quarta-feira, 18 de março de 2015

MESMO QUE CUSTE CARO

Arte de Eduardo Nasi

Não fui idiota, fui leal.

Não fui burro, fui sincero.

Não fui inconsequente, fui esperançoso.

Não fui distraído, fui confiante.

Não fui cego, acreditei em seus olhos.

Amor é jamais anular a possibilidade do outro de errar. Mesmo que custe mágoa, dor, ódio.

É viver com a porta aberta em vez de chavear pelo medo de perder alguém.

É não se prevenir, não controlar, não ser mais inteligente do que os fatos, não se proteger com ameaças.

É se oferecer inteiro, podendo ser enganado a qualquer momento. É se doar inteiro, permitindo que nossa companhia demonstre, dia a dia, quem ela é.

Só se valoriza a escolha pelo tamanho da renúncia.

Só há intimidade com liberdade dentro.

Só o amor ingênuo é verdadeiro.

Não fechei as palavras, não envenenei seus hábitos, não conferi seus horários, não fiquei lhe vigiando, não censurei seus gestos, não vasculhei seu passado.

Eu lhe dei todo o meu espaço, e todas as chances para você fugir.

Eu lhe dei toda a minha honestidade, e todas as chances para você me roubar.

Eu lhe dei toda a minha fé, e todas as chances para você me enganar.

Eu lhe dei toda a minha admiração, e todas as chances para você me trair.

Eu lhe dei toda a minha verdade, e todas as chances para você mentir.

Eu lhe dei toda a minha fé, e todas as chances para você me profanar.

Eu lhe dei toda a minha infância, e todas as chances para você me debochar.

Eu lhe dei todo o meu corpo, e todas as chances para você me agredir.

Eu lhe dei toda a minha imaginação, e todas as chances para você sumir.

Eu lhe dei todas as chances do meu mundo para você não usar nenhuma delas e me merecer.









Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
18/03/2015


SANTA INGENUIDADE

Arte de Maurice Prendergast

A polêmica na sala de aula é o uso ou não do celular pelo aluno.

Na minha infância de giz e lousa, o que incomodava o professor era o aviãozinho de papel que decolava do fundo da sala para pousar na lata de lixo.

Não havia web para nos distrair. A maior tecnologia que apareceu nos tempos de escola foi o lápis triangular, com faces definidas, que não mais rolava na mesa. Antes o lápis não tinha descanso, redondo e suicida, descendo a ladeira das classes (sempre inclinadas) e quebrando as pontas no chão.

Em seguida, houve uma nova implementação do lápis: o que vinha com desenho da tabuada. Ele se consagrou como uma das grandes invenções do material escolar. Roubou o reinado da borracha de duas texturas, que governava solitária o estojo de madeira. Poderia consultar os resultados na hora. Funcionava como uma cola oficializada pelo comércio e temida pelo magistério. Obrigou a vistorias detalhadas durante as provas.

Na árvore genealógica dos meus hábitos, vejo o lápis de tabuada como tataravô do tablet. Mudou o meu jeito de encarar a matemática. Deixei de enlouquecer com a decoreba. Ficava até chateado de apontá-lo e perder a multiplicação dos números iniciais.

Não duvido que soe como piada, mas ele simplificou a vida e aquarelou o universo rudimentar e franciscano da escola, onde os cadernos terminavam feitos em casa a partir de blocos simples.

Para entender a escassez, os temas preparados no mimeógrafo jamais vinham legíveis. Entregues com tinta fraca, apagada – de forte, apenas o cheiro do álcool.

Trabalho dobrado da professora, que nos alcançava as folhas falhadas para repassar linha por linha o que estava escrito. No fim, não fazia o menor sentido, rescrevíamos por cima de todas as palavras.

Depois chegaram os espirais, o apontador capacete, a caneta Bic quatro cores e a calculadora miniatura. Mas teria que repetir vários anos para viver essa fase de ouro. Não valia minha burrice.









Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 17/03/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18104

RESPEITO DISTANTE

Arte de Robert Falk

Ex não é para ser amigo, é para ser colega. Colega distante. Primo de terceiro grau.

Quando mencionado, deveria receber Sr. e Sra. na frente. Merecia ser tratado com o sobrenome. E o sobrenome de solteiro.

Ex não pode ser chamado por apelido.

Muito menos com o apelido que havia dentro do antigo relacionamento.

Mor. Momoi. Mimoso.

Não é para ficar de mimimi e papinho mole no Face ou no Whatsapp.

Não é para se encontrar para cafés e almoços.

Não é para dividir angústias senão parece recaída.

Não é para partilhar alegrias senão parece recalque.

É muito suspeito telefonar para o ex depois de uma briga.

É muito fácil confundir intimidade com sedução.

É muito perigoso procurar conselhos, sempre tendenciosos.

É também expor o atual relacionamento às fofocas maldosas.

Ex é passado. Não precisa de nenhum ex. Se precisasse, ainda estaria com ele.

Ex não pode ser amigo. Nem melhor amigo. Nem confidente. Só se ele mudou de sexo.

Como você vai contar o que incomoda na relação para alguém que você já transou antes?

Como você vai contar o que incomoda na relação para alguém que você já se separou antes?

Ex é Exu sem luz.

Seu melhor amigo é o marido. Sua melhor amiga é a esposa.  E estamos conversados.

Ouça o comentário na manhã de terça-feira (17/3), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:



SAIR PARA FESTA

Arte de Gustav Klimt

Quando nossa mulher está mais linda, não podemos nem chegar perto.

É ela se arrumar para uma festa, absolutamente desconcertante e sensual, que não podemos tocá-la.
É uma contradição: no instante em que ela se produz, perdemos a chance de namorá-la.

O romance é suspenso, estaremos apartados de sua beleza por algumas horas, afastados do templo, expulsos de qualquer chamego.

Uma parede de vidro desce entre o casal. Um biombo baixa entre os corpos.

Podemos enxergá-la, admirar de longe, elogiar e bater palmas, não nos aproximar.

É um divórcio simbólico, sentimental, justamente quando está maravilhosa, nos enchendo de orgulho por sermos os escolhidos de sua vida.

Trata-se de uma Cinderela para os olhos, não para as mãos. Um pavão com alma de porco-espinho, armada para se defender da gente.

Não podemos beijá-la na boca senão vamos borrar o batom.

Não podemos roçar os lábios nas bochechas senão vamos corromper a maquiagem e sujar a roupa.

Não podemos cheirar o pescoço senão levaremos todo o seu perfume.

Não podemos abraçá-la senão vamos abarrotar seu vestido.

Não podemos acariciar seus cabelos senão vamos estragar o penteado.

Não podemos alisar as coxas senão vamos desfiar as meias.

Não podemos andar naturalmente de mãos dadas já que estará de salto. E precisamos cuidar de suas unhas para não fazer nenhum movimento brusco e lascar as pontas.

Viramos amigos no momento de sair para um evento. Repentinamente amigos.

Éramos maridos um pouco antes, sem nenhum receio de envolvimento e tato, e agora os caminhos são inacessíveis.

Estamos impressionados, excitados, seduzidos, loucos para nos agarrar como na primeira vez, girar a chave da boca pelo segredo do coração, mas não existe como, temos que nos controlar e nos prevenir de silêncios, ela demorou o dia inteiro para se vestir e se esmerar, não há como jogar fora a produção e a longa vizinhança do espelho.

Somos cúmplices da beleza. E também vítimas da beleza.

As mulheres não compreendem por que os homens buscam sair da festa mais cedo, o quanto ficam emburrados, embirrados, de canto, mudos e paspalhos, o quanto são estraga-prazeres no melhor dos brindes e das músicas.

Não é ciúme, mas saudade. Não é inveja, mas nostalgia. É o desejo mais banal de ter sua esposa de volta.

Respeito os sentimentos masculinos. Só que, no fim das contas, agimos de modo egoísta e machista. Temos a mulher todo o tempo conosco, e não percebemos que, naquela noite, ela se arrumou para si, para brilhar sozinha, é um momento dela e para ela. Não atrapalhe com sua ansiedade.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.28
Porto Alegre (RS),  15/03 /2015 Edição N°18102

sexta-feira, 13 de março de 2015

AMOR E TORTURA

Arte de Edward Burne-Jones

Há uma diferença na relação entre amar e torturar e muitos se confundem.

Amar é ficar satisfeito com a presença. Torturar é ser insaciável.

Amar é sempre dizer que  já tem o suficiente. Torturar é sempre pedir mais e chamar atenção para aquilo que não recebeu.

Amar é conter o ciúme. Torturar é não deixar sair.

Amar é sentir saudade e fazer declarações. Torturar é não mandar notícias.

Amar é assumir a responsabilidade. Torturar é culpar.

Amar é festejar a simplicidade. Torturar é complicar a conversa.

Amar é recordar os momentos felizes. Torturar é lembrar as discussões.

Amar é evidenciar as qualidades de nossa companhia. Torturar é censurar os defeitos.

Amar é acalmar. Torturar é implicar.

Amar é fazer tudo para dar certo, torturar é fazer tudo para dar errado e ainda dizer que avisou do pior.

Quem ama quer ser melhor para o outro. Quem tortura quer ser melhor do que o outro.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (13/3), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:



O PODER DO SACRIFÍCIO

Arte de Eduardo Nasi

Sempre há os presentes que vêm com a culpa.

Um sacrifício para consertar as falhas.

Pela renúncia, reconhecemos se o outro está pesaroso ou não, se as desculpas são realmente sinceras.
Quem não oferece nada em troca não está disposto a se retratar e cometerá a reincidência.
Não é apenas lamentar o que aconteceu, mas corrigir com uma ação. Doar o mais nobre de si para reequilibrar a perda.

O aprendizado veio da infância.

Movido pela curiosidade insaciável, meu irmão Rodrigo desejou inspecionar o funcionamento do cuco. Aguardou o passarinho sair de sua casinha ao meio-dia para ver como ele estava colado.
Só que puxou forte a ave de madeira, a ponto de ficar com ela em sua mão e o trampolim retornou vazio para dentro do relógio.

Bateu uma mímica, desespero mudo, pura sucção das palavras. Ele me encarou com medo, perguntando em silêncio: — E agora?

Eu estiquei os olhos como se fosse uma boca gritando. Tampouco reconhecia uma saída. A peça era herança de nosso avô, já falecido, e desfrutava honras de altar.

Para agravar a situação, ele esfacelou o cuco. Quebrou a figura frágil das nossas badaladas. Não havia como simplesmente pôr de volta.

Precisávamos descobrir uma saída em doze horas, quando o cuco cumpriria seu expediente de canto.
Almoçamos constrangidos e nos reunimos no porão para definir o conserto.

Eu distrairia a mãe enquanto o Rodrigo carregaria a escada e acharia um modo de arrumar o estrago.
Como? Ele teve uma ideia, seria surpresa, me disse, estava disposto a me poupar do sofrimento, veria à meia-noite.

Na hora do cuco abrir a porta, veio um playmobil em seu lugar. O boneco bombeiro, de máscara e mangueira. O som dublado tornava sua posição ainda mais engraçada e patética.

Eu quase morri rindo. Não represei as cócegas e os coices do pulmão. Minha gargalhada despertou a mãe, que terminou descobrindo a malandragem.

Pegou o Rodrigo pelas orelhas e perdemos o contato com irmão durante semanas. Preso na solitária do beliche, sem mesada, proibido de conversar, comprar selos no mercado, passear e jogar futebol.
A mãe não aprofundou o entendimento. Não foi justa. Não estudou a natureza do erro.

Rodrigo escolheu seu melhor brinquedo, seu bonequinho favorito para substituir o cuco. Poderia pegar qualquer um menos importante. Mostrou-se desolado com a desobediência e buscou o que mais gostava no quarto.

É uma sutileza que faz a maior diferença. Dependendo do que se é alcançado e feito, prova-se a pureza do arrependimento.

Rodrigo merecia o perdão. Jamais contei com uma chance para interceder a seu favor.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
11/03/2015


terça-feira, 10 de março de 2015

OS AMORES MORTOS NO LUSTRE

Arte de Antonio Saura

Você só se dá o trabalho de tirar o lustre quando a lâmpada queima.

É sempre quando ela estoura. Pode levar meses ou anos para desenroscar a redoma.

Ninguém limpa o lustre se a lâmpada não queimar. Não recebe o cuidado semanal das janelas e dos espelhos.

Mesmo enxergando camadas negras de insetos no vidro transparente. Mesmo que o lustre seja um cemitério de asas, um vaso de mariposas mortas.

Por preguiça, para não buscar a escada e interromper a rotina, para não se incomodar em apagar a energia, porque parte do princípio de que nenhum louco ficará conferindo esses detalhes no teto.
Somos iguais com os assuntos amorosos.

Quando a relação está acesa, não nos mexemos, ainda que esteja falhando. Não limpamos, não realizamos a manutenção, não nos preocupamos em nos antecipar com gentilezas e prevenir danos, não questionamos se a nossa companhia está feliz daquele jeito, não eliminamos os aborrecimentos pontualmente.

Esperamos a luz estalar até apagar de vez, para assim remover a sujeira. Esperamos o filamento de tungstênio romper seu ciclo, de tanto ligar e apagar o interruptor, para cuidar dos restos.

Agimos pelas necessidades imediatas, por urgências profissionais e familiares.

A casa é feita para funcionar, a relação é feita para funcionar, não mais para gerar beleza e poesia.
Somente nos importamos se os canais a cabo estão em dia, se o wi-fi navega, se a geladeira continua gelando. Bastam sexo e fidelidade no casamento e seguimos adiante. Nada pode adiar o nosso calendário. As distrações atrapalham. Ignoramos os suspiros dos objetos.

Não gastamos mais tempo com bobagens do lar. Não desperdiçamos tempo com conversas despropositadas de noite, brincadeiras e lembranças à toa, tudo o que tem que ser dito deve ser importante, girando sobre emprego ou agenda. Não queimamos nossa atenção com besteiras como retirar os bichinhos desenganados do lustre. É um capricho, pode esperar, não há pressa, não existe motivo para se preocupar.

Somos apenas o que pode ser visto. O que brilha. O que traz reconhecimento. O que pode ser elogiado. Dedicamos à nossa vida aos grandes feitos, limpar o lustre constantemente não trará recompensa, será chamado de maníaco por limpeza, debochado por não ter mais o que fazer.

Quem ama e cuida do seu amor é o que olha e lava o lustre antes de a lâmpada queimar, antes de a relação chegar ao fim, mas para renovar a transparência da vida dentro de residência.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 10/03/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18097

PEQUENO SOLDADO

Arte de Pablo Picasso

Guardamos aquela imagem do parto: a mãe abraçando o filho logo quando ele solta seu primeiro grito, o pai se emocionando junto, o rio feliz de lágrimas, os sapatinhos de crochê na porta.

Mas nem sempre é assim: quando o bebê é prematuro não vai para casa com os pais. Fica numa incubadora no hospital.

Foi o que aconteceu com o casal de amigos Pedro e Daniela.

Nasceu Lucas, mas a mãe não podia estrear suas canções de ninar, não podia confortar as cólicas ou definir a cor dos olhos, não podia sentir o cheiro da cabeça, não podia amamentar, não podia tocar em sua criança.

O filho nasceu, mas não estava com eles. Não tinham a certeza. Não tinham a tranquilidade do berço e da residência, não tinham como usar o enxoval e comemorar, não tinham como receber os amigos e os avôs.

Era uma angústia enorme. O filho veio, porém frágil demais para se manter longe do respirador.
Não há maior provação. Passaram meses da gravidez esperando cuidar do bebê. Quando ele surge, morrem de saudade de novo.

A gravidez demorou mais de um ano, na verdade.

Poucos corações aguentam. Como se estivessem adotando o filho do próprio sangue. Como se o amor fosse feito em prestações.

Hoje Lucas ganhou os braços dos pais e finalmente conhecerá seu novo lar. Depois de três meses entre a vida e a morte.

O que posso garantir é que, após esta experiência, os pais serão fortes e unidos como nunca, mais cúmplices, mais atentos.

Sorte do Lucas, esse pequeno soldado da esperança.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (10/3), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

E A POLIGAMIA?

Arte de Wilfredo Lam

Se a poligamia fosse lei, nada seria fácil.

Alegria em excesso desanda em embriaguez e termina em ressaca e dor de cabeça. O prazer em dobro triplica a incomodação. Imagine vocês, mulheres, com a possibilidade de se casar com dois homens.
Marmanjo junto é máfia de criança. Eles ficariam na sala jogando videogame nas folgas, gritando, bebendo cerveja e pedindo mais uma revanche.

Voto minoritário na programação, perderia o comando da tevê, não contaria com a complacência para assistir a seriados e filmes românticos.

Seus dois maridos seriam melhores amigos, alimentariam segredos entre si e responderiam tudo de maneira monossilábica para evitar discussões. Restaria o chuveiro para chorar.

A privada nunca teria a tampa abaixada, os frascos e as garrafas jamais estariam bem fechados, as bandejas de gelo morreriam vazias.

Os homens de casa fariam aquelas porquices masculinas – arroto, flatulência, palitos e cotonetes sujos em lugares improváveis – e passariam o dia impunes porque estariam em maioria dentro da residência.

Uma toalha molhada na cama irrita, agora ponha duas em sequência e os lençóis formarão um repentino banhado. Pense o que seria dirigir um carro com dois copilotos palpitando sobre o melhor caminho ou pressionando para estacionar numa vaga do tamanho de uma bicicleta?

Raciocine a frustração de aparecer com corte novo no cabelo e nenhum dos dois reparar a mudança. Mentalize o constrangimento de dissuadir sexo ao despertar com dois homens excitados roçando suas pernas quando você ainda nem escovou os dentes ou tomou café da manhã.

Pois é. O paraíso mora dentro do inferno.

Agora sonhem vocês, homens, com a chance de subir ao altar com duas mulheres ao mesmo tempo.
O que significaria contentar duas sogras? Aguentaria almoçar na casa de uma no sábado e depois em outra no domingo? Sabe o desespero que é quando uma mulher não consegue hora com sua manicure? Pois preveja duas não conseguindo um encaixe e entrando em pânico.

Multiplique a demora para sair a uma festa, tem paciência? Acompanharia a dupla pelo rali dos provadores dos shoppings? Onde deixará suas roupas ao dividir o armário com duas mulheres? Na despensa da cozinha? Dentro de uma mala debaixo da cama?

Se é uma maratona fazer uma mulher gozar, como satisfazer duas? Não poderia pregar os olhos antes de cumprir a tabela. E não invente de adiar o prazer de uma delas para o dia seguinte sob o risco de difamação.

Seria obrigado a decorar duas datas de aniversário, de início de namoro, de primeiro beijo, de primeiro abraço, de primeiro jantar, de primeira festa, afora peculiaridades de gostos e tamanhos da roupa. E nunca poderia confundir a com b, o que geraria uma crise ciumenta sem precedentes.

Casado com duas mulheres, gastaria metade de seu tempo curtindo e comentando as fotos delas nas redes sociais. E ai se visualizasse uma mensagem no whatsapp e não respondesse no ato. Ou se respondesse uma e esquecesse a segunda.

A exclusividade é um luxo. Não reclame de monogamia. Não é à toa que o Carnaval só dura quatro dias.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  8/03 /2015 Edição N°18095

NÃO É PENICO

Arte de Zdzisław Beksiński

Sempre que chega um novo aplicativo, há um exagero. Torna-se moda e perdemos os limites do bom senso.

Whatsapp é um dos casos da falta de controle.

Ele tem a importância de um telefonema, o que aumenta sua moderação. Não dá para ficar mandando mensagens de madrugada. Apitará no ouvido do sujeito, criando um pânico desnecessário.
Há a idéia de que ele é um mural digital como o facebook. Mas não, incomoda se não é urgência. E nunca é urgência. Quem tem urgência liga.

E nem vem dizer que a pessoa pode ler quando quer. Todo mundo verifica se a mensagem foi lida e termina chateado se ela não foi respondida na hora.

Whatsapp é para ser usado com reserva. É feito para quem é amigo. Mas está sendo usado como email. Desconhecidos aparecem do nada puxando conversa, trocando vídeos, mandando fotos ou dividindo sua insônia.

Não é porque tem o número da pessoa que isso é uma autorização para metralhar com o whatsapp a todo momento.

Podíamos começar uma campanha: meu whatsapp não é penico.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (6/3) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 4 de março de 2015

HORROR!

Arte de Eduardo Nasi

Quantas mudanças dentro de uma mudança?

Você precisa encaixotar os pertences e depois desencaixotar. Precisa enfrentar a seleção do que abandonará na residência antiga e depois outro descarte no novo paradeiro. Por baixo, são quatro mudanças.

Tenho pena dos militares e dos concursados, que migram indefinidamente de lugar.

Colocará no lixo o que sempre adiou, ressuscitará o que não imaginava que fosse possível.

Quando confia que finalizou o frete, esqueceu uma gaveta e já interrompe o rigor da sequência. A vontade é jogar tudo fora para não mais se preocupar em condicionar, embalar e registrar.

Mesmo que descreva o conteúdo em adesivos, acabará se confundindo. Por mais que você organize para não sofrer contratempos, fracassará em algum momento. Algo vai quebrar, algo vai estragar, algo morrerá impunemente.

Mudar-se de casa é falsificar uma graduação de biblioteconomia, é forjar um diploma de arquiteto.

Descobrirá que o desespero não tem portas. É ser perseguido por si mesmo, vigiado, censurado e odiado pela sombra que foi um dia na vida.

Entrará num perfeccionismo violento que trará erupções na pele e o retorno das espinhas da adolescência.

Aguentará uma tensão máxima ao tocar nos mínimos objetos. Só o esforço da memória é para deixar qualquer um exausto: onde comprei, onde ganhei, qual o significado, presente de que relacionamento?

Será vítima da radioatividade das lembranças. Atravessará uma viagem mental de décadas num piscar de olhos. Mudança significa hipnose regressiva. Mexer em fotos, mexer em cartas, mexer em restos de amores: são experiências de alto risco emocional.

Podemos transitar do ódio à esperança em frações de segundos, dos dez aos trinta anos em instantes.  Traumas ressurgem do nada, felicidades respiram soterradas no armário.

Eu tenho muito cuidado ao cumprimentar alguém que passa por este desafio. Nem toco nos ombros. A pessoa pode estar à beira de um colapso. Descabelada, insone, bafo de jaula.

Não dorme, não trabalha, não come, não transa, absolutamente concentrada em terminar o deslocamento. Obcecada em limpar o caos e desafogar o colchão da ameaça dos trastes.

É um psicótico cuspindo ácaros. Um sem-terra no meio da estrada das panelas. Um acampado submerso na enchente de papéis.

Não converse com quem está alterando o endereço. Não comente nada. Não suspire perto.

Deveria existir uma licença de emprego de dez dias, no mínimo. Porque é condenado a um plantão de 24h em seu prédio, aguardando as entregas. É esperar a rede telefônica instalar o aparelho, é esperar os caminhões das lojas, é esperar o eletricista, e nenhum dos envolvidos diz qual horário aparecerá.

Não pode sair. Não pode fazer mais nada da existência. Pensa que organizará a bagunça em uma semana, mas desiste e põe parte das caixas num quarto fechado para cuidar disso num final de semana que nunca vem, que nunca virá, até a próxima mudança.








Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
04/03/2015


terça-feira, 3 de março de 2015

DEVOLVA-ME

Arte de Marciano Schmitz

O sotaque da terra natal desarma os ouvidos mais duros, suaviza os corações mais indóceis.

É encontrar um conterrâneo e já voltamos a falar como na infância, apesar de longo tempo distante. Não precisamos nem de cinco minutos de conversa para reaver o tom, o chiado, as expressões, os acentos.

Nada é mais reconfortante do que o contato com a pronúncia de onde nascemos. Ainda mais quando passamos temporadas fora do nosso Estado.

Caio, engenheiro natural de Uruguaiana, há três décadas nos Estados Unidos, foi vítima de um câncer nos ossos. Nenhum tranquilizante era capaz de amenizar as dores e levantá-lo do cansaço ultrajante do fim. Estava se entregando. Indo embora. Fez um pedido extravagante para sua mulher. Um último pedido. Reivindicou para sua esposa americana um mapa do Rio Grande do Sul. Tinha que ser de papel. Mapa rodoviário de estrada.

Como quem procura um medicamento inédito diante da falta de efeitos, ela nem questionou. Aquilo seria fácil para que mora em Porto Alegre, possível de comprar em qualquer tabacaria, mas em Austin, não, não podia ser mais raro.

Ela encomendou com os irmãos de Caio, que moravam em Caxias. Cobriu tudo o que é despesa aérea para agilizar a entrega.

Quando Caio recebeu o mapa, recobrou a cor da pele e desafiou os familiares com uma energia extra.

Era um outro homem repentinamente. Com intimidade de uma camisa antiga passada pela mãe, desdobrou o papel e cheirou a superfície.

As linhas azuis dos rios bem que poderiam ser a cartografia saliente de suas veias.

Pegou os óculos e passou a ler as cidades por ordem alfabética:

“Água Santa, Agudo, Ajuricaba, Alecrim, Alegrete, Alegria, Alpestre, Alto Alegre, Alto Feliz, Alvorada, Amaral Ferrador, Ametista do Sul, André da Rocha, Anta Gorda, Antônio Prado, Arambaré, Araricá, Aratiba, Arroio Grande, Arroio do Meio, Arroio do Sal, Arroio do Tigre, Arroio dos Ratos, Arvorezinha, Augusto Pestana, Áurea, Bagé...”

Começou a rir, tossia e ria, absurdamente feliz. Estava reeducando os ouvidos.

Sua voz falhava e não desistia, insistia tal piá empinando pipa. Os olhos lustrosos e corajosos dando cada vez mais corda ao horizonte, segurando firme cada palavra, não se entregando às puxadas do minuano.

Morreu recitando os 497 municípios, numa viagem particular pelas curvas e estradas de seu timbre.

Quem me contou esta história foi seu filho Daniel. Mas só acredito porque sou gaúcho.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 3/03/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18091

NÃO MAGOE O BICHINHO


Arte de William Strutt

Não dê cachorro ou gato para sua namorada ou namorado. É uma escolha pessoal. Pode ser fofo, bonitinho, mimoso, mas você não tem como atropelar a convivência

Não é uma roupa que erra o número ou um cd que pode ser trocado na loja.

Bicho não é brinquedo, não é passatempo, não é um produto de consumo, mas cuidado em tempo integral.

Está transferindo responsabilidades, obrigando o outro a mudar e adaptar sua rotina.

Oferecer um animal de estimação não é um ato de amor, e sim demonstração de egoísmo. Pretende surpreender a qualquer custo. Para agradar, não pensa nas consequências.

É uma chantagem emocional de última categoria. Uma brincadeira de mau gosto.

Deve supor que o bichinho vai crescer, incomodar, ter personalidade, pedir espaço.

É para toda a vida, não somente para o relacionamento.

Pois é muito triste quando o casal se separa e o cão ou o gato acaba ficando sem ninguém, enviado para adoção ou abandonado, pois nenhum dos dois quer se lembrar do ex.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (3/3) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

RESPEITO ROMÂNTICO

Arte de Cândido Portinari

Eu amo tanto minha mulher que temo dizer que estou feliz quando estou sem ela. Até porque não sou inteiro mesmo. Não considero justo. Não condiz com à realidade.

No momento em que ficamos distantes, por viagem ou motivos profissionais, não esnobo, não me gabo, não exagero a felicidade. A saudade não deixa.

Respondi que o passeio foi dentro das expectativas, o restaurante foi gostoso, a noite com os amigos foi agradável. Nada demais. Não faço propaganda da minha eventual saída, não existe nostalgia da autonomia de solteiro, muito menos a necessidade de gerar ciúme e criar comparações. A discrição é demonstrar cuidado com o nosso par.

Não omito, realmente não me sinto confortável em ser melhor quando ela não está junto. E não sou. Sou um quase bem simpático.

É uma questão de respeito romântico. Elogiar excessivamente o desapego equivale a subestimar sua presença tão marcante ou subentender que ela não é necessária.

Não me envergonho da dependência, posso ser classificado como alguém sem liberdade e submisso. Alguém sem vida própria. Não acho que é isso. Talvez seja antiquado, herdei valores familiares e uma etiqueta de relação que não abdico. Privacidade corresponde a proteger quem amamos de nosso orgulho e soberba. Escolhi viver com ela e, apesar de afastado por alguns dias, continuo vivendo com ela. Longe ou perto, não mudo em nada da minha mentalidade casada.

Qual a graça de contar vantagem? Nenhuma. É mais uma implicância do que uma verdade.

Há sempre uma ponta de melancolia em minhas andanças sozinho, uma brisa fria a sussurrar em meus ouvidos o quanto ela gostaria daquele espaço.

Eu me torno um olheiro sentimental de nosso casamento, conheço paisagens e locais só para depois mostrar para ela. Minha função é recrutar alegria para nós - e descobrir o que provocará seu arrebatamento. Transformo a visita solitária em convite a dois: "Passei por um lugar que vai adorar, pensei na gente".

E o mais bonito é que ela faz o mesmo, sem jamais combinarmos a troca de gentilezas.



Publicado na Revista Isto É Gente
Edição Bimestral
Feveiro 2015
Ano 15 Número 716
São Paulo (SP)

SUPERPODER

Arte de Paul Klee

Todo mundo é super-herói. Todo mundo tem um poder especial. Uma característica que transforma a existência.

Pode ser uma virtude disfarçada de defeito. Pode ser algo de que você não gosta em si.
Quando conheço alguém, sei que estou desvendando um superpoder por detrás da aparência e da normalidade, uma vida multiplicada por um talento.

No jardim de infância, tinha a Bárbara, que odiava sua boca carnuda. Recebeu o apelido de flor carnívora. Mas foram justamente os lábios desenhados com volúpia que fizeram com que virasse modelo de sucesso. Recordo também de Daniel, na adolescência, com dificuldade de se expressar em público. Abominava sua timidez, gaguejava quando pressionado. Pois sua retração fascinava as mulheres, que o rodeavam e falavam por ele. Não existiu um garanhão igual na faculdade.

Conservamos um trejeito em particular que revela nossa personalidade. Já vi muita gente simples com o superpoder da esperança, capaz de enfrentar diagnósticos terríveis e a morte próxima. Ou com o superpoder da paciência, desarmando brigas com uma voz mansa e calma, sem jamais levar o desaforo para o lado pessoal. Ou com o superpoder da fé, cumprindo quilômetros de joelhos em nome de uma promessa.

Há feirantes com o superpoder do grito, atraindo compradores à distância. Há ambulantes com o superpoder do tempo, farejam pela cor da nuvem ou pela arruaça dos pássaros se choverá dentro de quinze minutos e se devem levantar a barraca. Há quem tenha o superpoder de localização, de tanto andar de ônibus, e palmilham a cidade de olhos vendados.

Minha empregada Cleonice, por exemplo, tem o superpoder da risada. A casa está tensa, acabrunhada, e ela aparece cortando a atmosfera com seu bom-dia risonho. Abre as janelas e as portas ao arejar os humores. O filho Vicente mantém o superpoder dos cílios enormes. Observa de um modo tão misterioso, com aquele olhar de árvore, que logo precipita a eloquência dos familiares – sempre está em vantagem na captura de segredos. Já Mariana guarda o dom da irreverência: dramática, passional, intensa, ela sente o mundo duas vezes mais do que a média. Dela, receberá as mais bonitas, sinceras e corajosas declarações.

O ideal é que seja amado pelo seu superpoder. Descobrir alguém que identifique sua fraqueza, e a reconheça como estimulante, apesar de ser um empecilho no entendimento da maioria.

Se bem que o amor torna qualquer um poderoso.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.28
Porto Alegre (RS),  1/03 /2015 Edição N°18088