terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A MAIOR INTIMIDADE



Dormir é pessoal. Dormir é um ato cheio de manias e restrições. Há o colchão de toda a vida, há o cobertor predileto, há o abajur especial da cabeceira.

O sono é regrado por simpatias inegociáveis, surgidas já na infância. São exigências para enganar a insônia e reproduzir o acolhimento da casa natal.

Tem gente que só dorme com a luz acesa. Tem gente que só dorme no escuro.

Tem gente que só dorme com frestas da persiana. Tem gente que só dorme com três travesseiros. Tem gente que só dorme abraçado ao travesseiro. Tem gente que só dorme com o travesseiro entre as pernas. Tem gente que só dorme destapado. Tem gente que só dorme com o rosto debaixo do braço. Tem gente que só dorme de banho tomado. Tem gente que só dorme com meditação. Tem gente que só dorme com música. Tem gente que só dorme com ar-condicionado ligado. Tem gente que só dorme com televisão acesa. Tem gente que só dorme depois de ler. Tem gente que só dorme roncando. Tem gente que só dorme falando. Tem gente que só dorme em silêncio. Tem gente que só dorme com remédio de nariz. Tem gente que só dorme com o despertador programado. Tem gente que só dorme com o seu gato. Tem gente que só dorme com o seu cachorro aos pés. Tem gente que só dorme de meias. Tem gente que só dorme no lado esquerdo. Tem gente que só dorme no lado direito. Tem gente que só dorme atravessado. Tem gente que só dorme com lençóis limpos. Tem gente que só dorme de portas fechadas. Tem gente que só dorme nu. Tem gente que só dorme de pijama. Tem gente que só dorme no sofá. Tem gente que só dorme vendo filme. Tem gente que só dorme ao rezar. Tem gente que só dorme com celular do lado. Tem gente que só dorme após um copo de leite. Tem gente que só dorme após um cálice de vinho. Tem gente que só dorme acompanhado do urso de pelúcia. Tem gente que só dorme de bruços. Tem gente que só dorme quando o filho volta da universidade ou da festa.

Por isso é que dormir com outro é muito íntimo. É e sempre será a maior intimidade que existe. Mais do que sexo.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 29/12/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18400

domingo, 27 de dezembro de 2015

CASAMENTO DAS CINZAS



O amor é insuportavelmente misterioso.

Você jura que viu tudo, mas descobre uma nova cena que desconcerta a razão e combate o pessimismo dos relacionamentos.

Cada vez mais vejo que não sei nada sobre o assunto, sou um menino contando as estrelas até cansar. Minha astrologia é o brilho do olhar repercutindo a cintilação dos astros.

Não me fio na ciência exata. Amor para mim é como a humildade da lua, o que era minguante um dia se transforma em balão amarelo e cheio na madrugada.

Eu me deslumbro com a poesia dos gestos, pois o romantismo finou para quem não se entregou a fundo para alguém: ficou na metade das palavras por dizer, cansou no calor de uma briga ou no frio do punhal de uma discordância, desistiu de insistir antes dos laços consolidados.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.56
Porto Alegre (RS), 27/12/2015

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

NÃO FOI ASSIM



Almoço familiar é uma guerra de recordações. Ainda mais lá em casa: prole numerosa, formada por escritores, promotores e juízes. Há uma disputa vaidosa por quem conduz a melhor história. Um interrompe o outro. A falta de educação é uma arma para ganhar o debate. Falar de boca cheia é uma obrigação para não ficar atrás na conversa. Não há timidez, recato, respeito, trata-se de jogo sujo do início ao fim da refeição, não faltam cotoveladas, chutes por debaixo da mesa e respingos de molho na roupa. Comer é o de menos, desde criança participo de um concurso de contos.

Começo a ciscar uma lembrança:

– A minha tia dizia que fui trocado no hospital.

A mãe logo interrompe:

– Nada a ver, confunde a tia com a sua irmã.

O pai muda o personagem:

– Foi a sua avó.

Insisto no tom professoral, como se a luz me focasse sem a ameaça de o público interferir no escuro. Faço da cozinha o meu palco, as vaias não me pressionam.

– A minha tia me encarava estranho e chamava a atenção para uma incoerência: nasci cheio de pintinhas e depois no berçário não apresentava mais nenhuma mancha no rosto. Como? Ela suspeitava seriamente da troca.

Os irmãos me censuram:

– Não pode lembrar, era muito pequeno. Aposto que é invenção.

É necessário manter a tranquilidade e não ceder à mudança de rotas do pessoal. Passo a bandeja de arroz, a salada, respiro fundo o intervalo comercial e não perco o estribilho.

– Pedi para a mãe comprovar que era mesmo filho dela. Ela me trouxe a certidão de nascimento. Ora, não sou idiota, poderia me colocar como filho no cartório e isso não prova nada.

O pai questiona quando que ele vai aparecer na lembrança.

– Pai, você não está nesta história – resmungo.

Prossigo. É um esforço enfrentar os parentes para terminar uma piada ou uma evocação. Eles têm a mania de duvidar do jeito que memorizamos a infância.

– Mantinha a certeza de que fui trocado no hospital. A mãe, chateada com a minha desconfiança, decidiu pôr fim às dúvidas e me trouxe um envelope pardo. Abriu vagarosamente com as fotos de meu avô: a mesma cara amassada, o mesmo desvio de septo, os mesmos olhos caídos, a mesma testa larga. Olhei, olhei e lamentei: “Coitado, ele também foi trocado no hospital”.

Enfrento as risadas desonestas da turma, sinto o cheiro do deboche. Ouço gritos de protesto:

– Não foi assim.

O pai conta uma versão. A mãe conta uma diferente. Carla, Rodrigo e Miguel tomam caminhos absolutamente inesperados na interceptação dos fatos. É de enlouquecer para qualquer estranho convidado a comer conosco.

Desisto de tentar definir a verdade. O que descobri ao longo da vida é que todos, inclusive eu, estão mentindo.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6, 22/12/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18393

domingo, 20 de dezembro de 2015

NÃO CUSTA ENVIAR UMA MENSAGEM


Na vida de solteiro, liberdade é fazer o que se quer. Na vida de casado, liberdade é honrar a confiança: oferecer atenção e corresponder simultaneamente com a atenção recebida.

Há regras a serem seguidas, estabelecidas pelos dois. O ciúme ou a perda de credibilidade virá à medida em que elas são quebradas. Não percebemos de que o amor é legislação, e temos que respeitar o acordo e prestar contas da rotina. Não adianta bancar o esperto ou o distraído. Corrupção amorosa é desrespeito.

Solteiro pode bater a porta de casa sem avisar, aparecer na manhã seguinte sem explicar coisa alguma, dormir fora sem medo do despejo, voltar bêbado derrubando móveis e mijando no vaso da sala.

Casado tem alguém que se importa com todos os seus movimentos. Pois ternura é valorizar os mínimos detalhes, olhar para o hipotético com singularidade.

A emoção domina os fatos. Não existem bobagens quando predomina a compreensão e o hábito de se colocar no lugar do outro.

Se você sai sozinho, o seu papel é não deixar a sua companhia preocupada. Não tem como abandonar a relação nem por um momento. Não custa mandar mensagens dizendo como está e o que vem fazendo. Uma foto ou um comentário não corresponderá tempo perdido ao longo de uma festa ou de um jantar. Serão apenas alguns minutos de seu prazer. É um investimento irrisório para garantir a felicidade do casal e não gerar questionamentos à toa. Muitos não realizam porque não pretendem sentirem-se controlados. Alegam que não acessaram o celular, de que estava no silencioso ou de que a noite passou rapidamente. E quem até o momento esperava na boa, confortado, impregnado de fé, respeitando o espaço de cada um, ficará pensando bobagem (mais envolvendo a insegurança de hoje do que a infidelidade).

Sua alegria não deve tirar o sono de ninguém, não deve roubar o sossego de ninguém. Não é consolo explicar que não fez nada de errado e não traiu, que sempre impede o pedido de desculpa. Não é este o problema que estará em questão, mas a completa indiferença. Aquele que reclama termina com a fama de possessivo. E o que não avisou chama para si o papel de vítima, já que aparentemente não cometeu nenhum grande erro.

O relacionamento é feito de pequenas reciprocidades. O risco é confundir cuidado com vigilância. Nos dias atuais, com as notícias policias prosperando, não é possível contar com o luxo de desaparecer por cinco horas.

Casar tem o lado ruim de não ser mais inconsequente. O nome disso é responsabilidade. Não há lealdade excluindo a responsabilidade.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.56
Porto Alegre (RS), 20/12/2015 Edição N°18391

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

NÃO TEM NINGUÉM EM CASA



Eu só passava o telefone de casa para quem era da família ou muito próximo. Consistia num privilégio, em reconhecimento de intimidade. Não banalizava o número para evitar trotes e sustos de madrugada. Oferecia como emergência para escola dos filhos, trabalho e assuntos médicos. Tinha uma reserva com a sua exposição. Para qualquer demanda menor e menos urgente, alcançava o número do meu celular.

Hoje nem atendo ao telefone de casa, é unicamente telemarketing. Ou é engano procurando uma Maria Sei Lá de Quê devendo algo, ou é o oferecimento de serviços de cartão de crédito. Não entendo como as operadoras de todas as tarjetas do universo e de provedores de telefonia encontraram o meu número. Meu telefone não tem somente grampo, mas clipes, grampeador, elásticos, o material inteiro de escritório. Com certeza, foi vendido em algum cadastro com o meu potencial de consumo. O telefone toca desesperadamente, e são incansáveis as ofertas de promoção. Às vezes, uma mesma empresa pede para três funcionários ligarem para mim num único dia, em absoluta tortura psicológica. E o atual nunca sabe do trabalho do anterior, não adianta informar do histórico e invocar a paranoia.

Já aprendi a flagrar quando são os vendedores atazanando. O prefixo será 11 (SP), 41 (Curitiba) e 31 (Belo Horizonte). Eu me vangloriava de receber ligações de diferentes Estados até descobrir a verdade.

Outra manha é a demora para começar a chamada, escuta-se uma lacuna metálica de transferência de linha – cinco segundos suficientes para bater o gancho (saudade de bater o gancho, metáfora para apertar o botão). Uma outra dica de prevenção é que o atendente de forte sotaque vai errar seu sobrenome: – Gostaria de falar com Fabricio Carpenujar... Carpegiani...Carpinajar. Pelo menos, não preciso mentir, digo que não tem ninguém aqui com este nome.

Atualmente o telefone de casa está imprestável, corrompido, e inverti a ordem: dou o número do celular para os mais chegados. Quem realmente é íntimo me acha pelo celular.

Da mesma forma, noto que o e-mail, antes reservado para assuntos restritos, virou caixa de spams. Gasto mais tempo apagando do que lendo. São imobiliárias com terrenos maravilhosos, propagandas de produtos miraculosos, pacotes turísticos formidáveis, afora os tradicionais vírus de cobrança. Tenho certeza de que voltaremos a escrever cartas ou visitar o amigo sem avisar.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 15/12/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18386

domingo, 13 de dezembro de 2015

ONDE ESTÃO OS OVOS?



Nunca vi nenhum homem no supermercado demonstrar preocupação com o destino da caixinha de ovos nas sacolas. Nunca vi nenhum homem controlar o seu lugar no carrinho. Nunca vi nenhum homem orientando o empacotador para não colocar nada pesado em cima da caixinha de ovos. Segue junto das garrafas de litro de cerveja e não se importa, segue debaixo da melancia e não sofre com o erro. Nunca vi nenhum homem monitorando a caixinha dos ovos na hora de pôr as compras no bagageiro. Nunca vi nenhum homem levando consigo a sacola da caixinha de ovos, tal bebê de colo. O homem despreza a integridade da dúzia, é apenas mais um item da lista. Larga para a mão de Deus ou culpa simplesmente o azar.

Já a mulher tem as fôrmas de papelão como o seu primeiro e o seu último pensamento no mercado. 
Dispara um alarme biológico, e não relaxa até guardar na geladeira.

Para o homem, são simplesmente ovos. Para a mulher, já são pintinhos indefesos. Agem como donas da granja, chocadeiras emprestadas.

A minha esposa não cansa de reiterar o cuidado, assim como a sua mãe, assim como a minha mãe, assim como a minha irmã, assim como a minha avó. Realizam uma hierarquia apurada do mais leve ao mais forte na distribuição dos produtos.

- Onde estão os ovos?, é a pergunta constante delas no momento do caixa.

O que denuncia a predisposição maternal feminina. A maternidade, ainda que não se revele em filhos, está no sangue. Está consolidada na visão de mundo. Está espalhada nos seus costumes. Está dentro da generosidade do seu olhar. Está no formato de cesto de seus braços.

A mulher desenvolve uma doçura inadiável diante de cenas de orfandade. Seu radar é incansável: seja com os ovos quebradiços, seja com uma criança sofrendo, seja com um cão maltratado, seja com uma injustiça a um idoso.

Jamais é indiferente ao pouco e ao fraco. Ela se fixa na fragilidade para proteger, acolhe o que é vulnerável, não abandona o que pode se quebrar, permanece atenta e firme dando colo para tudo o que carece de atenção.

A caixinha de ovos é banal para o homem - tanto faz. Para a mulher, é a prova de que não escolhe nada em vão nesta vida.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.59
Porto Alegre (RS),  13/12/2015 Edição N°18384

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

NINGUÉM MAIS FALA DE AMOR



Ninguém mais fala de um bicho de estimação fofo na praça, de um bebê nascendo na vizinhança, de um exibicionista nu na janela. Ninguém mais fala de esperança e da possibilidade de férias. Ninguém mais fala de amizade. Ninguém mais fala do fim do ano letivo dos alunos. Ninguém. O assunto é um só: o medo. Já morei na alegria do Petrópolis, moro atualmente no medo. A felicidade é alienação em minha rua.

Fui comprar couve na fruteira e a dona estava constrangida no balcão, perguntei qual o motivo da vergonha, Ju disse que seu irmão de 25 anos foi assassinado ao buscar sua namorada de carro e tentar fugir diante da ação dos assaltantes.

Suspirei. Não consegui resmungar nada. Engoli o meu bom-dia de volta. O riso emagreceu de doente.

Precisava passar na ferragem para trocar lâmpadas do corredor. As lâmpadas do corredor sempre queimam primeiro, estava pensando nesta coincidência, quando vi um tumulto entre os vendedores. A loja acabara de ser roubada. Dois homens armados renderem os clientes e os funcionários, esvaziaram o caixa e recolheram os pertences das pessoas. Engoli o meu boa-tarde de volta. Já me sentia espectador de meu velório. Começava a raciocinar que – por um triz – não estava lá dentro sendo dilapidado. A violência explode tão perto, que gasto os meus pensamentos me colocando como vítima das situações. Não há tempo para sorrir. É ranger os dentes e seguir em frente.

Meu celular toca e o amigo médico Bruno avisa que levaram seu celular e sua carteira, pede que eu passe números de nossos conhecidos em comum para repor a agenda, apenas repito “Que horror” e não lamento, esqueço de lamentar, procuro apressar o passo, não posso ficar distraído e fazer poemas caminhando, não existe trégua para devaneios, é guerra civil em meu bairro.

Encontro um outro amigo, o Marcelo, no supermercado e ele nem me cumprimenta, vem com a nova saudação porto-alegrense: “Não sabe o que aconteceu?”.

– O que aconteceu, Marcelo?

– Um amigo aproveitou que estava passeando com o cachorro e deu um pulo no escritório de sua esposa. Ladrões pegaram o casal, e ele viu sua mulher ser baleada em sua frente por represália, pois eles não carregavam dinheiro ou coisa alguma no bolso.

Você morre se mostra resistência. Você morre se não mostra resistência. Não há mais conduta de defesa.

Os carros marrons dos brigadianos correm de um lado para outro das nossas ruas como baratas tontas – são vários os chamados e a gasolina anda cara. Pulam de endereço a endereço, compulsivamente.

Meu filho entra em casa e conta que uma mãe de dois filhos recebeu 11 tiros em um ônibus em plena Protásio Alves – deve ser queima de arquivo. Engoli o meu boa-noite de volta.

Saudade das fofocas e dos vizinhos enxeridos, hoje somos notícias policiais.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  08/12/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18379

FALHA IMPERDOÁVEL

Arte de Clovis Trouille

Para mudar um rosto, existe algo melhor e mais barato do que a cirurgia plástica: só tirar as sobrancelhas.

As sobrancelhas são decorativas, mas fazem toda a diferença na construção da personalidade. Elas resumem a nossa expressão.

É pela sobrancelha franzida que definimos que alguém está brabo. É pela sobrancelha levantada que descobrimos que alguém está assustado. É pela sobrancelha caídas que antecipamos a tristeza do outro.

Por isso uma mulher fica furiosa quando erra a sobrancelha, muito mais do que quando erra a cor ou o corte do cabelo. No momento em que uma sobrancelha acaba falhada, não há reparação. O acidente custa caro. Dependendo da falha, pode demorar até um ano para crescer. Imagine aguentar a sobrancelha banguela por um ano. Não duvide das consequências: ela é capaz de sair do casamento, da cidade, do país.

Ouça o comentário na manhã desta terça-feira (8/12), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

AS CINCO FASES DO SEXO NA RELAÇÃO

Arte de Unica Zürn

A primeira: é a melhor. Quando os dois se olham e já tem vontade. Não é necessário dizer nada. É um abraço, é um beijo e eles já estão entrelaçados, presos, grudados. Período comum aos apaixonados. Média de quatro durante a semana. Dia sim, dia não.

A segunda: é quando o sexo depende de pretexto. Torna-se espaçado, e você começa a marcar horário ou preparar uma janta especial ou convidar para fazer um encontro romântico com segundas intenções. Média de uma por semana.

A terceira: é quando você já pergunta se a outra pessoa quer transar, pois não vê nenhum movimento, nenhum indício, nenhuma aproximação espontânea. É o momento de ouvir desculpas como "Excesso de trabalho", "Enxaqueca" e "Estresse" (os três ‘E’ do ‘sai de perto’). Média de uma por mês.

A quarta: é quando você não mais pergunta e passa a cobrar a ausência de sexo. Conta os dias de abstinência, troca acusações, reclama do distanciamento, já se sente morando com um amigo. Média de uma a cada três meses.

A quinta: é quando você não mais pergunta, muito menos cobra. Você esquece, você desiste de tentar, você se conforma de que a relação não tem mais conserto. Espera a ordem de despejo. É o fim pelo cansaço. Média? Não tem média nenhuma.

Ouça meu comentário na Itapema FM RS, na tarde dessa segunda-feira (7/12), às 13h, apresentação de Denise Cruz:


domingo, 6 de dezembro de 2015

MINHA AMANTE


Preciso confessar, amor: tenho uma amante. Você deve ter percebido. Não há como esconder mais. Antes você reclamava, agora cansou diante das excessivas evidências irrefutáveis. O escândalo de seu silêncio me fez admitir. O silêncio é o último estágio da briga. Entendo que nunca me tratará da mesma forma, que estraguei a lealdade, sofrerei os efeitos colaterais da verdade. Sim, a verdade cura mas somente depois de muita dor e medicação.

Os amigos são contrários à minha franqueza, adeptos de mentir até o fim, mesmo depois do fim. Mas não consigo, pois lhe devo lealdade, eu lhe amo mais do que me amo.

Eu tenho uma amante. Há tempo. Desde antes de nossa relação. É uma amante vitalícia, uma amante estável, um caso antigo.

Você já identificou o dia. É toda a noite de segunda-feira. Sumo por duas horas, não atendo o celular por nada desse mundo. Quando retorno, estou podre de cansado, suor seco, pele lívida. Não demonstro vontade para mais nada, nem para o nosso sexo. Mal converso, a culpa não me ajuda. Vou direto ao banho, ponho bermuda e camiseta, aqueço o que acho na geladeira e deito cedo, sem direito à repescagem das histórias de nosso trabalho. Eu me encontro morto após a escapada, a amante me exige demais. Ela é gulosa, possessiva, autoritária. Desejava que eu me separasse, não aceitei, não me vejo longe de você. Desejava que ampliasse os dias da semana, recusei também, seria ostensivo e chamaria atenção.

Eu tenho uma amante, duro desabafar, fui fraco por errar e por revelar, não aguentei sustentar a minha hipocrisia.

Está explicado por que volto cheio de arranhões, hematomas, machucados. Fico com receio de permanecer nu em sua frente, venho cobrindo as pernas e o dorso quando me visto no quarto. Tenta se aproximar, e me afasto. Não há como justificar a herança da violência em minha pele. Disfarço como posso, com pomadas e cremes. Nunca cicatriza ou desaparece rapidamente, gerando angústia da delação. Pedi que ela não me batesse mais, só que não muda sua natureza violenta - me agarra e me puxa e me derruba no chão.

Tenho uma amante. No momento em que sou chamado por ela, saio de perto para atender o celular. São várias ligações pela manhã, antes do nosso encontro. Converso baixinho, envergonhado com a confusão sentimental. Apago o sinal sonoro do WhatsApp e as mensagens da tela. Sofro tentando sufocar os sinais, despistando e me mantendo alegre e solícito para não entregar o nervosismo.

Compreendo que é uma falta de tato assumir que tenho uma amante publicamente. Dirá que é uma humilhação. Porém, não existe jeito fácil. Que, pelo menos, eu sirva de exemplo para outros homens com vida dupla, que tomem a coragem de expor seus segredos.

Tenho uma amante, amor, desculpa. Certamente perguntará quem é. Aposto que conhece e sabe o nome da destruidora de nosso lar: é e sempre foi o futebol.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.44
Porto Alegre (RS),  06/12/2015 Edição N°18377

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

NÃO EXISTE CONVERSA DE ADULTO

Arte de Pavel Tchelitchew

Não deixe de falar o que sente porque o seu filho é uma criança. Não deixe de tocar num assunto que incomoda porque o seu filho é uma criança. Não deixe de expressar as suas emoções e explicar principalmente as suas emoções.

Se está chorando, conte o motivo do choro. Não disfarce, não avise que não é nada. Não minta para a criança.  Mentir não é proteger, é confundir. O silêncio preocupa mais do que a voz.

Se está feliz, diga o motivo de sua felicidade. Faça com que ela participe de seus momentos bons e ruins.

Se está com raiva, traduza a sua irritação em palavras. Não mande calar a boca e sair de perto.

Criança é curiosa e deve entender o que está acontecendo para continuar entendendo a si mesma. Criança odeia ser enganada.

Tratamos os filhos pequenos como incapazes. Não existe conversa de adulto, o que existe é conversa sincera para qualquer idade.

Não espere a criança crescer. Pode ser tarde demais.

Criança não é idiota, criança não é boba, criança tem antenas nos cílios, criança tem gravador nos ouvidos, criança guarda tudo o que enxerga.

Criança entende melhor do que um adulto. Adulto costuma só pensar em si, criança pensa em como lhe ajudar.

Criança é o melhor confidente que existe. É um confidente puro, sem segundas intenções. Jamais erra. Ela sabe o que fazer. Vai abraçar quando precisa de um abraço, vai beijar seu rosto para acabar com as lágrimas.

Ouça meu comentário na manhã desta sexta-feira (04/12), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A CESTINHA



Minha irmã não queria usar a bicicleta. Havia uma única bicicleta para as quatro crianças da residência. Ela não ousava nem pedalar para ter o gostinho. Ficava furiosa quando eu insistia.

Os pais explicavam que seria muito caro uma bicicleta para cada irmão. Mas ela não se dava por vencida. Passou a infância guerreando pela sua, pedindo nos aniversários e Natais, escrevendo cartas para o Coelho e o Papai Noel. A conclusão dos pais é de que ela estava sendo egoísta e não pretendia dividir os brinquedos, que protagonizava um ataque de guria mimada – a menina da família! –, que seguia modinha entre as amigas e buscava se exibir com um produto de marca.

Não tinha nada a ver. Erramos o motivo da teimosia. Não significava nenhum motivo vinculado à vaidade. Ela desejava a cestinha. Uma bicicleta com cestinha. A bicicleta mudaria de sexo não com a cor rosa, mas com a cestinha. A bicicleta tornava-se feminina com a cestinha.

Na época, eu somente a achava trouxa, boba, pois bicicleta era tudo igual, precisava contar somente com as correias firmes que não caíssem com as descidas frenéticas das ladeiras.

Hoje, encontro justiça psicológica em sua luta. A bicicleta com a cestinha é a própria mulher. Faz completo sentido. A cestinha é a primeira bolsa, onde você sai para passear com os produtos de sua beleza. A cestinha é o primeiro ventre, em que você leva a boneca junto ao corpo e explica os caminhos e traduz o que está pensando e observando. A cestinha é a primeira responsabilidade, trazer de volta em segurança o que carregou. A cestinha é a primeira mochila de viagem, confirmação da vocação de nunca sair de casa sem estar preparada para ir longe ou se demorar. A cestinha é a formação dos segredos e mistérios. A cestinha é o namoro da gaveta do quarto com a rua. A cestinha é um banco de carona para a imaginação, para a sensibilidade, para o invisível. Diferente do banco de carona que leva alguém, na cestinha você leva os seus sonhos e as suas fantasias.

A cestinha se situa à frente do guidão como quem espera colher o melhor destino entre todas as direções. Quando Carla recebeu a bicicleta idealizada, aos 12 anos, depois de cinco anos insistindo, ela gritava sem parar, disparando a buzina da garganta. Foi uma felicidade louca. Não recordo bem o que mais brilhava: os seus dentes em riso largo ou os aros das rodas novas.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  01/12/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18372

ESCRITÓRIO

Arte de Piet Ouborg

O que você acharia de um escritório com o chão forrado de jornal?

O que você acharia de um escritório sem ar-condicionado, com as janelas abertas, num calorão de dezembro?

O que você acharia de um escritório em que o funcionário presta serviço de bermuda e camisa aberta?

Isso quando não está de chinelos.

O que você acharia de um escritório onde o responsável divide a atenção do cliente com a televisão ligada?

O que você acharia de um escritório em que o encarregado não para de mexer no celular?

O que você acharia de um escritório no qual não consegue conversar diante da música alta?

O que você acharia de um escritório em que o dono é grosseiro, impaciente e sempre xinga e reclama dos outros?

O que você acharia de um escritório com as poltronas gastas, papéis espalhados, cheiro de cigarro?

Recomendaria um escritório assim para os amigos e familiares?

Pois é o que devemos lembrar quando embarcamos em um táxi. Todo táxi é um escritório, todo taxista é o gerente de um escritório. Quando entramos no carro, estamos conhecendo o ambiente de trabalho daquele motorista. O valor da corrida prevê também as condições do veículo e o tratamento profissional.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (01/12), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

ENQUANTO OS FILHOS NÃO TEM VIDA PRÓPRIA

Arte de Roberto Matta

Aproveite a infância de seus filhos. Aproveite enquanto são pequenos. Não deixe o trabalho ou os amores tomaram todo o seu tempo. Brinque muito com eles porque não será brincadeira depois. Não adie o final de semana que é reservado para eles. Não falte ao almoço ou a janta que combinou. Não cancele o cinema ou a praça ou a piscina confiando que poderá recuperar mais adiante. Não faça corpo mole. Não dê desculpas. 

Quando eles ficarem adolescentes, você não encontrará a mesma facilidade. Não existirá mais um mês consecutivo de praia - pois não vão querer viajar em função de um passeio com os amigos. Não existirá aquele sábado ou domingo que planejou sair - pois terão uma festa imperdível da escola. Não servirá para nada aquela folga que tirou para curti-los - pois já começaram a namorar e passarão a tarde inteira na casa dos sogros. Você receberá não e não e não já que eles estarão ocupados com as próprias turmas. 

Antes estar com eles era automático, contínuo, não podiam escolher, agora não, agora precisará se contentar com as migalhas dos compromissos de suas crianças crescidas. 

Se foi um pai presente, a adolescência dos filhos será saudade. Se foi um pai ausente, a adolescência dos filhos será ressentimento. 

Ouça meu comentário na Itapema FM RS, na tarde dessa segunda-feira (30/11), às 13h, apresentação de Denise Cruz:

domingo, 29 de novembro de 2015

FIADOR DA DESGRAÇA



O que eu já vi de pessoas que não amam mais acabarem se envolvendo em projetos duradouros como casamento e filhos. Ensaiam o discurso do fim e alteram bruscamente a rota quando confrontados.

Em vez de recuar, apressam os passos. Em vez de soltar as amarras de uma relação problemática, apertam os laços. Em vez de sair, entram ainda mais dentro de casa. Em vez de dizer a verdade, prestam declarações eternas. Em vez de quitar os juros emocionais, realizam mais dívidas.

Estão a um triz da separação e compram anéis de noivado ou marcam igreja ou decidem ter uma criança.

Confundem a porta de saída com a de entrada, e se lançam com unhas e dentes para uma última e redentora chance, que não mudará em nada o desgaste de um longo isolamento a dois.

A boca desmente o desejo e complica o desenlace. A palavra expressa exatamente o inverso das verdadeiras intenções. Se era difícil largar, será impossível a partir de agora.

Sempre me chamou atenção o quanto existem casais caminhando ao contrário de suas decisões. Talvez por culpa. Talvez pela vergonha da solidão. Talvez pela ilusão de se ver mais responsável pela felicidade do outro do que pela própria felicidade. Talvez por comodismo. Talvez para evitar a decepção de quebrar uma promessa. Talvez pela necessidade de ser melhor do que realmente é. Talvez por não admitir que fracassou. Talvez por faltar forças para recomeçar. Talvez por entender o tempo como investimento e achar que se dedicou excessivamente para jogar tudo fora. Talvez por supor que o ruim é, ao menos, conhecido.

Qualquer que seja o motivo, o melindre de decepcionar e desagradar impulsiona os maiores erros. O receio é de quê? Que no fundo ela ou ele fale mal de você? Mas não tem como controlar os pensamentos alheios nem dentro da convivência, muito menos fora.

Trata-se de uma atitude fóbica, parecida com a vertigem: é tanto o medo de cair que a vontade é cair mesmo para terminar logo com o medo.

Você percebe o esgotamento da rotina e assume pendências para os próximos cinco anos. Pretende ir embora e começa uma reforma sem precedentes. Pretende ir embora e adquire um cachorro. Pretende ir embora e interrompe o anticoncepcional.

Não há limites para o boicote. Você se afoga nas lágrimas e nada em direção a uma dor maior. Você tenta disfarçar o que sente fazendo o oposto, e aumenta as expectativas e engrossa as mentiras.

Na vida amorosa, o “não” vive se escondendo perigosamente no “sim”. Até terminar do pior jeito, deixando alguém plantado no altar ou com uma criança no colo.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.56
Porto Alegre (RS),  29/11/2015 Edição N°18370

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

DESGOVERNADO

Arte de Joan Erbe

Meu amigo foi convidado para uma festa traje esporte. Por pouco, ele não despontou fardado para jogar futebol com os amigos. Apareceu de bermuda e camiseta polo. Diante dos outros homens com blazer e casaco, a impressão é que estava num baile de carnaval. Faltava apenas o colar de flores do Havaí. Não tinha como recuar e voltar atrás. O azar é que vivia uma fase solteira e não compareceu acompanhado de nenhuma mulher para evitar a gafe. A mulher é o anti-vírus dos vexames masculinos.

Levou a recomendação do convite ao pé da letra. Pé descalço da letra. Se fosse traje passeio, ele iria como se estivesse passeando: de calça jeans e tênis, condenado a suportar os colegas de terno escuro e gravata. Se fosse passeio completo, não duvido que surgiria de novo com jeans e tênis, acrescido agora de uma mochila. Um quero-quero em meio aos pinguins de smoking e gravata borboleta. Passeio completo para o homem é dormir fora de casa. Fora da casinha, na verdade.

Ouça meu comentário na manhã desta sexta-feira (27/11), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


terça-feira, 24 de novembro de 2015

O OLHO GRANDE



A gula estraga o almoço e a janta. Transforma o que era bom em ruim, a comida sonhada em pesadelo, a paixão dos sabores em escravidão digestiva.

Estamos satisfeitos, comemos bem, mas o olho grande não abandona o prato. Mas o olho grande vai dizendo sim para mais uma porção. Mas o olho grande jura que é o fim do mundo. Mas o olho grande é um cachorro brigando pelo osso. Mas o olho grande continua repetindo. Mas o olho grande avança nas bandejas para não sobrar para ninguém. Mas o olho grande é egoísta e já trata qualquer familiar ou amigo como adversário. Mas o olho grande não come o necessário, come três vezes o necessário, ele nos faz acreditar que não teremos uma nova chance daquele banquete e que precisamos aproveitar.

O olho grande é um pobre dentro de nossos pensamentos, um chinelão, um mendigo, um vândalo, um ladrão.

Eu me sentia feliz até aquela garfada, em seguida ficarei triste, bovino e pesado.

Experimento um porre a seco, um porre alimentar, atravessei o meu limite, a ressaca é inevitável.

Por que me saboto? Custava parar um pouquinho antes. Sei o momento de desistir, é quando não baixei ainda a cabeça, é quando ainda converso, é quando ainda me mantenho sociável e amável. Em minutos, mudarei a minha personalidade. O doce virará veneno. É empunhar novamente a faca e corto também a fruição, forçando a boca a acompanhar a mente insaciável.

Serei agressivo, antissocial, depressivo, suicida. Não suporto nem mais encarar as pessoas na minha frente. Quase grito: “Vão embora, me deixem em paz!”.

Não aprendo com a reincidência. Ainda mais quando reencontro pela frente as minhas favoritas iguarias lasanha, pizza e massa quatro queijos.

Na semana passada, voltei a um dos meus restaurantes prediletos, o Café Colonial em Marques de Souza (RS), só que comi cinco bifes na chapa, cinco salsichas bock, três porções de feijão com banha e duas fritas.

Não conseguia respirar depois. Fui correndo nadar no borbulhante sal de frutas. Passei o dia enjoado, encalhado, inútil, arrotando, acenando para uma Samu do inconsciente.

Não devemos parar de comer o que gostamos, o que devemos é apenas controlar. O ideal é sair com um pouquinho de fome da mesa, despistar a gana reservando um espaço imaginário para a sobremesa.

O exagero mata o prazer. O exagero mata os melhores cozinheiros.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  24/11/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18365

AMOR TRAVESTI

Arte de Liliam Cuenca

Você está solteiro e procura alguém: tem alguém idealizado dentro de você, a mulher perfeita para o resto dos seus dias. É capaz de desenhar e estabelecer pré-requisitos: desde altura, peso, cabelos até cor dos olhos. Se alguém pedisse um retrato falado da mulher dos seus sonhos, você não teria dificuldades em descrever.

Toda pretendente passa pela triagem de suas pretensões. Você repara na profissão, estuda afinidades, avalia o jeito que se comporta nas fotos. Descarta qualquer interessada com alguma dificuldade, ou com uma visão de mundo diferente da sua.

Você faz exigências, que seja assim, que goste disso, que goste daquilo, que acompanhe em suas atividades, que seja paciente e amorosa.

Esta pessoa que você espera é você. Você vestido de mulher. Você está querendo um traveco. Você quer casar consigo mesmo.

O amor não é se repetir. O amor não é encontrar o que esperamos, vem quando encontramos aquilo que não esperamos, aquilo que modifica a nossa personalidade, que altera a nossa vida, que bagunça as nossas crenças.

Se odeia cachorro, vai amar uma mulher com cachorro. Se odeia criança, vai amar uma mulher com filhos pequenos. Se odeia sertanejo, vai amar uma mulher que tem todos os CDs de Jorge & Mateus.

Amor não é espelho, é vidraça. E vidraça quebrada.

Ouça meu comentário na manhã dessa terça-feira (24/11), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

CHATICES

Arte de Carlo Carrà

O chato no amor é aquele que não faz outra coisa a não ser forçar o amor eterno.

O chato é o que pensa que qualquer um precisa estar à disposição 24h.

Não trabalha, não tem amigos, não tem distrações.

É um falso preocupado: no fundo é possessivo. É um falso romântico: no fundo é pegajoso

É um psicopata da relação. Todo psicopata é um desocupado. Todo psicopata é um ocioso.

É o cara que não tem intimidade e já determina o que farão no sábado durante a manhã de segunda-feira. É o cara que acabou de sair do primeiro encontro e manda mensagens madrugada adentro dizendo o quanto a noite foi inesquecível e linda. É o cara que não tem limites e não realiza mais nada na vida a não ser persegui-la. É o cara que telefona quando lhe vê online. É o cara que comenta todas as suas postagens no Facebook e no Instagram. É o cara que não espera a resposta e decide pelos dois.

Amor depende da saudade e de um tempo longe para vingar.

O chato é o aborto do amor.

Ouça meu comentário na Itapema FM RS, na tarde dessa segunda-feira (23/11), às 13h, apresentação de Denise Cruz:

domingo, 22 de novembro de 2015

VIAGRA NATURAL



O maior afrodisíaco do homem é se sentir desejado. É de menos a beleza e a aparência, por mais que soe cabotino de minha parte, o homem se apaixona quando vê que é desejado. Muito desejado. A descrição aumenta o prazer, a antecipação reforça a vontade.

É irrelevante se a mulher é alta ou baixa, loira ou morena, feia ou miss, com quilos a mais ou a menos, o que adiciona coragem no homem é o discurso arrebatado, a volúpia e a excitação de sua companhia.

A dúvida alimenta o imaginário feminino, por sua vez é a certeza que impulsiona o homem. A convicção. O filme precisa ser legendado e dublado ao mesmo tempo. Qualquer desconfiança do objeto amoroso desencadeia desvalia e ressentimento.

Quando a mulher desenha, diz o quanto o quer, quando promete e anuncia o que fará, quando explica o motivo dele ser o eleito, o homem pira de felicidade.

Ele joga melhor com a vantagem no placar. Odeia ser humilhado e constrangido – é um carente, é uma criança emocional, busca reconhecimento no sexo e no amor. Ele se afastará do relacionamento que subestime o seu desempenho ou o critique em demasia. Não é maduro o suficiente para rebater as ofensas e seguir adiante.

Excitação masculina é elogio, é declaração de exclusividade, é manifesto de virilidade. Facilmente influenciável, folgadamente impressionável, depende do retorno efusivo, da resposta para definir se está agradando. Pode bajular que ele não se importa, pode exagerar que oferece um desconto.
Todo homem é um político na cama, refém do Ibope, das pesquisas de opinião, da crença do voto. Não vive sem o panfleto, o folder de suas realizações e de sua propaganda eleitoral.

Sua alegria é tributária dos enredos e das fantasias, das mensagens picantes e áudios fora de hora, das insinuações ao telefone. Ele gosta da preparação, do aviso, de alguém que se renda aos códigos e dialetos da intimidade.

Pois ser procurado ou procurar é para o casal que transa pouco e não se provoca ao longo do dia, é problema de quem não está conectado sexualmente.

Mas não se deve confundir desejo com submissão. A submissão é broxante, envolve desagradável imposição e ausência de livre-arbítrio. O que ele anseia é ser escolhido pela mulher, adorado pela mulher, que ela confesse a plena excitação em seus ouvidos, que o beijo, o gemido e a palavra venham sempre misturados.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.52
Porto Alegre (RS),  22/11/2015 Edição N°18363

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

UM POUQUINHO?

Arte de Dorothea Tanning

Quando a mulher diz que vai pintar um pouquinho o cabelo, voltará absolutamente modificada.

O que sugere um retoque é o surgimento de uma nova personalidade.

Se queria ficar levemente acobreada, ficará vermelho sangue. Se queria ficar loira, ficará platinada. Se queria ficar morena, ficará azul.

O tingimento sempre foge do controle. Só restarão as sobrancelhas para contar a história e recordar do passado.

Pintar um pouquinho provocará um maremoto de selfies, todas devidamente apagadas. Nenhuma mulher é feliz depois de pintar o cabelo. Ela apenas se conforma - não tem mais o que fazer nos próximos meses.

A cor desejada na caixa ou na cabeça de uma modelo na revista jamais se repete. A cor do seu cabelo não combinará nem com o seu tom de pele muito menos com a sua personalidade, combinará apenas com o cabelo.

Colocar um tonalizante é uma aventura radical. O só pouquinho é muito.

O só pouquinho da mulher no salão é o só o pouquinho do homem no sexo.

Ouça meu comentário na manhã dessa sexta-feira (20/11), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

terça-feira, 17 de novembro de 2015

ELA SABE DE TUDO



Você pensa que a sua mulher não enxerga suas mentiras, você pensa que ela não percebe o quanto não atende às ligações sempre depois do almoço e depois dá um retorno com aquela voz risonha de culpado, você pensa que ela não conferiu a ausência de perfume quando volta para casa de noite (estranho para quem borrifou no pescoço, no pulso e no peito), você pensa que ela não notou que jamais desgruda do aparelho e não deixa que ela chegue perto para visualizar as mensagens, você pensa que ela é boba e idiota, que você pinta e borda, que é invisível e realiza o que quer e quando quer, você pensa que ela não identificou o seu cansaço excessivo de noite e o seu conformismo, que nem reclama pela falta de sexo (homem quando não reclama ou morreu ou está aprontando), você pensa que ela não testa as suas contradições com as perguntas mais simples, você pensa que ela não fez as mesmas perguntas para os seus melhores amigos, você pensa que ela se contenta com as suas respostas decoradas porque não discute, você pensa que ela não olha que o banco do passageiro ao seu lado está sempre reclinado quando anda sozinho, você pensa que ela já não telefonou para o seu emprego e cruzou as informações de reuniões que nunca aconteceram, você pensa que ela não levantou os nomes comuns e incomuns que adicionou no Facebook, você pensa que é capaz de enganar a sua mulher? Você pensa, mas uma mulher só é enganada se ela deseja se enganar.

Você pensa que ela não registra as suas mudanças sutis de humor, o seu nervosismo de abrir a porta da geladeira sem buscar coisa alguma, a sua ansiedade dobrando as mangas da camisa. Ela o conhece de cor: quando sincero, você é lacônico, quando trapaceia, explica demais. Você somente é paciente para conversar quando tem algo para esconder.

Ela o observa há quanto tempo? Acha que algo passaria despercebido? Tira o cavalinho da chuva. Você pensa que mulher não tem intuição, sexto sentido, atenção aos detalhes. Por exemplo, por que de repente começou a usar Halls preto? Você pensa que não é visto, que nunca será pego, que para tudo há uma explicação, desde que nunca entregue os pontos. Você pensa que a sua distração com os talheres não vem cortando o silêncio, você pensa que a verdade é ter álibi, você pensa, continue pensando.

Ela apenas não falou nada porque pretende descobrir até onde vai com a sua farsa. Mas é questão de tempo. O que lhe posso assegurar é que não existe impunidade no amor.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  17/11/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18358

MULTIPLICAÇÃO DOS PILAS

Arte de Bridget Bate Tichenor

Tenho um amigo artista de rua. Ele se apresenta nas estações de metrô das principais cidades do mundo. Toca violão e canta só Música Popular Brasileira. Já esteve na França, Holanda, Espanha, Portugal. Ele me contou que, no começo da carreira, ninguém colocava dinheiro em seu chapéu preto. Depois de horas de exibição e aplausos sinceros, não arrecadava coisa alguma. Ele via que agradava, mas ninguém mexia no bolso e na carteira.

Até que decidiu largar o próprio dinheiro no chapéu. Antes mesmo de começar, já põe algumas notas altas para despertar a confiança do público. É uma isca de tubarão. E funcionou: quando o espectador enxerga o chapéu cheio fica mais disposto a colaborar, não se sente sozinho e idiota (- Pô, o cara é bom, olha quanta grana já tem em seu chapéu).

No Brasil, ele larga três notas de cinquenta e sempre sai com um bom cofrinho de seus shows a céu aberto. As cédulas se multiplicam naturalmente.

Meu amigo mostra que o artista precisa investir em si mesmo.

Ouça meu comentário na manhã dessa terça-feira (17/11), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


segunda-feira, 16 de novembro de 2015

NOS CALOS E NAS FERIDAS

Arte de Luigi Russolo

Já bastava uma marca de refrigerante colocar o nome das pessoas em sua bebida e criar constrangimento. Poderia estar almoçando calmamente, amorosamente, com a sua mulher e receber do garçom uma latinha com o nome da ex. Será que ninguém prevê os efeitos colaterais da homenagem?

Agora o Facebook criou um mecanismo de nostalgia. A máquina decidiu se humanizar e ter saudade. Passa a lembrar, inesperadamente, de momentos de nossa linha do tempo de quatro ou cinco anos atrás. Surgem nossos fotos do passado. Aquela mulher que recém saiu da fossa de repente se revê abraçada a um ex? Ou aquele homem que jamais engatou uma nova relação é condenado a reprisar um grande momento de seu antigo casamento?

A memória é absolutamente pessoal. E não precisa de muito para voltar a sofrer.

Ouça meu comentário na Itapema FM RS, na tarde dessa segunda-feira (16/11), às 13h, apresentação de Denise Cruz:

domingo, 15 de novembro de 2015

SEPARAÇÃO FELIZ



Você deve se separar quando está feliz. É meu excêntrico conselho. Porque não adianta se separar na tristeza se continua casado com a alegria do outro. É só a fase ruim passar que terá recaída e esquecerá as mágoas. É só o desentendimento esmorecer e a luz do sol bater na sala e no quarto que o amor manda de novo em casa.

Uma decisão fora de si perderá a validade quando voltar a si.

Você é capaz de rebater os ressentimentos e as brigas com facilidade, justificar o fim com rotina morna e sem sexo, mas não resistirá ao riso do seu par, às promessas de festa, aos carinhos e juras apaixonadas.

Precisa não gostar mais dentro do contentamento, para não cometer o engano de se afastar de uma das facetas de sua companhia e permanecer secretamente vinculado às demais.

A tendência é correr do namoro ou casamento no desespero, por pura ânsia, sem distanciamento do todo, sem recobrar as caminhadas deliciosas de mãos dadas e dos pés se acarinhando de noite.

Se não tem coragem de pedir o desenlace no céu, a queda é ensaio para repetir o voo.

É uma sabotagem piorar o que se encontra pior – raro é definir a incompatibilidade na mansidão.

Ao fugir às pressas do que incomoda, será perseguido depois por aquilo que lhe satisfazia e não tem mais. É se dar um tempo sozinho que as lembranças irresistivelmente agradáveis tomarão conta, e se achará um idiota por não comparar o joio e o trigo, a joia e a gema.

Precisa definir o fim durante a reciprocidade, não na falta, a carência é uma miragem e produz distorções e exageros.

Precisa elaborar o julgamento na presença, pois reclamar da ausência é parte da saudade.

Precisa propor a partilha no período de paciência, com o juízo firme e a esperança atenta, jamais com o orgulho ferido ou em meio à coerção das gritarias e ofensas.

O problema é que os pares rompem os laços quando estão mal, inventando purgatórios entre os amigos e familiares, e depois sucumbem aos encantos quando se recuperam e se veem pacificados da raiva.

No romance, o inferno é próximo e complementar ao paraíso, mas o medo de uma semana difícil ser para sempre causa precipitações.

Se a separação não é feita no momento favorável, é que ainda não está seguro da mudança.

Desamor mesmo é querer ir embora quando tem todos os motivos para ficar. Ir no melhor dia porque nem o melhor dia segura.

Se não ama mais, daí sim nem a alegria fará efeito. Nem o beijo mais longo. Nem o abraço mais demorado e mais cálido. Descobrirá que é um estranho para um estranho, e a intimidade certamente morreu.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  15/11/2015 Edição N°18356

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

É SEMPRE ASSIM

Arte de Émile Bernard

Sou otimista, positivo, tento sempre enxergar o lado bom das adversidades, mas há um tipo insuportável, o que sofre de infinita preguiça e não pretende se incomodar. Tem uma única resposta conformista na ponta da língua.

É o sujeito do normal, tudo é normal.

É o que não se surpreende com qualquer evento do dia. Nem olha. Nem se mexe para olhar.

É o que costuma dizer "É sempre assim" para qualquer coisa.

O avião está pegando fogo, ele espia pela janela e comenta para a esposa: - Não se preocupe, é sempre assim.

O garçom demora três horas para trazer a comida e ele explica para a esposa: - Não tem nada demais, é sempre assim.

A empresa em que trabalha está falindo, demitiu a maior parte dos funcionários, os corredores estão cheios de cadeiras e mesas empilhadas e ele continua as suas tarefas tranquilamente, porque acha que "é sempre assim".

Seu cachorro não para de latir, ganir, pular, e ele nem vai espiar o que está acontecendo. A casa termina assaltada porque ele volta a dormir depois de resmungar para a esposa: - É sempre assim!

Sua mulher está com outro homem na cama e não duvido que ele diga que é sempre assim.

Ouça meu comentário na manhã desta sexta-feira (13/11), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


terça-feira, 10 de novembro de 2015

PIPOCA SALTANDO DE MEUS OLHOS



Eu vi uma mãe chorando numa apresentação de escola em Porto Alegre. Cheguei lá para fazer uma palestra. Sua filha estava vestida de milho, mais precisamente de pipoca. Era engraçado ver o esforço da pitoca em saltar, em imitar o pulo da panela quente com seus coleguinhas. Dava a mão, completava cambalhota de lado, mexia os braços como um helicóptero, formava fila, batia palmas, desfazia a fila sob a batucada de Claudia Leitte.

Quem criou aquela coreografia e enredo, aquele adereço de capuz branco e camiseta laranja, é uma professora de muita imaginação.

Eu tinha o impulso de rir, mas a mãe da menina chorava dramaticamente, chorava fungando, chorava limpando o rosto na manga do casaco.

Chorava testemunhando a sua filha de pipoca. Chorava com uma música alegre de Claudia Leitte. Se fosse um pepino ou um abacaxi, estaria chorando. Nada demoveria suas lágrimas.

O celular da mãe tremia devido aos soluços incessantes. A filmagem não servirá para nada, mas já as suas pupilas transbordavam do brilho da memória.

Eu chorei junto, ridiculamente, pateticamente. Chorei diante de um imenso saco de pipocas humanas, pipocas fedelhas, pipocas piás, pipocas do jardim de infância. Porque me lembrei de quanto não gostava das apresentações de meus filhos. Ia obrigado, reclamando da demora para ver um ou dois passos, pois o colégio inteiro exibia os seus trabalhos artísticos antes. E o quanto sinto falta hoje: a minha criançada está grande e adolescente.

O sal da pipoca estranhamente casava com o sal dos meus olhos. A saudade é uma chantagista da pior espécie. Deveria ter aproveitado melhor a minha época. Choro copiosamente, choro contagiado, pedindo maternidade e paternidade emprestadas para completar a minha idade.

Não alcançava a importância daquele momento, de preparar uma fantasia, de acompanhar os ensaios para, ao fim, ter um filho se apresentando só para você. A exclusividade sonhada do amor.

Não traduzia o que um menino ou uma menina sente ao pisar pela primeira vez no palco, o nervosismo de errar a coreografia e as falas, a dificuldade social de encarar a ameaça do holofote e dançar conforme o ritmo, o perdão de qualquer falha em nome da coragem. Não pensava nisso, pensava em mim, em não perder tempo com outras crianças que não fossem meus filhos.

Agora toda criança é lembrança de meus filhos. Choro sem medo da vergonha. Todo pai com filhos crescidos é um orfanato.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  10/11/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18351

TRÊS POR UM

Arte de Henry Fuseli

Mulher usa três vezes mais palavras do que o homem.

É de enlouquecer quando telefona prestes a entrar em casa e fala tudo o que queria como se estivesse longe. Ela está somente há cinco minutos da porta.

É de enlouquecer quando chega em casa e conta tudo de novo o que já antecipou ao telefone. Porque uma coisa é falar à distância, outra é falar pessoalmente.

É de enlouquecer quando você está ouvindo atentamente, ela pergunta o que está pensando. Quando você responde o que está pensando, ela reclama que não sabe ouvir.

É de enlouquecer quando ela questiona como foi o seu dia e você é sincero e ela muda de assunto porque não aguenta os seus pensamentos negativos.

É de enlouquecer quando ela diz "hoje você decide!" para rebater ponto por ponto daquilo que decidiu.

É de enlouquecer quando ela xinga alguma amiga e você apoia e xinga junto e ela fica ofendida e sai em defesa de sua amiga: - Você deveria respeitar mais as minhas amizades.

Por mais que não entenda, agradeça cada palavra de sua esposa. Pois o mais irritante é quando a mulher não fala nada. O silêncio da mulher é apavorante. Um terror psicológico. Ter que falar por ela é morrer pela boca.

Ouça meu comentário na manhã dessa terça-feira (10/11), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A TEXTURA DO MUNDO É MEU TEXTO

Arte de Egerton Coghill

Quando criança caminhava para a escola raspando a mão nos muros. Pela textura, pelo cal, pelas heras, eu sabia se estava chegando ou não.

Conhecia cada muro da vizinhança como um degrau da própria escada de casa. Eu caminhava mais pelo tato do que pelos olhos. Assim, do mesmo jeito, o olfato me guiava.

Conhecia pelo cheiro a cerração das manhãs ou a luz alvoraçada da primavera. Identificava a floração e o pólen das árvores de meu bairro. As árvores eram pessoas que eu cumprimentava.

Eu despertava para a aula não com nenhum alarme, e sim com o barulho da porta pesada de ferro do armazém se levantando.

Quando amo, não são os meus olhos que me avisam que estou amando, mas a minha pele.

Desconfie do que vê. Que mantenha a infância dos outros sentidos abertos para não cometer nenhum preconceito.

Ouça meu comentário na Itapema FM RS, na tarde dessa segunda-feira (09/11), às 13h, apresentação de Denise Cruz:

domingo, 8 de novembro de 2015

GLICOSE DO AFETO


Bêbado tem dono, sim. Tem endereço. Tem memória. E merece todos os cuidados.

Quem abusa de bêbado já extraviou o caráter. Quem troça de bêbado não guarda lembrança dos extremos da adolescência e da fragilidade do corpo. Quem zomba de bêbado não enfrentou a severa humildade de dormir abraçado numa privada.

Não se fica com mulher embriagada ou que não responde pelos seus atos. É covardia, golpe baixo, desaforo. O que se deve fazer é dar carona e largá-la em casa – nada mais do que isso. Sedução requer igualdade de condições. Se ela não desfruta de equilíbrio para rejeitá-lo, não resta prêmio em conquistá-la. Zerar na noite é melhor do que não poder se olhar no espelho de manhã.

Não é homem aquele que se aproveita do porre alheio para tirar vantagem. Não cultiva o próprio respeito. Não conta com a mínima compreensão de solidariedade, de educação, de decência (palavra em desuso, infelizmente).

Bêbado é um cachorro atravessando a BR – precisamos diminuir a velocidade para não atropelar.

Não existe nenhuma graça de ver alguém cambaleando, derrubando copos e objetos em dança suicida. O riso excessivo é enganador, significa descontrole, deixou de ser divertido há quatro copos. O sofrimento se expressa também na comédia.

Sempre que um amigo passa de seu limite na bebida, eu sereno imediatamente. Acordo impulsivamente do efeito do álcool.

Um amigo em apuros é o meu café, o meu guaraná cerebral. Desperto de qualquer torpor. Não acentuo o constrangimento e não finjo euforia para cavar confissões e frases engraçadas.

Não debocho dele. Ele não se torna uma piada pela fala presa, pelos tombos ou gafes desesperadas. Não o exponho para os outros. Falo cada vez mais com calma, soletrando, explicando o que está acontecendo e que é recomendável recuar com água ou refrigerante. Sou o chato, sou o careta, sou o pai de meu comparsa, sou a figura que ele vai odiar na balada e chamar de estraga-prazer. Pois tentarei ajudar enquanto ele somente busca enlouquecer. Meus ombros serão passarelas, jamais permitirei que ele seja um mico de auditório, ainda que eu cumpra o papel desagradável de leão de chácara.

É o meu momento de protegê-lo de si mesmo – seu pior inimigo.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.40
Porto Alegre (RS),  08/11/2015 Edição N°18349