terça-feira, 8 de março de 2016

CAIXINHA DE MÚSICA



Nunca invejei as bonecas das meninas e o mundo em miniatura feito de casinha cor-de-rosa e armarinho com roupas esportivas, sociais e de gala.

Fui menino de futebol, de aventura, de molecagens, de fazer incursões no porão com lanterna, de desbravar terrenos baldios, de subir telhados e esfolar os joelhos, de chegar suado à sala de aula.

Mas morria de ciúme da caixinha da bailarina de minha irmã. Era um teatro de graça: levantava-se a tampa, girava a corda e a bailarina dançava Debussy em cima de um espelho. Não sei o que acontecia direito, eu me maravilhava, o cenário mudava a sequência das batidas do coração. O coração de pé no meu peito se ajoelhava de repente diante dos deslizamentos de cá para lá da coreografia.

Brinquedo lindo que repousava ao lado da cama e sempre me despertava uma vontade imensa de roubá-lo.

Eu queria para mim. Tentei as vias legais, pedir no aniversário e no Natal, trocar pela minha coleção de playmobil, só que o pai ria do pedido extravagante:

– Não é coisa de guri. É um porta-joias, Fabrício! Não tem sentido. Você não usa bijuteria.

O pai preocupava-se com uma possível afeminação de minha parte, não compreendia que foi o meu primeiro impulso claramente masculino e heterossexual: eu me apaixonei pela bailarina. Perdidamente. Lembro de seu pequeno rosto de avelã, o nariz arrebitado, os olhinhos brilhantes e o coque perfeito pronto para se desmanchar em nossa noite de núpcias. Eu desejava fugir de casa com a bailarina, casar e ter filhos. Estava imerso numa paixão pura, extrema, com a vontade de passar o resto da vida com alguém. Não importava que ela fosse pequena, do tamanho de minha mão, daria um jeito. A gente se apaixona primeiro, depois é que pensa se é possível ou não. O desejo cria realidades paralelas.

Sem a compreensão da família, eu precisava contar com a generosidade da irmã em me ceder apresentações. Antes de dormir, ia nas pontas dos pés ao seu quarto e implorava para que me mostrasse a música. Aquelas sessões de rodopios e voltas da bailarina provocavam suspiros. Não permitia acabar, como um livro que não se aceita o final.

– Mais uma vez, mais uma vez – gritava para a irmã, desesperado, após a décima repetição, procurando manter a chama rosa bailando o máximo possível na concha dos meus olhos.

Eu ainda hoje caminho pelas ruas de Porto Alegre com a esperança de ouvir Clair de Lune e ser reconhecido pela bailarina que tanto amei na infância. Juro que abandono tudo por ela.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6
08/03/2016, Edição 18467

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