função de uma implicância. Às vezes ele não quer ser ajudado, às vezes não há como socorrer aflições, às vezes ele não desfruta de condições para escutar seus conselhos, às vezes ele ofende jurando que vem sendo apenas sincero.

Deixe estar. Não fique perto, abra espaço para que ele reflita e se acalme, não se apoie na raiva que aumenta o desconforto e intensifica as retaliações. Evite desligar o telefone na cara, controle-se para não cobrar a devolução dos presentes e afetos, silencie antes de estabelecer ultimatos, contenha-se para não misturar medos antigos com os novos e realizar chantagens emocionais, recue no bate-boca, fuja da conta da culpa e, concordando ou discordando, diga que vai pensar e que retornará depois. Por enquanto, feche as janelas e conserve a porta aberta.

Entenda que as melhores companhias nem sempre são boas companhias. A simbiose que existe numa amizade, de um espelhar o outro, de um ser o outro, é perigosa. Quando alguém pretende se destruir, leva junto quem vive próximo. Os confidentes são os primeiros a sofrer maus-tratos.

Amizade é também prever o momento de se retirar para voltar com mais força e amor redobrado.

SENSAÇÃO TÉRMICA DA PERSONALIDADE



Emoções são fatos. Não dá para desprezar como alguém sente uma experiência, ainda que esteja aumentando a importância do ocorrido.

A versão é a verdade de cada um. É o jeito que a pessoa percebeu emocionalmente uma cena. É o que ela pode entender ou aceitar, de acordo com a sua formação, os seus tabus e preconceitos.

Para alguns, mentir sobre a demora na entrega de um trabalho é motivo de demissão. Para outros, é educação. Para alguns, a deslealdade é motivo de separação. Para outros, é sinal de imaturidade e merece o perdão.

Tem gente que desculpa a infidelidade, tem gente que vira as costas e nunca mais oferece uma segunda chance.

Eu parei de provocar a minha irmã com berros fantasmagóricos de surpresa quando notei que ela começava a chorar, exatamente os mesmos sustos que produziam risos consecutivos em meu irmão. O contentamento de um é a tristeza do próximo.

Não há como antever como os outros vão reagir sobre os dilemas e impasses da vida. É o que chamo de sensação térmica da personalidade.

Assim como a temperatura pode registrar 30 graus e a sensação térmica ser de 40 graus, o sofrimento de um amigo ou familiar pode ser bem maior do que o tamanho da realidade, o que não invalida o desabafo.

O nordestino pode se cobrir de casacos em passagem pela Serra no verão enquanto os moradores desfilam de camiseta, a impressão é que manda.

Uma tentativa frustrada de assalto talvez renda mais desespero do que alguém que sofreu um sequestro.
Há a ciência do tempo, há a meteorologia, mas também as alterações sentimentais do cotidiano.
Toda pessoa é um idioma à parte.

Temos que nos preocupar com os efeitos da dor mais do que com a precisão dos acontecimentos.
Não se deve desmerecer a conversa porque o assunto não nos interessa. Ou julgar com os nossos próprios referenciais.

Para quem sabe nadar, o medo da água é ridículo. Para quem gosta de show, o medo da multidão é patético. Para quem dança, as coreografias da micareta são fáceis.

Esquecemos de ponderar sobre a sensação térmica do coração.

Não me incomodo com os passionais, os dramáticos e os operísticos. Respeito os efeitos especiais da linguagem. O exagero é uma forma de dizer o que está incomodando e de diminuir a angústia com as palavras.

AQUELE QUE SOFRE MENOS


Foto de Gilberto Perin

Quem não recordava o aniversário de namoro, do primeiro beijo, da primeira transa, não era capaz de reconstituir onde se conheceram, com que roupa estavam vestindo, sofre menos com a separação.

Quem não tenta fixar o último beijo, reprisar a última frase, recuperar a derradeira mensagem, sofre menos com a separação.

Quem não colecionava fotos, não se preocupava em guardar pasta do casal nos meus documentos, sofre menos com a separação.

Quem não tinha fé quando faltava compreensão sofre menos com a separação.

Quem não comemorava os meses quebrados, depois os anos inteiros de relacionamento, não fazia a ordem cronológica dos diálogos, não recuperava as grandes piadas, não conservava os maiores encantos, sofre menos com a separação.

Quem não trazia as alegrias para as brigas, mesmo as minúsculas, para suavizar a raiva, sofre menos com a separação.

Quem não desenvolvia dialetos, expressões, não dava apelidos carinhosos, não infantilizava e envelhecia o outro para recuar e avançar em todos os tempos da vida, sofre menos com a separação.

Quem não abria a agenda para preparar jantar em casa, regado a vinho e músicas prediletas, quem não telefonava para avisar da lua cheia no céu, sofre menos com a separação.

Quem não criava presentes, não escrevia cartões e cartinhas antes de sair em viagem, quem não preparava declarações públicas nas redes sociais, sofre menos com a separação.

A dor é memória multiplicada, do que aconteceu e, em especial, do que não aconteceu.

Só sofre quem se comprometia a lembrar de tudo porque nada era insignificante.

Homens e mulheres de pouca memória estão salvos, não conhecem a angústia do amor.

FESTA DA FIRMA

Arte de Eduardo Nasi

A festa da firma é uma segunda entrevista de emprego. Ou seja, não é festa, é o velório da sinceridade. Não se trata de uma confraternização, mas de uma delação disfarçada.

Como você ficará à vontade sabendo que não pode beber, não pode dançar loucamente, não pode contar piadas, não pode falar mal de ninguém, em especial de seu chefe? Carregue um “Google tradutor” embutido em sua boca para converter o gordo, o careca, o idiota e o imbecil em colaborador, integrante do time e parte da família.

Para que largar o conforto do lar? Não tem sentido, o equivalente a dizer que cocô de passarinho na cabeça traz sorte.

Mas, se não aparecer, o povo comentará que é azeite, prepotente, não quer se comprometer e que dispensa as relações interpessoais.

O que é obrigação nunca será diversão. A risada precisa ser cínica e controlada, pois a gargalhada já indicará alto teor alcoólico. É recomendável que seu figurino não chame a atenção. Não use combinação extravagante, muito menos formal em demasia. Em suma, irá com a mesma roupa que costuma trabalhar.

Bajulação é desagradável, assim como a honestidade. Cumprimente a todos, não puxe assuntos a fundo. Jamais traga problemas pendentes do ambiente corporativo, e igualmente não abra a sua vida. O correto seria não existir marcando presença.

Como não há meio-termo na descontração, é mexer o tronco dentro de uma camisa-de-força.
Tocará funk e não descerá ao chão. Tocará sertanejo universitário e não levantará os braços. Nem “Lepo lepo”, nem “Paredão metralhadora” serão capazes de abrir a pista para coreografia, qual a graça?

Você deverá recusar tudo o que é bom. Não deve comer em excesso para não ser morto de fome, não deve se envolver com a colega para não misturar amor e emprego. Em hipótese alguma, não ser o primeiro a chegar e também não inventar de ser o último a sair (nenhuma festa é inesquecível se saímos cedo, não é verdade?).

Encontro da firma não é lazer, e sim hora-extra no final de semana e adicional noturno. Só os estagiários não entenderam isso e brindam ao futuro, ingenuamente alegres, com seus copos de plástico.

BRIQUE DO AMOR

A campanha de agasalho era dentro de casa. Eu recebia as roupas do irmão mais velho e o irmão mais novo recebia as minhas roupas. Não havia banho de loja. Fui do tempo em que não existia shopping center.

Herdei calças e camisas do Rodrigo. Por sua vez, Miguel herdou as minhas calças e camisas.

A mãe ajeitava as bainhas e as mangas e me moldava ao corpo das roupas (nunca as roupas se moldavam ao meu corpo). Tanto que até hoje, quando vou provar algo, eu não me importo quando está um pouquinho curto ou largo demais, perdoo a imperfeição.

Na infância, vestir significava somente não passar frio. Não correspondia a se embelezar. Calças e casacos ostentavam, sem nenhuma vergonha, remendos de couros e cicatrizes. Cuecas e meias viviam costuradas.

O sapato gozava da importância inexplicável de um carro. Trocava-se a sua sola frequentemente para que continuasse sendo usado. O sapateiro emergia como uma referência insubstituível do bairro, assim como o padeiro, o padre e o médico. Desfrutava da responsabilidade de passar na sapataria depois da aula para buscar as encomendas familiares.

Ocorria dentro de casa a antecipação do testamento em vida. Não se esperava o inventário para partilhar os pertences. Firmávamos uma estranha hereditariedade do vestuário.

Disputávamos a pasta e a carteira velha do pai, brincávamos do faz de conta financeiro com os carnês vencidos. Nada se perdia, tudo trocava de mão, de braço e de perna.

Os agasalhos duravam três gerações. O conteúdo das gavetas mudava de dono e jamais ia fora.

Acho que temos que recuperar, diante da atual crise financeira, o valor emocional dos objetos. Não me importo em ganhar presentes usados, pois serão lembranças com alta carga simbólica. Desde pequeno, aprendi a reaproveitar o amor e valorizar cartas de agradecimento.

Quando não tínhamos dinheiro, na escola, preparávamos cartões para o dia dos pais e das mães, por que não recuperar este artesanato da letra e do desenho no mundo adulto?

Dê seu moletom preferido para alguém do seu círculo de amigos, ou passe adiante um livro de seu gosto ou um CD que harmonizou os seus ouvidos para a saudade. Não se envergonhe de sua pobreza, que seja uma pobreza alegre, repartindo o santuário de sua sobrevivência.

Não sofra com o que não tem, ofereça aquilo que você é.

ESPECULAÇÃO


O solteiro tem um olhar de especulação imobiliária.

Assim como quem procura um apartamento sempre está mirando o alto dos prédios, o solteiro não deixa ninguém passar sem investigar de cima a baixo. Chega a ser pornográfico, mas ele fica com o radar inteiramente ligado para flertes e romances. O sensor está ativado para anúncios. Encara os passantes, de frente e de costas, não se intimidando com nada. Faz as perguntas mais diretas e não desperdiça chance de aproximação. Pede o telefone mesmo antes de revelar o seu nome.

A cara-de-pau do solteiro é assustadora. Corre atrás de portas e de espaços para alojar a sua vida. Transforma beleza em metros quadrados, estuda a geografia da paixão com a ciência dos números. Muito diferente do casado, que tem preguiça até para descer de elevador e buscar a sua tele-entrega e se contenta em deitar no sofá de roupas velhas.

O solteiro é incansável. A mesma determinação de alguém caçando imóvel. Pula de uma festa para outra desprezando o cansaço. Emenda saídas e não diz “não” nunca. Dorme pouco respondendo aos amigos e dando conta das ofertas do WhatsApp. Fala com metade da cidade em duas horas.

Já o casado sofre para responder aos mais chegados e vive arrumando desculpas para não frequentar baladas, ou é a fila ou é o tempo feio ou é a música.

O solteiro frequenta academia e tira selfies de perto. O casado se vangloria da panela de brigadeiro e permite apenas fotos de corpo inteiro e de longe.

O solteiro economiza na semana para gastar no final de semana. É pobre de segunda a quinta, e um milionário de sexta a domingo. Por sua vez, o casado prefere gastar numa churrascaria do que em consumação.

O solteiro quer camarote, o casado quer desaparecer. O solteiro quer isenção, o casado quer promoção. O solteiro é amigo dos porteiros e dos garçons, o casado conhece os atendentes do supermercado e da farmácia.

Se o solteiro come na frente do computador, o casado come na frente da televisão.

Se o solteiro persegue a casa dos sonhos, o casado imagina a reforma dos sonhos.

O casado critica o solteiro, o solteiro critica o casado.

O solteiro deseja se aquietar depois de experimentar muito, o casado não deseja sofrer com o excesso de opções.

O PECADO MAIOR


O orgulho não é apenas um pecado, é uma tirania. É alguém que falsifica a memória para atender ao capricho de seus desejos.
É um pecado invisível, imperceptível na aparência, já que traz confiança e combatividade.
O orgulhoso parece que está bem, mas unicamente não para quieto um minuto para descobrir o quanto está mal.
O orgulho não escuta, não tem a humildade do engano. Vem de pessoas apressadas de certezas, que já buscam convencer o outro antes mesmo de terminar a conversa e acolher o contraponto.
O orgulho ferido sangra a esperança, até desaparecer o futuro.
O orgulho é quando o espelho manda na vidraça, o reflexo vence a reflexão.
O orgulho é mais vaidade do que verdade.
O orgulho nasce do medo e desemboca na intolerância. O medo de perder emprego estimula o preconceito contra os imigrantes, assim como o medo da própria sexualidade arma ataques à homoafetividade.
No orgulho, você odeia quem é diferente, com receio de perder a sua influência.
O orgulho é coisa de gente pequena bancando a grande.
O orgulho transforma a fraqueza em vício.
O orgulhoso converte impressões em fatos e desacredita os fatos com impressões.
O orgulhoso dedica o seu tempo integral aos inimigos.
O orgulho não tem amigos, tem álibis.
O orgulho é previamente a favor ou contra.
No orgulho, não existe senso de humor, pois rir é igualdade social. Quem ri junto jamais se acha melhor que o outro.
A alegria do orgulho é escárnio, uma gargalhada sem mostrar os dentes, articulada no canto da boca.
O orgulhoso se explica ou se justifica em vez de pedir desculpa, não volta atrás para reconsiderar a opinião.
O orgulhoso condena antes de julgar, vinga-se antes de entender o que aconteceu.
O orgulhoso não acha o caminho porque se envergonhou de perguntar.
No orgulho, você se delicia roubando a felicidade do próximo. Ao contrário da tolerância, onde você só é feliz dividindo a felicidade.
O orgulho é a riqueza esmolando, é a fome oferecendo comida, é a sede na chuva, é a penúria na abundância.
O orgulho é avareza. Você esconde o que sente para não ter o trabalho de falar.
O orgulho é saudade engasgada.
O orgulho não conhece a paz depois do perdão. Ou seja, no orgulho você jamais é livre.
O orgulho prepara vinganças reais para dores imaginárias. Sofrerá por aquilo que não aconteceu, e que somente acontece em sua cabeça.
O orgulhoso repete o seu pior dia eternamente para decorar as dores.
O orgulhoso ocupa-se em fingir que está ocupado e fecha as portas de palavras vazias.
O orgulhoso coloca a mão na consciência enquanto os pés chutam o inconsciente.
O orgulhoso vibra mais com o fracasso dos colegas do que com os seus sucessos.
O orgulho é o otimismo da destruição.
O orgulho desafia pela frente e cria a discórdia pela fofoca.
O orgulhoso ganha o poder sem mérito e mantém o poder não se importando com os meios.
O orgulhoso diz que sabe para nunca precisar saber.
O orgulho é egoísmo, você convive com os demais para falar de si.
No orgulho, você corre atrás de um não e foge de todo o sim.
Orgulho é insistir num relacionamento errado para provar que tinha razão.
Orgulho é rastejar com as asas.
Por orgulho, desperdiçamos uma vida (já por amor, multiplicamos a nossa vida).
Quando é orgulho, vivemos a vida do outro. Quando é amor, jamais deixamos de ser.
O amor não precisa de provas, demonstrações, jogos e disputas, isso é coisa do orgulho.
No orgulho, nunca está satisfeito. No amor, você transborda.
O orgulho é um capricho, o amor é destino.
O orgulho é ego, o amor é generosidade.
O orgulho é mágoa, o amor é reconciliação.
O orgulho é ressentimento, o amor é fé.
O orgulho é se prender ao passado, o amor é escolha.
O orgulho é impor o seu projeto, o amor é alterar o seu projeto de acordo com a necessidade.
O orgulho se veste de amor, finge que é amor, é o clone do amor, é o sósia do amor, mas não é amor, é o fracasso do amor.
O orgulho é tão somente um ódio frio.

Poeta e cronista, autor de "Felicidade Incurável" (Bertrand Brasil)
Publicado na revista da Livraria Cultura, dezembro de 2016, edição 107, dossiê Sete Pecados, ps 52-53.

HINO DA DESPEDIDA

Foto de Gilberto Perin

Para Roberta Campos

O altar está arruinado, não há recompensa depois de amar, todas as palavras foram usadas e as mentiras já são velhas, não me venha com promessas, só me deixe passar, com licença, só me deixe passar, quero ir sozinho assim como nasci. Nascerei de novo até cansar de morrer.

Seu olhar perdido não me trará a vontade de lembrar. Seu riso desajeitado não me despertará a ansiedade do abraço. Sou agora insensível às chantagens. Só me deixe passar, quero ir, com licença. Teve várias chances dentro de mim e pensou que eu não iria quebrar. Não tem problema, sou mais leve aos pedaços, não pagarei excesso de bagagem.

Deixe-me passar. Não é ficando na minha frente que mudará qualquer desejo. Não é retornando ao passado que consertará os erros.

O que não percebeu: o perdão era fácil e bastava a sinceridade, o perdão era simples e bastava a verdade, o perdão sempre esteve guardado no sotaque ingênuo da infância.

Não há curiosidade, não há esperança, não enxergo vontade de tentar em seu lugar fingindo que eu sou você. Não somos dois, não seremos um.

Cansei de explicar o que você jamais fez. Cansei de justificar sua ausência. Cansei de estar em dobro quando vinha pela metade. Deixe-me. Nem o sol é educado, a luz vive atravessando a chuva.
Com licença, rir é também chorar, rir é quando a boca chora. Apanhei do amor, mas fui eu que apanhei o amor.

PREGO E PARAFUSO

Arte de Eduardo Nasi

Homem decide e pronto. Não olha para trás. Não faz repescagem. Pode ter vacilado, mas quando define uma posição assume e dificilmente entra em parafuso. Homem é prego, não fica girando nos mesmos temas. Óbvio que se arrepende, mas transforma o erro em silenciosa culpa e resignação. O orgulho não permite que se transforme em caranguejo. Voltar em suas considerações tem um preço alto demais para quem foi criado a não pedir ajuda.
Já a mulher, mesmo quando decide, não termina a dúvida. Continua com o dilema. Diz sim ou não, porém prolonga o plenário com as amigas. Sua resposta é provisória e apenas o início de uma longa conscientização. Acredita que pode pensar com calma, não se prendendo ao tempo. A data de validade de suas opções é eterna.
A preferência pela comédia romântica, recheada de vaivéns, desencontros e lacunas amorosas, é a prova de sua alma irresoluta. Não gosta de histórias fáceis e lineares – prioriza a superação de tabus e preconceitos.
A questão é que ela não encerra qualquer coisa que já foi discutida, o que enlouquece a ala masculina. Voltará com aquele ciúme explicado ou aquela cisma esclarecida.
Ela compra uma roupa e demora um mês para tirar a etiqueta mantendo intacta a possibilidade de troca. Cria uma ronda para ouvir diferentes contrapontos após o seu ultimato. Por isso nunca tem o rosto tranquilo de um destino convicto, mas sempre a intensidade febril de quem está optando. Pode ser uma incerteza de um mês ou de um ano, não apaga jamais o potencial de escolha. Deixa a porta entreaberta para liminares e mandados de segurança.
A cabeça feminina é um julgamento perpétuo do que deve ser. Não há o descanso da derrota e a comemoração definitiva da vitória. Está sempre reabrindo dilemas e cavando encruzilhadas.
Nunca confie que ganhou alguma causa com ela. O balbucio afirmativo do casamento será posto à prova na convivência, assim como uma viagem ou uma proposta de trabalho. Não há questões fechadas. Aceita primeiro para depois pensar melhor com os seus grupos. Coloca a esperança em xeque em nome do realismo.
Pensamento do homem quando morre é enterrado, tem velório e missa de sétimo dia. Pensamento da mulher quando morre ressuscita e tira as pedras do caminho.
Homem é ponto final, mulher é reticência.
Homem diz amém, a mulher diz “pois é”. São religiões diferentes.

INIMIGO SECRETO


Amigo Secreto merecia se chamar de Sofrimento Secreto.
Não tem como se divertir numa brincadeira onde seu principal desafeto pode lhe dar um presente. Ou você pode estar nas mãos do sujeito mais pão-duro do serviço. Como ficar à vontade se tirou o nome do seu chefe?
Nunca vi ninguém pulando de alegria, vibrando por participar da confraternização.
Amigo Secreto é uma praga do Natal, que saiu das empresas para estragar a ceia das famílias.
Amigo Secreto é trocar o presente espontâneo por um brinde. É trocar a loja pelo quiosque.
Amigo Secreto é ir a um rodízio de pizza para comer somente uma fatia.
A pior coisa do Amigo Secreto é quem faz suspense demais, pois aumenta a expectativa para diminuir a recompensa.
A pior coisa do Amigo Secreto é também quem não faz suspense nenhum, preguiçoso e sem vontade.
Todos erram as características na hora do anúncio. É um festival de constrangimentos.
Amigo Secreto oferece chance para os tarados cantarem suas colegas. É um karaokê aberto para péssimos poetas e piadistas.
A Lei de Murphy criou o Amigo Secreto. A lembrança que você recebe consegue ser muito menor do que o limite estabelecido. Você sempre será prejudicado. Terminará com um CD muquirana ou um pacote de meias.
Amigo Secreto é uma rifa sonhando ser Mega-Sena.
Amigo Secreto é fingir que você é feliz.

SOU A PRÓPRIA SESSÃO DA TARDE

Os hábitos da infância repercutem na vida adulta, desenham as nossas ambições.

O que poderia acontecer com a minha cabeça se passei a minha meninice inteira com os mesmos filmes?

Teria que surgir alguma consequência.

Fui vítima de uma divertida lavagem cerebral.

Não importa se o filme é ruim, vou até o fim. Não importa se já vi, continuo assistindo. A minha resiliência audiovisual é exemplar.


Posso virar madrugadas acompanhando uma história reprisada infinitamente, vacilo ao parar, fracasso ao apagar, simplesmente não durmo. O controle não é remoto para mim.

Sofri o efeito colateral da Sessão da Tarde. Atravessei um exaustivo treinamento militar.

Engraçado é que os dubladores se revezavam. Eddie Murphy e John Travolta dividiam igual voz, por exemplo, e jamais me prendi a esse detalhe.

Voltava da escola e, depois do almoço, o lazer consistia em acompanhar a programação da Rede Globo.

Como fica uma criança exposta excessivamente a uma única radiação mental? Só podia formar um zumbi.

Não era uma época de canais fechados, somente tinha cinco opções da rede aberta e ainda dependente do bom humor do sinal externo e do bombril na antena em cima do aparelho.

Acho que devo ter visto oito vezes As sete faces de dr. Lao, dez vezes A Lagoa Azul e umas quinhentas vezes Karatê Kid.

O que sou hoje é resultado disso. O que o circo do dr. Lao pode ensinar a um guri a não ser nunca subestimar o diferente? Já Lagoa Azul me infundiu o romantismo pegajoso. Karatê Kid fez com que enxergasse a faxina como um modo de fazer atividades físicas e marciais, coisa que nem a minha mãe conseguiu.

Não me esqueço de Splash uma sereia em minha vida, Curtindo a vida adoidado e Mulher nota mil. Sei de cor. Muito além do ocaso da carreira, os meus ídolos eternos permanecem sendo Daryl Hannah, Matthew Broderick e Kelly Le Brock.

Não havia escolha. Acompanhei a saga da cadela Lassie e sua sabedoria silenciosa. Atravessei os meus aniversários sucessivamente pedindo uma collie.

Lassie transformou-se em meu Harry Potter: A força do coração, A coragem de Lassie, Lassie de volta para casa e A magia de Lassie.

Venho de uma linhagem da previsibilidade e da reincidência.

Não duvide de mim, jamais deixo pela metade uma dor ou uma alegria porque é repetida. Sou capaz de me emocionar de novo apesar de conhecer o final.

DEPENDE DO PONTO DE VISTA


Ele já tinha sido um cantor de sucesso, tocado para ginásios com mais de 50 mil pessoas, fugido de fãs pelas saídas laterais, conhecido a fama de perto, a ponto de interromper selfies e autógrafos para não ser esmagado pelo público, aparecido no Faustão e no Jô Soares, agora ele mergulhara no anonimato. Ninguém mais comentava sobre seu trabalho, suas músicas não rodavam nas rádios, seus CDs não vendiam como antes, os seus bajuladores haviam desaparecido sob alcunha de falsos amigos.

Quando chegou para dar um show em restaurante no litoral gaúcho, só tinha três mesas ocupadas. Circulavam mais garçons que espectadores. Havia uma melancolia de circo desmontado, uma tristeza de cachorro manco, um dó de tempestade de verão, tanto que o seu assessor estava disposto a cancelar o evento.

O dono do local, prevendo que não contaria com lucro e antevendo o prejuízo com o pagamento do cachê, aproximou-se do artista e debochou: – É o fim de carreira, hein?

O músico não julgou o comentário, bateu afavelmente nas costas do sujeito e respondeu: – Pode ser fim de carreira ou reinício, depende do ponto de vista, eu comecei tocando para três mesas quando jovem.

Ele pegou seu violão, ajustou o microfone e fez a melhor apresentação de sua trajetória. Cantou com vontade, não se desanimou com a ausência de eco da multidão, pôs os braços para cima a chamar aplausos coreografados e lembrou letras prediletas e melodias antigas que não vinham à tona há muito tempo.

Quem o via não compreendia a performance entusiasmada, o turbilhão interno, a gana de vencer. Talvez até ficasse constrangido com o escândalo da alegria, absolutamente fora de um contexto vitorioso. Mas o cantor não foi prepotente com a vida, não tingiu um ponto final na fé, não confundiu vocação com ambição, não estacionou a voz na vaidade, não se apequenou com as adversidades, entendeu a escassa procura como uma reestreia.

Você pode encarar o problema como um fim ou como uma oportunidade, pode aceitar a solidão como um fracasso ou um novo nascimento, pode precipitar o fiasco ou transformá-lo em esperança.

Humildade é e sempre será otimismo.

O FIM DO SECADOR

Foto de Gilberto Perin

O fim moral de um time não é quando o torcedor abandona a bandeira, é quando o torcedor cansa de secar. O secador é a última esperança de vitória do torcedor.

Quando a situação está tão ruim que nem torcer contra o rival funciona. Você não tem como debochar e somente se cala. Você não tem como zoar e passa a ser repentinamente educado e ainda diz para o inimigo que ele mereceu ganhar. Não encontra mais nenhum motivo para galhofa. A CBF vira STJD e fica refém mais da atuação dos advogados e do tapetão do que aquilo que acontece no tapete verde do campo.

Ausenta-se do debate, pois a distância entre o triunfo e o abismo se mostra inalcançável. As piadas de secação tornam-se velhas e não existe uma argumentação razoável para fazer gozação.
O fim do secador dentro do torcedor é o desinteresse completo pelo futebol. Você perde com o próprio time e também perde com qualquer time que enfrente o adversário direto de sua cidade. Está órfão da sorte e descrente dos deuses da bola.

Como colorado, a depressão me espera. Já cansei de torcer para o meu time e também para o Atlético, o Coritiba, o Figueirense, o América... Só acumulo derrotas. Dependo mais de resultados paralelos do que do próprio desempenho do meu clube. Eu sou obrigado a assistir três partidas ao mesmo tempo para rezar contra o descenso. Não há superstição que vingue. Não há concentração que se mantenha firme diante de tantos focos. É necessário acertar a loteria esportiva todo o final de semana.

E ainda sofro o extremo da aflição de testemunhar o Grêmio campeão da Copa do Brasil enquanto corro o sério risco de jogar a Série B pela primeira vez. É o ano de pesadelo dos colorados. O Apocalipse do manto vermelho. O Juízo Final dos sacis. Já estou deixando de beber porque não vejo pretexto para comemorar, já estou me enfurnando nos assuntos familiares e domésticos porque não tenho com o que vibrar no estádio, a minha mulher e os meus filhos já me perguntam se não vou dar uma volta e sair um pouco de casa, não me aguentam colado 24h.

Saudade da flauta gremista. O silêncio dos outros é puro escárnio. Não encontram sequer motivo para brincar com o meu coração morto. O respeito é apenas pena.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

DESEJO, DESPEJO

Arte de Eduardo Nasi

Não suporto mais ouvir a sua voz. Não suporto mais que me olhe. Não suporto mais que segure a minha mão.

Não suporto que mexa no meu cabelo quando recém ajeitei a franja.

Você me irrita profundamente, insanamente.

Você me deixa louca, possessa, como ninguém jamais me tornou assim.

Não me reconheço mais.

Não suporto mais que concorde comigo por preguiça.

Não suporto mais que coloque suas músicas alto.

Não suporto que largue as roupas no chão.

Não suporto que finja arrumar a cama esticando o edredom até o travesseiro.

Não suporto que compre o que não precisava no mercado e esqueça o que realmente pedi.

Não suporto mais lhe ver sentado no sofá trocando de canal sem escolher um único programa.

Não suporto a sua falta de iniciativa para sair.

Não suporto você andando de cueca pela sala.

Não suporto a sua indecisão para definir o almoço e a janta.

Não suporto as suas promessas em aberto.

Não suporto lembrar de suas promessas vencidas.

Não suporto mais conversar com a sua mãe sempre me pedindo paciência.

Não suporto ter paciência.

Não suporto mais explicar o que estou fazendo.

Não suporto mais interromper a leitura para comentar se o livro é bom.

Não suporto mais dividir os meus amigos e repartir a felicidade que era unicamente minha.

Não suporto mais você cortando as  unhas em cima da mesa.

Não suporto os frascos abertos no banheiro, a pasta espremida no meio, a gilete suja na pia.

Não suporto mais a sua generosidade quando tem culpa, o seu orgulho quando erra.

Não suporto mais a sua mania de perder o celular dentro de casa, pondo-me a ligar para achá-lo.

Não suporto mais a sua educação na briga; soa falsa, soa cínica.

Não suporto mais você em minha frente, falando em minhas costas, dormindo ao meu lado.

A implicância é uma atenção extrema. Eu lhe desejava tanto, e hoje eu pretendo somente desaparecer, não existir mais em você, sumir dentro da caixinha do nome.

Quero gritar, socar seu rosto, bater em seu peito até cansar os braços e despertar a vontade de abraçar, beijar chorando, pedindo desculpa pela paixão desajeitada da nossa convivência.

Talvez a aversão seja uma outra versão do amor. Talvez eu entenda só agora o que é o casamento para tentar de novo.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

TEMPO EMOCIONAL


Quantas décadas passaram entre 29 de novembro, madrugada da tragédia da Chapecoense, e 30 de novembro? Em uma única data, correram quantas semanas?

Foi um pesar violento, que 24 horas e 365 dias não fizeram mais nenhum sentido para abarcar o que transcorreu na intimidade da existência de cada um.

Tudo o que aconteceu em outubro e setembro parece que está longe demais. Eu tenho que me esforçar para lembrar. Sinto que troquei de ano várias vezes em um ano, que me despedi das folhas do calendário em solitária noite.

O choque, o susto, a calamidade inspiram a reprisar o mesmo ato, de tal modo que você vive uma lembrança eternamente. Você recua e avança na recordação sem força para alterar o imponderável. O destino impacta a sua estabilidade, destrói o seu romantismo e nada mais é fixo e imutável.

O sofrimento nos deixa antigos. A dor nos envelhece rapidamente.

O tempo emocional se sobrepõe ao tempo físico. O tempo emocional é o que vigora nas palavras e na realidade sensível. É um fim de uma crença que chega antes do fim do ano, é o Réveillon silencioso de um ideal sem espocar de fogos nem brindes.

Não mudamos de idade, não mudamos a aparência, mas somos outros por dentro, amadurecemos forçosamente. É quando somos abalados por uma tristeza tão grande que a sensação é de que atravessamos a metade de um século em um piscar de olhos. Pode ser um desemprego ou um término de um romance, é algo que não esperávamos e que consome a nossa paz e rotina, que devora a nossa tranquilidade e não tem como fingir indiferença.

Choramos, acumulamos insônia e nos encolhemos no sofá em posição fetal assistindo ao noticiário, com os olhos parados naquilo que é passado e que também não se esgotou como futuro.

Quem já não perdeu um familiar e não acordou como se estivesse sonhando, não crendo, com a impressão do impossível experimentado?

Quem já não se separou de alguém que amava muito e não atravessou a mais funda desilusão? Toda renúncia entorta os relógios e adoece a solidão.

O tempo emocional sempre manda quando transformamos a nossa maneira de pensar a vida, quando a ingenuidade é assassinada, quando o nosso riso é mais difícil de sair dos dentes para os lábios.

Com a morte de Tancredo Neves abandonei a infância, com a morte de Ayrton Senna deixei a adolescência, com a morte dos Mamonas Assassinas ingressei na maturidade. A queda do avião com o time da Chapecoense talvez seja o meu portal para a velhice. Já seguro o guarda-chuva como uma bengala, apoiando o peso do país em meus ombros.

Publicada no jornal Zero Hora
Coluna p.4
6/12/2016

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

DOCE LAQUÊ


Nunca entendi a minha atração por salão de beleza.

Havia um mistério na neblina das escovas e dos secadores trabalhando, no adocicado do vento daquele refúgio de beleza.

Desde pequeno, quando acompanhava minha mãe, vinha a vontade irresistível de rondar as cadeiras na frente do espelho, onde as senhoras esperavam alegremente com seus bobes e revistas de fofocas. Não me entediava como a maioria das crianças, não queria retornar rapidamente aos brinquedos de casa. Agradecia a demora e o atraso do almoço. Nem a fome me incomodava.

O ambiente me hipnotizava, acreditava que fosse pelo brilho das tranças e pela altura surpreendente dos andares das cabeças femininas, mas abandonei a lembrança na caixinha de incompreensões da vida e segui em frente.

Quando a minha mulher apertou o spray fixador em seus cabelos antes de sairmos para uma formatura, eu quase tive um colapso de felicidade.

Discerni o feitiço: laquê. O que me inebriava no espaço dos cabeleireiros era o olor do laquê. As borrifadas de 15 centímetros de distância criavam uma aurora boreal em minha respiração.

Sou apaixonado por laquê. Melhor que incenso e aromatizador. Melhor que os toldos dos jacarandás na primavera porto-alegrense.

Por que não trocaram o nebulizador pelo laquê para curar a minha asma? Por que não me dispensaram das aulas de natação e das maçãs diárias?

Gastaria um laquê para perfumar a residência. Jogaria um laquê em cima de minhas roupas.

A vontade é ser um traficante de laquê. Viajar para a fronteira de Uruguaiana ou Santana do Livramento contrabandear laquê. Desviar todo o salário na compra de caixas de laquê. Forrar as prateleiras do banheiro de laquê.

Escrevo compulsivamente laquê, repito laquê freneticamente, em pleno turbilhão de viciado.

No salão, o laquê paralisava os penteados das mulheres e também o meu olfato. Eu planava no ar como um beija-flor ou Dadá Maravilha.

Pena que descobri tarde demais para um reposicionamento de carreira. Eu me daria bem salvando as tranças e os coques das clientes. Imagine o que seriam os meus penteados?

BASE OU TAMPA

Arte de Eduardo Nasi

No relacionamento temos pressa. A ânsia de acertar e ser compreendido. A ânsia do encaixe e de apaziguar as diferenças. A ânsia de espantar antigos problemas de convivência e afugentar implicâncias. A ânsia de ser feliz e não pensar mais no assunto. Às vezes o namoro e o casamento são compreendidos equivocadamente como abandono dos problemas amorosos e não são admitidas as divergências naturais de quem precisa se completar devagar.

Uma imagem interessante é o modo como a pessoa se movimenta pela casa.

Há aqueles que pegam o pote pela tampa, nem sempre a tampa está devidamente fechada, e o risco de cair e quebrar é imenso. O impulso é condenar o parceiro ou parceira  por não ter enroscado com cuidado o frasco, não percebendo que a fragilidade vem do próprio costume de impor pressa na rotina.

Há um segundo grupo, temerário, que antevê a queda e segura o pote pela base,  jamais dependendo dos demais. Não repassa a responsabilidade, muito menos gera discussões indevidas. Perde tempo olhando e manuseando o objeto com firmeza.

Diferente daquele que alça pela tampa e que, no afã de economizar tempo, perde grande parte do seu dia procurando culpados pelos seus atos.

A tampa é também aparência. Entra-se num romance sem uma base de amor próprio e calma para oferecer. Tudo é julgado instantaneamente e executado sumariamente, no atropelo do presente. Quebra-se o laço com muita facilidade já que não há a perícia da independência e da solidão para desembaraçar o que é de si daquilo que é da companhia. Ocorre uma simbiose prejudicial de identidades, longe de uma reserva emocional e de uma poupança que deve se levar para um relacionamento para não sobrecarregar o outro.

Casamento e namoro não são feitos somente daquilo que você vive com quem ama, mas tudo o que soube viver antes de amar e carregou para dentro da relação.