quarta-feira, 28 de outubro de 2015

FILHOTE DE URUBU

Arte de Eduardo Nasi

Nada era mais importante do que não ir para aula.

Criança faz vodu, reza por tragédias, assina pacto com a preguiça. Tudo para não se levantar cedo e enfrentar cálculos e regras de português.

Quantas vezes torci pela paralisação do magistério, absolutamente indiferente às reivindicações mais que justas?

Os professores enfurecidos e eu absolutamente alegre. Os professores badalando sinetas na Praça da Matriz e eu com o badalo da língua em um sorvete italiano de máquina. Não tinha nenhum engajamento ou compaixão, apenas pensava em mim com o egoísmo puro de um Anticristo. Mentalizava para o Governo jamais atender o aumento salarial da categoria, resmungava ofensas, mais intransigente do que o Secretário da Fazenda. Acompanhava a votação no Gigantinho aguardando, fervorosamente, os braços estendidos da multidão de servidores. Como amava a greve! Azar que perderia as férias em seguida, que as aulas avançariam janeiro, eu me interessava pelo prazer imediato.

Festejava porque me permitiria assistir O Balão Mágico a manhã inteira. Não precisaria me preocupar em despertar, tomaria o meu Nescau tranquilamente, e ainda poderia jogar videogame com os amigos.

Estudante é bicho triste. Comemora doença, hecatombe, confusão em nome de uma folga e de um feriado imprevisto.

Minha mãe chorava com a morte do Papa João Paulo I numa quinta-feira e eu ria à toa devido ao luto e ao sábado e domingo de graça no meio da semana.

Não fui um menino bom, fui um urubu de pequeno, um corvo disfarçado de gente.

Quando faleceu Tancredo Neves, o primeiro presidente civil do Brasil depois de 20 anos de ditadura, eu dei um pulo de gol na sala. Um urra de contentamento. Um soco no ar de Pelé. Lembro do porta-voz da presidência, Antônio Britto, noticiar, com voz pesarosa, o fim prematuro do nosso líder político: “Lamento informar que o excelentíssimo senhor presidente da República Tancredo de Almeida Neves…”

A família inteira fungava, perplexa, no sofá da sala, e eu não pertencia àquele quadro de consternação. Enxergava o benefício pessoal do enterro e da comoção nacional.

Aconteceu na noite alta de um domingo, 21 de abril de 1985. Estava começando a revisar conteúdo para a prova de matemática. No momento do anúncio fúnebre, não me contive de entusiasmo, joguei o caderno para cima. Não haveria prova, não haveria escola aberta, não haveria nenhuma obrigação. O país parou e me deixou livre para brincar. Lembro de ter dito, baixinho: “Obrigado presidente, morreu bem na hora”.

Arrependimento só não mata criança.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 28/10/2015

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