terça-feira, 30 de junho de 2015

OS PÁSSAROS

Arte de Rafal Olbinski

Quem não vem gostando dos jogos às 11h no domingo são os pássaros do Beira-Rio. As pombas e os quero-quero estão revoltados. Mexeram com as escalas entre homens e animais. Que história é esta de aparecer antes do almoço e estragar o churrasco de minhoca?

Completamente irritadas, absolutamente transtornadas, as aves parecem dizer:

- O horário é meu! Vocês, jogadores, só devem surgir depois das 15h, é assim desde o início do campeonato brasileiro.

Elas voam de um lado para outro, dão rasantes nos torcedores, arrulham para que a torcida vá embora e somente entre nas arquibancadas de tarde.

Os dirigentes colorados e a CBF não combinaram com os pássaros as partidas nas manhãs dos finais de semana. Foi um grande erro, o que talvez gere um desequilíbrio ecológico.

Tomaria cuidado com a invasão em campo. Poderemos assistir uma refilmagem do clássico de Hitchcock.

Ouça o que falei na manhã dessa terça-feira (8/6) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

ALADIM DOS CAPRICHOS IMPOSSÍVEIS


O ansioso não é ansioso por ele, mas pelos outros.

A ansiedade é raciocinar pelos outros, é concluir pelos outros, é resolver pelos outros.

Você escuta algo, toma aquilo como uma missão e deseja concluir rapidamente para voltar a pensar em si.

A ansiedade é uma generosidade inventada pelo egoísmo.

A ansiedade é correr contra o tempo com o propósito de voltar a ter seu próprio tempo.

A ansiedade é a compulsão de atender às expectativas de quem está do seu lado para retornar aos cuidados de suas próprias expectativas.

O dilema do ansioso é que procura agradar à sua companhia para não ser criticado. Mas sempre está a fim de algo pessoal que não sobra tempo.

É alguém que come o pior do prato e reserva o melhor para o final. Certamente a comida predileta restará fria na hora de ser garfada.

Não há discernimento entre o que é importante e o dispensável. Tudo é urgente, tudo é motivo de aflição, tudo é uma perigosa avaliação de seus atos.

A próxima atividade, apenas por ser a próxima, é de absoluta premência. O pequeno e o grande têm o mesmo valor. O simples e o épico têm igual medida.

O problema do ansioso é que ele converte qualquer solicitação em prioridade. E como só consegue começar uma tarefa quando terminar a anterior, sua rotina transforma-se em gincana.

Ninguém está pedindo ou solicitando nada, só que ele se posiciona como o provedor do universo, como o telepata do casamento, como o Aladim dos caprichos impossíveis.

Como se fosse um marido saciando infinitamente os rompantes esquisitos de sua esposa gestante. E sua esposa ainda nem está grávida.

O ansioso é carente, pois nunca se julga satisfeito consigo.

O ansioso é insaciável, pois não para nem para comemorar seus feitos.

O ansioso não avalia as possibilidades, ele prefere descartá-las cumprindo uma por uma.

Se a mulher comenta que precisam comprar roupa de cama, incorpora as palavras dela como uma ameaça e pretende amanhecer na loja e se desobrigar da tarefa.

Mas ela não falou para realizar naquele instante, era uma intenção para ser cumprida durante o mês, mas o mês para o ansioso é ontem e ele não admite esperar. Ele não suporta acumular planos. Plano é tensão, plano é pendência, plano é uma decepção agendada.

Parte da hipótese de que senão fizer agora não fará nunca mais. Mas é mentira. Ele faz rapidamente porque odeia ter compromissos em aberto. Abomina ser pressionado e se pressiona terrivelmente. Ele se cobra para não ser cobrado.

Seu prazer está em finalizar os atos, não em desfrutá-los. Perde o melhor da vida que é não se preocupar naquilo que virá depois.

O ansioso é um doente terminal com excesso de saúde. Morre de uma doença imaginária.




Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  07/06 /2015 Edição N°18186

ESTRANHAMENTOS


                                                                               Arte de Eduardo Nasi

Vazamento é parar sua agenda.

Minha cozinha estava ensopada devido a um encanamento quebrado da vizinha de cima.

Ivania, a médica do prédio, não tinha como tomar banho ou ligar a pia da cozinha, senão meus tapetes viravam canoas.

A urgência do contratempo fez com que seu hidráulico baixasse em meu apartamento como um relâmpago. Apareceu mais rápido que azulzinho em período de campanha.

Sem empregada em casa, desisti de qualquer outro compromisso pela frente. Quando o hidráulico diz que levará duas horas pode contar com 4h de serviço. É sempre o dobro da promessa, isso quando não leva dias dependendo da infiltração. Isso quando não leva meses dependendo da fé do proprietário.

Sim, fé!, a primeira frase do hidráulico foi:

- Preciso de sua fé para resolver rápido.

Não sei como ele age quando cumprimenta ateus. O pedido era tão inusitado que quase acendi uma vela. Concordei com a cabeça, completei o sinal-da-cruz e parti para ajeitar a residência.

Enquanto ele trabalhava e elogiava seus filhos universitários, enquanto narrava sua vida em ordem epistolar, lavei a louça, sequei e guardei todos os pratos e vasilhas, passei roupa, cozinhei para meu filho Vicente, limpei a geladeira daquelas sobras de domingo que nunca mais conhecerão a primeira divisão e sambei com o aspirador na sala. Aproveitei o tempo encarcerado no lar para dar conta das inúmeras tarefas domésticas. Não tinha condições de relaxar e escrever com alguém solicitando a toda hora pano velho, jornal, lanterna, arame. Assumi o papel de estagiário da construção civil, fingindo acelerar o que não havia como apressar.

Não demorava nem um eco para atender seus chamados. Solícito, atento, como se realmente estivesse disputando uma promoção.

Depois de falar sem parar de si, ele me encarou de abrigo velho e havaianas, um sujeito estranho engalfinhado na espuma e no ferro, na limpeza e no pesado, e me questionou:

- Que horas chega seu patrão?








Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira03/06/2015

A SURRA DE CINTO



Meu amigo levou uma surra do pai aos 13 anos, de cinto.

Foi a primeira e única surra que recebeu na vida. Por uma injustiça. Responsabilizado por quebrar o rádio que nem usava. Um rádio que deveria ter estragado pelo mau contato do fio.

A fivela marcou suas costas.

Quando apanhou no quarto, não gritou por socorro, não chorou, não esperneou. Manteve-se obediente até o final do castigo, ficava preocupado em localizar a língua de metal. E se distraía tentando adivinhar os próximos ricochetes do ferrinho em sua pele.

Seu pai já não ajudava na demonstração do afeto: quieto, casmurro, de poucas palavras. Depois disso, a admiração tácita pelo papel de cuidador também se desfez lentamente. Nem o silêncio entre eles se salvou, evitavam olhar-se nos olhos.

Em toda conversa com o pai, esperava um pedido de desculpas, que não veio. Ambos comiam de cabeça baixa, como cavalos cansados.

O pai explodiu porque estava desesperado, irritado, preocupado com falta de vaga na construção civil e com a demora em arranjar um novo posto de trabalho.

O filho era a pessoa mais próxima no momento de raiva. Dependendo das circunstâncias, poderia ter sido a mãe, o irmão, o cachorro em seu lugar.

Só que sobrou para ele. E ele cresceu, casou, teve uma filha, obteve reconhecimento como professor universitário, abriu uma empresa de engenharia, mas jamais esqueceu o assunto. Seguiu adiante na vida, ainda que engasgado pela incompreensão do sangue. Amadureceu de um jeito ou de outro, pela convicção da aparência, apesar de permanecer parado na mesma lembrança.

Um dia, quando ele já ultrapassara os 40 anos, o então velho pai entra em sua residência, senta para tomar café da manhã. Cumprimenta a nora e a neta e se põe em sua frente com a pupila mareada.

Do nada, sem nenhum contexto, enquanto abria o pão com suas mãos macilentas e veias azuladas, o pai começa a se desculpar:

– Lembra quando eu lhe bati em sua infância? Lembra? Você estava na oitava série. Eu queria pedir perdão. Estava fora de mim. Foi um erro, um grande erro.

Quando finalmente obteve a retratação, o que ansiava ao longo de 27 anos, o filho não tirou proveito da situação, não foi arrogante, não descontou a raiva, não se prevaleceu, não julgou a demora, não condenou o atraso, não jogou na cara que pensou naquilo todos os dias, preferiu aliviar o sofrimento paterno, optou por cuidar do constrangimento paterno, o amor ao pai superou seu orgulho ferido, e apenas disse:

– Nem me lembro, pai.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 02/06/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18181

segunda-feira, 29 de junho de 2015

SONHEI COM VOCÊ



Ninguém resiste a um sonhei com você.

“Sonhei com você” cria uma cumplicidade imediata, uma afinidade súbita. Mudamos o nosso olhar para a conversa e para o interlocutor.

Pode ser trova, pode ser chantagem emocional, mas é um recurso sedutor infalível.

No início da relação ou quando se é apenas amigo, o sonho é uma cantada que desperta a curiosidade.

Você procurará saber o que foi e o que estava fazendo no sonho de outra pessoa.

Mesmo os mais inteligentes e maduros, os mais céticos e descrentes, sucumbem à estratégia.

É um sinal claro de interesse e de disposição para começar algo, já que o inconsciente criou uma memória em comum, uma memória a dois.

Os homens, tarados por sua natureza, imaginam que são sonhos eróticos e crescem seu apelo pelo relato.

Não se dá muita chance quando alguém diz que pensou em você, mas quando diz que sonhou com você muda de figura e ganha toda a nossa atenção. O interrogatório do que aconteceu na mente alheia é inevitável.

Adere-se ao território das verdades secretas, aos símbolos do divã, à esfera mística das casualidades inexplicáveis.

Como contestar um sonho? Não tem como desmentir.

Nem criamos oposição. Queremos, no fundo, sermos sonhados, sermos conduzidos, receber sinais de anjos e de cupidos.

Na paixão, somos supersticiosos, somos místicos. Não marcamos encontros, abrimos cartas de tarô na alma.

Procuramos uma união que seja maior do que nossa força, que seja uma fatalidade, um destino agendado de vidas passadas.

Trata-se de uma facilidade sentimental, para não precisar justificar nossa escolha diante dos amigos e parentes. Pois foi o destino que definiu, não a gente, acabamos nos isentando de nossos gostos e predileções.

Se o sonho serve para estabelecer proximidade, o pesadelo é o elo para recuperar os laços.

Durante a separação, no momento em que perdeu o contato com o ex e a ex e não conta com pretexto para retomar o diálogo, o pesadelo vem como panaceia da saudade.

Do nada, pode mandar uma mensagem que sempre produzirá estrago: “Tive um pesadelo com você. Está bem?”

É óbvio que ganhará resposta. Pelo medo do castigo, da macumba e da maldição, e também porque não há como deixar uma preocupação sobre a saúde no vácuo.

Não perceberá que ela e ele procuram somente notícias de sua condição, é uma pescaria aleatória, com a meta de descobrir qual é o seu estágio de sofrimento.

O objetivo é de menos. O pressentimento, ainda que ruim, demonstra falta e indica uma forte ligação espiritual. Várias reconciliações se deram por um pesadelo falso ou verdadeiro. Não há como se indispor, ainda que a briga tenha sido épica e a ruptura justa.

O pesadelo é o habeas corpus do amor.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  31/05 /2015 Edição N°18179

SOBREI, SOU PAI

Arte de Eduardo Nasi

A paternidade abole a frescura. Elimina qualquer pudor. Desfaz nojos e fobias.

Fui me tornando pai sem querer, sem a consciência aguda da mudança.

Quando fui ver estava recolhendo o prato do filho e garfando pedaço do bife frio que ele não comeu, recolhendo a fileira de arroz sobrevivente e colocando na boca, remontando o bolinho mordido e não finalizado, como se os seus restos fossem a minha responsabilidade. Sem nenhuma divisória, sem nenhum bloqueio, seu paladar estendia o meu, seus hábitos completavam a minha rotina. Havia um amor incondicional que não existia antes. Um amor instintivo de bicho cuidando de sua cria.

Não admitia colocar comida fora. Mesmo que não tivesse fome, repetia o gesto antes de empilhar a louça na pia. Raspava sua porcelana com uma espontaneidade incomum.  Com a velocidade de um guardanapo.

Era mais pai colhendo os farelos e ciscos de seu almoço. Quantas vezes a minha mãe fez isto silenciosamente?  Quantas vezes ela pegou com a mão e mordeu as verduras postas de lado em minha bandeja?

Fui me tornando pai na surdina, na oposição da cozinha, na resistência das sombras. Nem concordando, muito menos sendo festejado.

Minha filha adolescente, por exemplo, sempre me perguntava onde estaria de tarde. Eu respondia com detalhes, feliz que se interessada por mim, arrebatado pela sua preocupação em partilhar o GPS de meus dias. Imaginava que gostaria de me surpreender com um café ou um abraço.

Mas não era por uma intenção nobre que ela me questionava, muitos menos afetuosa. Procurava definir o meu paradeiro e antecipar o meu destino simplesmente para não me encontrar. Sofria do pânico social, uma vontade atávica e desesperada de se esconder de mim, de me ocultar, de não dar explicações a meu respeito aos seus colegas. Vi que se envergonhava de ser filha e dependente e ainda criança diante de meus olhos – se pudesse me trancava no quarto e jogava fora a chave.

Um dia, ao descobrir que faria uma palestra no shopping Praia de Belas, me convocou para uma conversa séria: – Pai, não apareça no segundo andar, que estarei com minhas amigas!

Tive que prometer não subir a escada rolante em nenhuma hipótese. Só se acalmou quando jurei com os dedos cruzados.

Ser pai é terminar sendo as sobras dos filhos.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
27/05/2015

:-( >:-( x-(


Não existe maior frustração que somente falar por emoticons e emojis.

É uma praga infantil.

Tem sido um mico participar de grupos no WhatsApp. Das 140 mensagens, 138 são de carinhas, corações, joaninhas e bichinhos.

Não se encontra nenhuma frase inteira, com nexo, verdadeira, inspirando reações diferentes e singulares.

Quem recorre aos emojis e emoticons não prioriza a conversa que trava com você. Não é importante o suficiente para receber a dedicação exclusiva do texto.

É uma sensação de descarte e superficialidade. Aquele que insere um macaquinho ou um gatinho dá a ideia de distração, de ocupação, de envolvimento simultâneo em diversas janelas. Deseja se livrar da resposta o quanto antes.

Somos mais selos do que correspondência. Emburrecemos emocionalmente. Regredimos para atender ao maior número de contatos e não deixar ninguém esperando. O falso excesso de amigos vem atrofiando nossa percepção do mundo.

Uma mãe de 50 anos hoje é capaz de estar se comunicando igualzinho à sua filha de cinco anos. Trocou sua maturidade pela velocidade.

Voltamos ao jardim da infância da linguagem. Nem é o pré, só falta colocar avental com o nosso nome bordado e fazer fila indiana.

É fofinho usar uma carinha ou outra, mas não sempre e indiscriminadamente. Torna-se decepcionante como receber um ok depois de escrever vários parágrafos para alguém.

Não tem como não se indispor. Você faz uma longa declaração de amor e recebe um dedo para cima. Você explica suas dificuldades familiares em cuidadosa linha de raciocínio e ganha duas palmas coladas rezando.

Não há aquele esforço de parar e refletir e encontrar a melhor expressão, de fugir do repertório básico, de inventar arranjos e improvisos de pensamento.

Se alguém demora muito para digitar, levará pedrada. Toda demora sugere mentira. Pois a pausa é malvista e o rigor com o outro é desprezado.

Derrapamos na imediaticidade que é pura preguiça. Concordamos, aplaudimos, festejamos e nos assustamos por símbolos.

Explicamos o que somos por desenhos, sem nenhum comprometimento e pessoalidade. Empregamos os mesmos códigos para qualquer um, esclarecendo se estamos felizes ou emburrados ou chateados ou surpresos, mas nunca definindo a particularidade de cada momento.

O celular apita várias vezes ao dia e, na maior parte, são adesivos de agendas escolares.

É o medo da expressão, é o medo da vírgula, é o medo das palavras erradas, é o medo das pessoas certas.

Não precisamos voltar a escrever cartas escritas a punho, mas tampouco precisamos amputar as mãos.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 26/05/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18174

MEXEU COM PASSO FUNDO, MEXEU COM A GENTE


A Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo está ameaçada. Talvez não aconteça, depois de 34 anos ininterruptos, depois de atender público de 50 mil pessoas em cada edição, depois de receber mais de 600 escritores de diferentes países.

A maior festa literária do Rio Grande do Sul corre o risco de ser cancelada por ausência de incentivo.

Poderíamos cruzar os braços e lamentar.

Poderíamos dizer que está ruim para todos e que este país não presta.

Só que não aguento mais ver obituário de cultura no jornal.

Parece que só somos solidários na tragédia, em enchentes, terremotos, desabamentos. Se ninguém está morrendo não é importante.

Mas, se não salvarmos eventos como a Jornada de Literatura, tampouco aprenderemos a viver.

Decidi, junto com o amigo Mário Corso, criar um financiamento digital para não aceitar a extinção da Jornada.

Cada um pode doar cinco reais. O preço de uma cervejinha. De um picolé. De um salgadinho.

Doe cinco minutos de seu dia. Perca um tempinho mínimo preenchendo o cadastro.

O pouco é muito neste caso. O pouco é fundamental. O pouco é generosidade incalculável.

Salve uma história de três décadas. Salve a próxima geração de leitores.

Temos a obrigação de não deixar a cidade de Passo Fundo sozinha. De ajudar Passo Fundo. De recompensar Passo Fundo por nos ter colocado no centro dos acontecimentos literários do país.

Que o sangue farrapo ferva em nossa cabeça: mexeu com Passo Fundo, mexeu com a gente.

Colabore aqui: www.juntos.com.vc/pt/jornadaliteraria

Ouça o que falei na manhã dessa terça-feira (26/5) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Kelly Matos:


FIM DA VÁRZEA



Tenha cuidado ao seduzir dentro da piscina e no mar. Não são os melhores lugares para o flerte. Há um imenso risco de gafes e constrangimentos.

Não brinque de boto e golfinho, talvez encalhe na areia com as barbas de molho do leão-marinho.

O banho traz surpresas desagradáveis. A água mexe com a respiração, com os cabelos, com os olhos. O equivalente a se fechar num liquidificador: entramos tranquilos, convictos de nossa fisionomia, e saímos alterados, pelo avesso. O redemoinho engole as certezas do penteado e a previsão dos traços.

Aquela cena de pular no trampolim e mergulhar virilmente para abordar a pretendente de biquíni sensual do outro lado não costuma terminar bem. Não existe um espelhinho para confirmar a aparência.

De repente, você mexe os cabelos molhados e sorri, pensando que agradou com sua acrobacia aquática, jurando que mostrou sua masculinidade em braçadas enérgicas, cria um olhar fatal, emoldura o peito e não percebe que está com um ranho verde pendendo no nariz. Uma gosma indefinida reivindicando papel higiênico e uma fungada libertadora. Aquilo que cada um chama de um jeito, tamanho o pudor com o inimigo anti-higiênico: a meleca, a titica, a caca, o monco, o ouro.

Ela não sabe como avisá-lo, não desfruta de intimidade para apontar e pedir que limpe. Nenhuma indireta será suficiente para direcionar suas mãos ao local da sujeira. Nenhuma mímica trará a resposta certa do Imagem & Ação.

Você conversa alegremente, convida para uma esticada de tarde num bar e não compreende a careta feminina, o esgar assombrado. Antes, ela parecia absolutamente receptiva. Agora, frente a frente, ela se contorce em repulsa. Não desvendará o problema em tempo hábil, somente depois numa superfície refletida: o tartarugaço meio dentro, meio fora da toca.

É um pouco nojento travar um diálogo nestas condições. Desanima a vontade de beijar e de baixar as defesas de sua candidata. Ela vai desaparecer, sem nenhuma explicação, até encontrá-lo com cara limpa. Reze para que a primeira impressão não cisme em ficar.

Todo mergulho é perigoso pela incerteza do muco. Pode vir à tona quando menos esperar. A sensualidade exige o mínimo de decência. Ou que não esteja gripado.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  24/05 /2015 Edição N°18172

BANHEIRO S O S

Arte de John Noble Barlow

Quando pequeno, rico não era o que tinha piscina, terraço, chafariz no jardim.

Rico era o que tinha mais de um banheiro em casa. Se contava com três banheiros, enxergava o sujeito como milionário ganhador da loteria esportiva.

Na época, logo que conversava com alguém de posses, nem disfarçava a ansiedade e já perguntava:

- Quantos banheiros você têm em sua casa?

Porque eu vivia conformado numa residência com um único banheiro.

Nem se podia ficar muito no toalete. Logo batiam na porta.

Todo mundo sofria de pressa, urgência, desespero.

Um inferno sair para aula de manhãzinha. Como formávamos um bando de quatro filhos, inviável despertar ao mesmo tempo, precisávamos nos acordar em escalas de quinze em quinze minutos para não gerar engarrafamento.

Um único banheiro criava fila de SUS no corredor.

Sofria quando o pai decidia ler o jornal inteiro.

Ou quando a irmã usava o secador.

Ou quando a mãe se maquiava.

Se sou um camelo hoje é que fui adestrado na infância.

Ouça o comentário na manhã desta sexta-feira (22/05), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Kelly Matos:

domingo, 28 de junho de 2015

AMOR EM VÃO

                                                                                Arte de Eduardo Nasi

Ele estava sentado numa cadeira de rodas aguardando atendimento, preso ao braço do soro. Tinha 80 anos para mais ou 80 anos para menos + a doença.

Sua senhora baixinha e de coque, amorosa e atenta, em cadeira próxima, com olhar de agulha de crochê, recebeu a ficha de atendimento da enfermeira.

Conferiu, e não se guardou. Mudou radicalmente de feição, embrabecida. Deduzi que fosse cobrança indevida do hospital, mas não era. Questionou o marido:

- Você colocou aqui que não tem religião! Como que não tem religião?

- Não me lembro.

- Como é que vai esquecer Deus numa hora dessas?

- Não sei. Não sou praticante.

- Mas Deus é praticante contigo, vive te salvando.

- Não tem importância este detalhe.

- Como é que não tem importância? Acha que Deus não lê os prontuários médicos?

- Só o que faltava, claro que não lê.

- Lê sim, para ver se assumimos ou não a nossa fé.

- Não exagera, mulher. Está sem dormir, cansada, e vem delirando.

- Delirando? Não, precisa mudar aqui, com sua letra. Calma aí, pegarei uma caneta da mesma cor.

- Não precisa, deixa assim. Não vou ficar rasurando o prontuário.

- Prefere ficar desassistido?

- Deus não é um plano de saúde.

- É mais do que um plano de saúde, é o princípio, o meio e o fim.

- Pelo jeito, estou no fim.

- Não seja teimoso, hômi. Não entrega os pontos agora.

- Não declarei minha religião, não é um pecado mortal.

- É um pecado, sempre peço para rezar uma missa para a tua recuperação. Tudo o que faço não tem sentido: as velas, o dízimo, as promessas. Arruma, nesta linha, quer os óculos? Onde colocou os óculos?

- Não mudarei nada, não tenho religião.

- Não tem religião, é? Então vou embora.

- Por quê? Para de ser tola! Não me deixará sozinho, o médico não chegou.

- Tola coisa alguma. Se não tem religião, não estamos também casados. Não existiu a nossa cerimônia.

Ela arrancou sua aliança, jogou no chão, tomou sua bolsa caramelo e virou as costas.

Enquanto o velho se esforçava para girar a cadeira e recuperar o anel, ainda o ouvi resmungar:

- Deus, dai-me a paciência.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
20/05/2015

PERDI A GUERRA


Ok, perdi. As pessoas me acham louco. Não tenho como destruir a reputação. Peguei picareta e reformei a casa do nome e não me desgrudo da fama de doido. Não é entrando no Lions Clube que mudarei minha aparência.

Qualquer fofoca fará sentido porque o louco não tem sentido algum. Não alcanço o que os outros pensam a meu respeito, prevejo o tamanho do poço de maldade em que estou enredado. Se alguém falar que desço do meu apartamento pela janela do terceiro andar segurando uma corda, todo mundo acreditará e verá nexo na cena matinal. “Bem coisa dele” será o comentário. Não vão estranhar. Nenhuma extravagância acaba sendo posta em dúvida. O desequilíbrio é o esperado, a normalidade que soa estranha em meu caso.

Por algum motivo, sou louco, e louco inteligente a ponto de não ser confinado para não aloprar os médicos. Antes pensavam que eu chamava atenção, depois descobriram que não era um talento oportunista, o feio chama a atenção naturalmente, pena que não passaram para a terceira fase do jogo da vida: não sou maluco, sou apenas atrapalhado e me envolvo em encrenca procurando a porta de saída.

A loucura não me ajuda em nada a ser feliz. Pelo contrário, cria preconceitos, gera medo, cautela e defesa de quem é mais reservado. Quando participo de conversas, existe o receio de que tome alguma atitude intempestiva, imprevisível, que dance maracatu a capela. E eu estou na minha, apenas ouvindo, não maquinando ataques terroristas de linguagem e ironia.

Agora foi. Preciso me acostumar, não tem conserto. Apenas os amigos mais próximos – poucos – me conhecem. Perda de tempo defender que não bebo e não me drogo, não saio dirigindo alterado, que amo cinema, leitura e café, que me inclino a caretice e timidez, que reúno coragem para atravessar um shopping lotado, que acordo cedo para trabalhar, que cumpro horários, que cuido da limpeza da casa inteira, que realizo supermercado, troco os lençóis semanalmente, lavo roupa, que cozinho, que me preocupo em repor as flores da sala, que não deixo nenhuma conta atrasar um dia, que me responsabilizo por dois filhos, que valorizo a disciplina como humildade e que agradeço a Deus o trabalho para sustentar a família.

Mas sou louco. Porque ainda comentarão que nenhum louco se assume.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 19/05/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18167

IMPOSSÍVEL DEDO

Arte de Vlaho Bukovac

Sempre que uma mulher vai tirar apenas um dedo dos cabelos no salão, acaba cortando uma mão.

Algo fracassa em seus planos.

O cabeleireiro faz o que ela manda, não é culpa dele, a questão é que ela não se contenta e pede também repicado ou em camadas. Nestas expressões, perde mais quatro dedos.

Depois do corte pronto, deseja tirar a parte mais quebrada. Acha que é só a pontinha, mas descobre que a metade do cabelo está seca. Foram embora outros dois dedos.

Por último, ainda acha defeito, considera o cabelo pesado demais e quer "mais movimento". "Mais movimento" leva novos três dedos.

Um dedinho resultará em duas mãos. Direita e esquerda.

Ela é capaz de voltar para casa com um chanel.

Ouça o comentário na manhã desta terça-feira (19/05), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

AMIZADE 8 PLUS


Meu amigo fingiu que saiu a beber comigo, mas passou toda a noite discutindo com a namorada no whatsapp.

Combinamos que colocaríamos a conversa em dia, nada da companhia de nossas mulheres, pois dependíamos de um pouco de privacidade para reprisar as vidas e os últimos acontecimentos.

Sentamos numa mesa à janela para comentar o vaivém da rua. Quando pedimos a primeira rodada de chope, o celular dele apitou e ele se distraiu para o brinde.

Ele me acalmou – “Só um minutinho” – e foi responder a mensagem da namorada. Achei que era, a princípio, para dizer que chegou bem, informar o paradeiro e não gerar preocupação.

Mas havia um atrito no ar, não entendi direito, o que sei é que ele baixou a cabeça para nunca mais levantar. Nunca mais me olhou nos olhos.

Discutiam, só podiam, já que escrevia rápido e as mensagens se desdobravam em parágrafos.

E eu bebendo sozinho, observando aquele entrevero digital sem fim. E eu levantando as sobrancelhas ao infinito das outras mesas. E eu, carente, puxando papo com o garçom sobre o movimento da semana. E eu indo e voltando do banheiro e ele nem reparava no meu sumiço.

Às vezes, ele soltava uma pergunta messiânica para a montanha – “E aí, como você está?” –, e logo se debruçava novamente ao aparelho, antes do eco de minha resposta.

O amigo seguiu viciado no aplicativo, aguardando que ela terminasse de digitar, enlouquecido no joguinho do amor, no entretenimento de ter razão.

Após entornar cinco chopes, pedi a conta. Ele concordou rapidamente, avisou que precisava mesmo se encontrar com a namorada.

Eu gargalhei, pois o que ele fez foi se encontrar com ela me usando como cúmplice. Na verdade, faltou ao encontro comigo. O que era virtual era real, e o que era real era virtual. Não segurei vela, segurei um extintor de incêndio para o casal.

Irônica acabou sendo a nossa despedida. Ele me abraçou forte, bateu em minhas costas e elogiou a nossa saída:

– Temos que fazer mais dessas!

Eu apenas concluí com os meus botões: jamais.

Não dá para sair com amigo que leva celular. Ele deve deixar em casa. Ou colocar num saquinho de pertences na entrada do bar.

Viramos plantas e samambaias das janelas do aparelho.

E não é porque ele brigava por um motivo sério. Mexeria no celular por qualquer coisa. Qualquer que seja o estado afetivo e seu status.

Se ele estivesse apaixonado, trocaria juras de amor com a namorada. Não a abandonaria nem por um minuto. Descreveria o lugar, mandaria fotos da bebida, desabafaria que gostaria que ela estivesse lá, que morre de saudade, que não vê o momento de voltar, e me esqueceria igual.

Se ele estivesse solteiro, estaria trovando dezenas de pretendentes ao mesmo tempo, rindo das sacanagens, comentando imagens sensuais, marcando pontes para logo adiante, e me esqueceria igual.

Decidi não mais trocar meu iPhone 5 pelo 6, e sim procurar uma versão atualizada da amizade. Será que não encontro uma amizade 8 Plus, mais avançada do que a tecnologia da camaradagem que anda por aí?



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.36
Porto Alegre (RS),  17/05 /2015 Edição N°18165