segunda-feira, 13 de abril de 2015

O CALÇO DA MESA



É muita sorte encontrar uma mesa manca no restaurante. Festejo o achado, ainda mais se estou acompanhado de minha mulher.

Não mudo de lugar, não peço ajuda do garçom, faço questão de sentar e apoiar os braços, com todo o meu peso, para determinar a inclinação. É sempre uma oportunidade para impressionar e mostrar para minha companhia que ajusto desequilíbrios e desafio desarmonias.

O perfeccionismo mata a cumplicidade. Casais se separam por intransigências mínimas acumuladas pelo tempo e nunca ditas.

Vejo a mesa manca como uma maneira sedutora de dar um recado: a imperfeição não me incomoda, conserto o mundo, estou disposto a enfrentar os altos e baixos de um relacionamento.

É uma demonstração de simplicidade diante dos problemas e também de compaixão pelos objetos quebrados.

A mesa manca revela o cuidado cavalheiresco do homem. É uma chance de expor suas verdadeiras pretensões românticas.

Há um toque óbvio de safadeza de minha parte ao usar poesia para passar uma mensagem. Aceito, mas seria absoluta ausência de sinceridade negar o meu dom. Um poeta não pode deixar uma mesa sofrendo em silêncio. É negligência. Como um médico que se recusa a atender um socorro durante sua folga.

Não reclamo, não sinalizo desconforto, não arredo o pé dali, costume de quem não pretende se incomodar sob alegação de que está pagando a conta.

Logo que assumo minha posição, já brinco:

- A mesa é uma mulher vaidosa e quebrou seu salto. Vamos ajudá-la a andar?

Com desinteresse ensaiado, tomo um guardanapo e enrolo a medida exata para formar um calço. Tenho o olhar clínico de um marceneiro, de um engenheiro das resmas de papel. Com uma rápida mirada, sei quantas dobras são necessárias para conter o desnível.

Minha esposa fica comovida e surpreendida com o gesto, relaxa mais comigo, percebe que pode estragar e não será abandonada, que pode enlouquecer e não será banida, que pode adoecer e será amparada e protegida.




Publicado na Revista Isto É Gente
Edição Bimestral
Março 2015
Ano 15 Número 717
São Paulo (SP)

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