sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

QUANDO A CASA É NINHO


Meus pais têm um vocabulário próprio: matar o cachorro a grito, chorumela, nem que a vaca tussa, onde fui amarrar meu bode, chispa daqui, é dose para elefante, firme na paçoca.

Traduzíamos mentalmente na infância e na adolescência.

Chover era toró, fazer xixi era tirar água do joelho, cansar de um assunto era pó da rabiola, lugar distante era caixa-prego, criança agitada era serelepe.

Eu e os irmãos vivíamos registrando as expressões, aperfeiçoando o dicionário oral, para não sermos ofendidos de mocorongos.

Havia um respeito obrigatório pela língua nativa. Ríamos no começo, depois aceitamos as excentricidades que destoavam do que aprendíamos na escola, em seguida entramos na fase da vergonha coletiva.  

Revoltávamos no momento em que falavam em público ou quando se comunicavam com os nossos amigos. Considerávamos os pais excessivamente velhos, pela estranheza que geravam nos outros. Ninguém de nossa turma conhecia suas gírias, e recebíamos o encargo de sempre explicar que porra eles estavam dizendo, se aquilo significava ofensa ou elogio, se estavam felizes ou irritados.  

Sem perceber, acabei herdando uma das expressões. Incorporei uma das antiguidades familiares. Veio comigo e continua comigo. Sobreviveu ao meu preconceito e minha ânsia de ser atual.

É a palavra pousar para dormir.

- Pousará fora?

- Onde vai pousar?

- Ninguém pousará em casa, estaremos viajando.

Acho que pousar é melhor do que dormir mesmo.

Tem mais sentido para mim.

Pousar também representa quando o sexo é amor.

Pousar é romântico. Pousar é renunciar o céu por um lugar definitivo. Pousar é aceitar que não podemos passar a vida ao vento. Pousar é descansar de longa viagem.

Pousar é tranquilidade, é mansidão, combina com ficar de conchinha, deitar de pés dados, cheirar o cangote.

Pousar é uma atitude que supera o descanso. É confiança. É se doar. É se decidir por um canto seguro e acolhedor. É se enraizar numa árvore.

Eu me imagino descendo do turbilhão dos acontecimentos, diminuindo o ritmo, distanciando-me da pressão do trabalho. E vou me acostumando com o silêncio, com a intimidade, com o travesseiro de penas.  

Quando amo, não durmo com alguém, eu pouso com alguém.

Paro de voar. Desisto da altura pelo chão. A casa é ninho.  

Quando amo, sou pássaro. Deixo de sofrer como homem.



Publicado na Revista Isto É Gente
Edição Bimestral
Janeiro 2015
Ano 15 Número 715
São Paulo (SP)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

FORA DO TEMPO

Arte de Vladimir Kush

Não deixo o tempo perdoar em meu lugar. Não darei a ele os créditos de minhas dores.

Assumo minhas falhas e eu mesmo peço desculpa. Minha soberba é menor do que a minha inteligência, e posso garantir que é bem menor do que o meu coração. Ainda que seja um coração tolo, crédulo, facilmente influenciável.

Não tenho nenhum problema em perder uma briga, mas tenho todos os medos na hora de perder um amor.

Não permito o tempo resolver o que não resolvi, ajeitar o que não ajeitei, concluir o que abandonei, sugerir o que silenciei, falar por mim.

Não assinarei uma procuração no cartório para que ele defina minha situação.

A franqueza tem que ser paga à vista. O tempo apenas acumula juros e distorções do nosso valor.
Não são os dias, os meses, os anos afastado daquele que amamos que nos trarão clareza. Até porque a saudade torna todos os dias iguais, não faz nenhum sentido aguardar o que já se sabe.

Há o hábito de sumir e desaparecer quando os dilemas aparecem na vida amorosa. Eu me comprometo até o fim. Se não tem saída, aproveito para ficar junto.

Sou adepto de permanecer na tempestade a dois - nenhum dilúvio é para sempre. Sou possessivo com as minhas lembranças, arrumo a bagunça que criei, explico minhas crises, não transfiro ao tempo o que é de minha responsabilidade.

Não considero justo o tempo dizer que eu estava certo ou errado. Isso é confortável, e não existe tranqüilidade que substitua a sinceridade. Melhor errar assinando a página do que acertar anonimamente.

O tempo organiza, mas não define.

O tempo esfria, mas não cura.

O tempo estanca a hemorragia, mas não cicatriza.

O tempo elimina a carência, mas apaga o desejo.

O tempo acalma, mas não garante o entendimento.

O tempo adia as dúvidas, mas não consolida as certezas.

O tempo finge que avançamos, mas não saímos do lugar.

O tempo serve para diminuirmos a importância das ofensas, mas não resgata os elogios que não serão feitos.

O tempo é o senhor da razão, só que sempre escolho a fé, senhora da ação.

A fé cria seu próprio tempo. O tempo de amar é agora.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 30/12/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
18029