segunda-feira, 20 de abril de 2015

HOMEM DE LATA

Arte de Eduardo Nasi

É curioso.

Quando perco meu coração (e meu coração fica com a ex), sou mais sensível.

Estudo qualquer banalidade, decifro latidos e piares, olho fixamente folhas caindo das árvores até o pouso final, retiro besouro de meu casaco e ponho em segurança no muro, escuto tormentos longe e me importo com a movimentação próxima das gentilezas.

Ansioso pelas reações e respostas do mundo, nada me escapa, amparo quem chora e sofre, converso com os mendigos e dou o meu braço para o vento atravessar a rua.

Sem coração, viro humano, quebradiço e sequioso. A sensibilidade se multiplica, a ponto de qualquer gota de orvalho na pele se aproximar do impacto de uma tempestade de granizos.

Já quando estou feliz e com o coração pleno acabo sendo indiferente, impessoal, egoísta.

É estar feliz com a mulher, que dispenso as notícias e os desastres. Nenhuma tragédia me surpreende e me assusta. Afasto-me das preocupações para manter a leveza do romance.

Nego os problemas dos outros, finjo demência e surdez, priorizo a vida a dois. Eu me economizo, eu me guardo, eu me controlo, avarento com a minha sorte.

Cada vez mais admiro o homem de lata.

Ele não tem coração, mas é o mais intenso, o mais passional, o mais preocupado com a necessidade das palavras da turma de Dorothy, criada pelo escritor Frank Baum.

Está quase chorando, quase soluçando, quase suspirando.

O quase é assustadoramente superior em emoção ao transbordamento.

O quase é permitir espaço aos demais, dar espaço aos demais.

Durante a separação, somos o homem de lata. A cabeça é um funil e as juntas enferrujam. Andamos atrapalhados, não contamos com a elasticidade e ambição dos gestos, tropeçamos em nossas próprias ferragens.

Somos sucata pensativa, ferro retorcido e galvanizado às pressas.

Há uma couraça na aparência e, ao mesmo tempo, uma vulnerabilidade na forma de se relacionar: acessível aos escorregões, disposta a pedir ajuda, antena do batimento cardíaco dos bichos.

Ao perder o coração, somos estranhamente mais coração. Somos todo coração. A perna é coração, o braço é coração, o fígado é coração, o rim é coração, o pulmão é coração.

Quem vive o divórcio conhece a atenção extrema da esperança. Lança-se ao caminho para reaver o amor e reintegrá-lo ao seu peito. Não tem a soberba da posse e o controle dos sentimentos. Com uma humildade que somente existe nos desesperados.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
15/04/2015


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