quinta-feira, 29 de maio de 2014

INFANTILIDADE

Por que os homens têm dificuldade em dividir atenção com os filhos?

Se ele é criança, sentirá ciúme. Pensa que a esposa é uma mãe e disputa espaço com birra, beiço, chantagem, suborno.

DRnaTV descobriu que se você quer uma mulher só para si, deve voltar para sua mãe.

O programa foi ao ar na terça (27/5), na TVCOM, às 20h30, com produção de Fernando Muniz.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A FALTA DO QUE FAZER BEM FEITA

Arte de Eduardo Nasi

A felicidade não dura muito tempo. Talvez uma manhã, uma tarde, uma noite, dois dias. É mais intensidade do que duração.

Se você não tira o riso do rosto, é plástica ou está fingindo. Esconde a melancolia e se esforça para disfarçar.

Felicidade não é obsessão. Felicidade é se contentar com o que não deu certo também.

É a impossibilidade da frustração, é o antônimo da culpa.

Uma criança entende mais de felicidade porque não a entende.

O adulto, ao desejar ser feliz, já perde metade da felicidade (e a saudade rouba a segunda metade).

Felicidade é estar sensível, disponível, atento a qualquer distração; é uma predisposição a mudar de planos.

É uma vida que não depende de um objetivo para ser plena.

É combinar um cinema, declinar e ficar satisfeito por estar com a mulher no sofá. É desistir de uma festa e se orgulhar de um jantar caseiro. É marcar o alarme e dormir de conchinha mais vinte minutos.

Felicidade é preguiça. Não tem a ver com trabalho.

É se divertir, de forma inédita, com o que já realizou centenas de vezes.

É se contentar com pouco, quase nada, é querer somente o que já se tem.

É absolutamente sem motivo, sem planejamento.

A felicidade é a falta do que fazer bem feita. Não é pensar naquilo que não conseguimos, é agradecer o que redescobrimos.

É quando sua alma está com o bluetooh ativo para outras almas e é capaz de receber amizades sem mediação. Eu até diria que a felicidade é uma liberdade a dois.

Não se revela na emanação larga dos lábios e na sanfona dos dentes.

Quando o riso é redondo, perfeito, completo é um riso falso, riso para enganar, riso de proteção, riso para afastar intimidade.

O autêntico riso é imperfeito, infantil, retangular, carente, envergonhado. Pede o complemento de um abraço ou de um beijo.

Aliás, a gente ri mais com olhos do que com a boca. Já a gente chora mais com a boca do que com os olhos.

Quem é feliz tem um brilho macio nas pupilas. Há uma luminosidade no olhar que chama portas e janelas. Quem é triste não cansa de rir e procura piada em tudo.

Não se pode ser feliz sempre, eis o que absorvi em meus quarenta anos.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
28/5/2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

AMOR DE MENINO

Arte de Anthony Earnshaw

Falava errado no Ensino Fundamental, com dificuldade de pronunciar o r ou diferenciar o b do p e o f do v.

Ninguém respeitava minha algaravia, língua enrolada, presa ao céu da boca. Nasci no país estrangeiro do ventre de minha mãe.

Virei motivo de piedade escolar.

Os amigos debochavam de mim, pediam para que repetisse tênis a qualquer momento, para que soasse como aquilo... vocês me entendem.

– Fabrício, teu tênis está desamarrado!

E o pior é que não sabia amarrar o tênis, o que facilitava a reincidência da piada.

Fiz fonoaudiologia (por que um nome tão complicado para quem pena com a dicção?) por cinco anos; pisava, contrariado, os palcos do colégio; apresentava, nervoso, trabalhos em grupo no quadro-negro.

Ia, cumpria os objetivos de modo mediano, satisfatório, no limite das notas.

Enfrentei meu medo com muito medo. Em algum lugar de mim, todas as ofensas estão guardadas e chaveadas. Nem procuro para não chorar.

Se eu perdoei as agressões? Acho que não. Não me lembro, não me esforço para lembrar, que é o mais próximo que cheguei do perdão.

Meu pai dizia que precisava imitar Demóstenes, que era gago. Ele colocava pedras na boca e rugia mais alto que o som das ondas. Tornou-se o maior orador da Grécia.

Fui um pouco Demóstenes no quintal de casa: em vez de pedras, mastigava as minhas dores. Em vez do mar, disputava meus gritos com o canto do quero-quero.

Tropeçava no idioma e seguia em frente. Sou o único brasileiro naturalizado brasileiro.

Assimilei macetes de sobrevivência. Evito sons perigosos, decorei enormidade de sinônimos do dicionário Aurélio para não me incriminar novamente. Assumi um papel de liderança verbal para não sofrer com a timidez.

Amadureci armado de defesas.

Mas há um único momento em que relaxo; um único em que me torno vulnerável, ao lado de minha mulher.

Ela é minha tradutora quando estou cansado e demolido e as palavras custam a sair legíveis.

É minha intérprete no carro, na rua, nas festas.

Com imensa paciência, me explica aos amigos, como se eu estivesse discursando em inglês.

Completa minhas frases sem sentido, arruma os contextos, fundamenta a loucura de meu raciocínio.

Fico coerente em seus lábios, organizado, biblioteca em ordem alfabética.

Transpõe nosso dialeto, corrige ambiguidades e me protege de incompreensões.

Entende que, exausto, regrido e abro a boca preguiçosamente, não termino o pensamento, sou um isqueiro que somente produz faíscas.

Ela me soletra, minha letra de sol, meu fogo inteiro.

Queria ter conhecido Katy na minha infância, porque hoje meu amor por ela também é um amor de menino.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 27/5/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17809

domingo, 25 de maio de 2014

IMPOSTO DO AMOR

Arte de Escher
 
Enlouqueço a casa. Procuro as notas de dentista e médico, separo as despesas, caço bilhetes e comprovantes de rendimento. Acampo na mesa de sala grampeando papéis e organizando pastas para a Receita Federal.
 
Sempre sofro no fim de abril. Minha família me conhece e me abandona ao ódio. Fico nervoso, implicante, grosseiro, com brotoejas preocupantes no rosto.
 
O Imposto de Renda exige revisão minuciosa do ano passado: controle de gastos, recibos e canhotos. É um trabalho de arqueologia das gavetas, dos bolsos da mochila, do purgatório do escritório. Qualquer esquecimento gera apreensão. É o único caso em nossa vida que esquecer é crime.
 
Enquanto quase enfartava com a pilha da papelada, criei uma ideia absurda (que só poderia aparecer diante do esgotamento nervoso): e se houvesse uma Declaração de Amor, um Imposto do Amor?
 
Sim, se todo fossemos obrigados a declarar nossas ações em nome de um namoro ou casamento. Até 30 de abril, teríamos que enviar declaração de isento ou informar o que realizamos dentro de uma relação. Seria ainda mais angustiante do que o IR.
 
Qual foi o nosso desempenho? Receberíamos caneta azul ou vermelha? Você realmente demonstrou amor para seu marido ou mulher em 2013?
 
Estou enxergando as sutilezas perigosas do quadro.
 
Não é complicado projetar a mecânica do tributo a ser colhido na alma do contribuinte.
 
Gentilezas gerariam reembolso integral.
 
Jantares, shows, viagens, festas, surpresas, bilhetes, mimos contariam a favor do saldo.
 
Já brigas, omissões, egoísmo, ataque de ciúmes, infidelidade, boicote e mentiras pesariam contra nosso histórico.
 
Cada um de nós sofreria para comprovar seus sentimentos. Não daria para expor algo sem provas. Responderíamos um longo questionário no site.
 
Amou mesmo? Onde? Como? O que renunciou em nome do outro? O que fez para esclarecer suas intenções? Cuidou de sua companhia? Dedicou seus melhores esforços ou foi omisso pelo excesso de trabalho? Amadureceu no entendimento de seus defeitos? Criou espaço para o respeito das diferenças? Não se colocou em primeiro lugar?
 
Com precisão, listaríamos nossas atividades de tempo amoroso. Os contadores estariam representados pelos terapeutas, que combateriam as distorções, desculpas e exageros. O ursinho de pelúcia tomaria o trono do rei da selva e assumiria o papel de mascote do fisco. As propagandas do governo destacariam características de um novo animal, não mais as mordidas do leão.
 
“O abraço de urso não precisa ser apertado. Não deixe para última hora!”
 
Com a avaliação anual, descobriríamos ao final se pagaríamos imposto ou ganharíamos restituição.
 
Mas sempre haveria um mundaréu de gente que sonegaria o fisco e não declararia seus males. Não existe maior sonegação do que no amor.
 
 
  

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 25/5/2014 Edição N° 17807

quinta-feira, 22 de maio de 2014

A MÁQUINA RECEBE VIVIANE MOSÉ

Viviane Mosé é psicanalista, especialista em políticas públicas, poeta, comentarista da Rádio CBN e transformou a filosofia em tema compreensível ao grande público.

Ela conta que a sua simplicidade vem do seu pai, fala sobre a adolescência cheia de angústia e diz que dói mais escrever um poema do que arrancar um dente.

Veja a entrevista ao meu programa A Máquina, que foi ao ar na TV Gazeta na terça (20/5), às 23h30.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

NADA ME FALTARÁ



Arte de Eduardo Nasi

Qual a maior alegria de pobre? Ver sua despensa cheia. Preparar um rancho mensal. Tomar as estantes da cozinha com produtos. Não sobrar uma fresta de vazio, uma nesga de espaço. Enfileirar feijão, criar um exército de arroz, formar paredões de creme de leite. 

Falo com conhecimento de casa. Pobre mesmo se contenta em forrar o futuro. Como se uma guerra fosse começar e ele estivesse a salvo. Como se não precisasse sair nos próximos dias. Estará despreocupado, salvo da inconstância, protegido da instabilidade.

Transforma sua residência em abrigo antiaéreo. Num minimercado. Num almoxarifado.

Os mantimentos são um investimento. Suas ações na bolsa. Sua bolsa pesada. Sua carteira preenchida.

Tanto que não recebe a visita pela porta da sala, e sim quando abre as portas da despensa.

Provar que pode alimentar a família e amigos é seu maior contentamento. Despensa repleta significa o antídoto contra a fome, esperança contra a carestia, vingança a qualquer penúria ancestral.

A despensa é a geladeira a seco. É a avó do freezer.

Pobre mesmo não gosta de comprar todo dia, mas de fazer estoque.

Pobre mesmo não gosta de novela, mas de comercial.

Pobre mesmo oferece festa na segunda-feira.

Pobre mesmo somente se satisfaz duplicando produtos, criando berçários de gêmeos no alto dos seus armários.

A cozinha transbordando é sua euforia eleitoral. Sua eleição ganha. Presenteia a si mesmo com cestas básicas.

Só realizando mercado a longo prazo que produz a sensação de comando da vida. É aquele momento imperioso que manda no mês e não sofre com juros.

Alegria de pobre não dura pouco — porque ele não cansa de reparti-la. Quer ter para mostrar e dividir. Diferente do rico, que pretende ter para esconder.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
21/5/2014

terça-feira, 20 de maio de 2014

QUANDO FUGI DE CASA

Arte de August Macke

Durante a infância, quem já não tentou fugir de casa?

Minha fuga aconteceu aos seis anos. Escolhi o fim da tarde para escapar de meus pais. Levei uma malinha. Fico pensando o que tinha dentro dela. Lembro que nada que pudesse me sustentar nos próximos dias. Criança não consegue pensar em mais de dois dias para a frente.

Carregava meu saco de bolitas, um pião, cinco chocolates Bis, um pijama, e uma bola de futebol. Achava que isso seria suficiente para o resto da vida. Não incluí nenhum produto de higiene – como menino, abominava os banhos e as escovadas de dente.

Não me despedi, bati apenas a porta com força. Caminhei 10 quadras para frente e decidi fazer um lanche na praça. Já entendia que fugir de casa cansa e dá fome.

Comi o chocolate imaginando que os pais e irmãos choravam com a minha partida, fariam equipes de busca para me localizar, que receberia cartaz com meu rosto de desaparecido nos postes e finalmente seria famoso.

Transcorreram 10 minutos e eu já estava entediado. Dez minutos para uma criança não fazendo nada equivalem a uma semana. Aguentei uma hora brincando de sonhar a tristeza familiar.

Mas começou a esfriar, a escurecer, latidos e piares estranhos surgiram atrás de mim, não quis arriscar, meus olhos ligaram o farol alto do medo. Com meus passos miúdos e derrotados, retornei ao lar arrastando a mala.

Quando entrei na sala, jurando que seria aclamado entre abraços e lágrimas, constatei que a mãe cozinhava, o pai escrevia, os irmãos assistiam televisão. Todos tranquilos e ocupados com alguma coisa, nem viraram o pescoço para me cumprimentar.

Abandonei a família e ninguém reparou. Ninguém soube. Ninguém desconfiou.

Pretendia chamar atenção e não vingou a estratégia. Qualquer despedida é uma maneira desesperada de ser chamado de volta. Tive que suportar a frustração, a discrição do amor, a falta de importância diante de tanta idealização.

Hoje vejo que coragem não era sair de casa, mas voltar. Não amadureci fugindo, mas ao reconhecer minhas fraquezas e regressar para a residência.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6, 20/5/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17802

BANHO DE LOJA JUNTOS

Arte de Allen Jones

Sempre que minha mulher Katy compra roupas para si, ela compra roupas para mim. Ou seria: sempre que ela compra roupas para mim, ela compra roupas para si. A questão é que sua culpa é bondosa. Sua culpa é solidária. Ela divide o crime de gastar comigo. Nem posso reclamar do banho de loja. Tomamos banho de loja juntos. Não tenho condições de chamar sua atenção. Antes de falar qualquer coisa, ela me enche de presentes. Cala a minha boca com beijos.

Já não sei se Katy é perdulária porque acaba sendo generosa. Ela me confunde. Neutraliza minha crítica. Anula meu sermão.

É a arte de se amar também me amando.

Ouça meu comentário dessa terça (20/5), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antônio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


segunda-feira, 19 de maio de 2014

VISITE O BANHEIRO

Arte de Cundo Bermúdez

“Visite a cozinha” não é um convite que me atrai em restaurantes.

Visito direto o banheiro. O banheiro que revela se a cozinha é limpa. O capricho do banheiro desvenda a relação do dono com seu lugar.

O banheiro do Dometila, no Moinhos de Vento, por exemplo, é uma teteia. Na aparência, não tem nada demais: simples, bucólico, apresentando todos os artigos indispensáveis como toalhinha de renda, sabonete líquido e papel.

Só que o local não se restringe ao básico. Oferece produtos que não são obrigatórios. Inventa necessidades. Inventa ocasiões. Inventa vontades.

Lá encontrará absorvente, cremes, fio dental.

Lá encontrará carregador de celular.

Lá encontrará até chinelos e pantufas.

Não é um toalete, e sim um camarim.

Se você aparou mal a barba, pode corrigir no banheiro. Haverá gilete e espuma. Não duvido que mulheres despreparadas, pressentindo o calor de um encontro ao acaso, não tenham se depilado rapidamente no fundo do local.

Se procurar com calma, achará secador e chapinha.

São urgências surreais, que costumam acontecer. A realidade é também irreal.

Caso a unha lascou, localizará uma série de esmaltes à disposição no armarinho. Assim como acetona e algodão.

Quando se gasta com aquilo que não é necessário, todo cliente se enxerga como especial. Quando o negócio se transforma em casa, fazemos questão de levar nossos pratos sujos para o balcão.

Não nos sentimos explorados ou incomodados por colaborar.

Somos garçons, somos amigos, somos cúmplices. Nem reclamaremos do atraso da refeição. Torcemos pelo sucesso do cardápio como quem incentiva um filho.

O banheiro é o chacra do restaurante.

O cheiro, o cuidado, a manutenção denunciam o jeito como seremos tratados.

Entendo a avareza como irmã do Procon. Nada pior do que pisar num tapume molhado de caixas de papelão. É sempre melancólico. É sempre um último tango. É sempre uma despedida da noite.

O banheiro significa o cartão de visita de qualquer estabelecimento. Quando é organizado, transmite acolhimento de hóspede, de pousada, de família.

Influencia no sabor caseiro da comida. Influencia em nossa disposição de permanecer. Influencia em nossa memória olfativa.

Não nos enxergamos pressionados a pedir a conta, a sair, a encerrar a fome.

Parece que o tempo se alarga enquanto o mundo saborosamente se encolhe.

Dometila é o temperamento gentil de seu dono. É o Claiton. Seu carinho é imenso, é de dobrar o quarteirão, de dar a volta na Praça Maurício Cardoso.

Não estranhe se voltar para a casa nas noites de inverno com uma coberta nos ombros.


  

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 18/5/2014 Edição N° 17800

FASCÍNIO E ADMIRAÇÃO


Quando começa o amor? Certamente quando o fascínio encontra a verdade de cada um. Aí, é pegar ou largar

Amor não é fascínio, amor é depois do fascínio, amor é compreensão.

O fascínio ainda é arrebatamento, tudo agrada, tudo é elogiado porque é inédito.

Não queremos perder nossa companhia, é só o que interessa, então não mostramos nenhuma resistência. 
Não nos incomodamos. Desligamos o senso crítico.

Há também a liberdade de não ter futuro. Não nos enxergamos morando com a pessoa. 
Não nos enxergamos descascando os problemas e a rotina com a pessoa. Não nos enxergamos discutindo longas madrugadas com a pessoa. 

Não nos enxergamos defendendo os nossos pequenos hábitos, antes naturais e automáticos, diante do olhar espantado.

O fascínio não inclui projetos, é fruição.
O fascínio não envolve julgamento.

Fascínio é a lua de mel das virtudes.
É se deixar levar. É não pensar demais.

Fascínio é hipnose, transe, mergulho sem os pés medindo a temperatura e a fundura da água.

Todos começam fascinados e terminam decepcionados no relacionamento.

Surge a dúvida: Será que é ele? Será que é ela? A dúvida não é ruim, a dúvida é quando passamos a praticar a verdade.

O fascínio é o éden, já a sinceridade é a maçã mordida.

No fascínio, o certo e o errado não existem, apenas a vontade imperiosa de ficar junto.

É preciso cair para se vincular. É preciso questionar para confirmar.

A decepção é que desenvolve o amor.
A frustração é que amadurece o amor.

É quando percebemos que o outro não está nem na nossa cabeça, nem no nosso coração, e que temos que percorrer um longo caminho a cada manhã para conhecê-lo. Aquele que parecia tão nosso é um estranho: vem o medo, a angústia, a ansiedade que destroem a inteireza das palavras. É quando o outro mente, é quando o outro comete uma falha, é quando o outro é grosseiro, e então o fascínio desaparece, e somos reais de novo e temos que tomar uma decisão pesando pontos positivos e negativos.

E a escolha é perdoar os erros e, mais do que isso, entender os erros e considerá-los naturais. Perdoar os erros de quem nos acompanha como perdoamos os nossos próprios erros.

É concluir que ele ou ela não acerta sempre, mas acerta mais do que erra e vale a pena continuar.

Troca-se a invencibilidade pela fragilidade. Troca-se a projeção pela introspecção.

Da morte do fascínio (a inconsciência da paixão), nasce a admiração (a consciência do amor) – esta, sim, será pela vida afora.


Publicado na Revista Isto É Gente
Maio de 2014 p. 54
Ano 14 Número 708
Colunista

UMA HISTÓRIA INSPIRADA EM FATOS REAIS

Arte de Eduardo Nasi

O grande sonho de Elias era levar sua avó para o cinema.

Ela tinha setenta e cinco anos e jamais entrou numa sala.

Bernadete tinha visto o mar, mas jamais tinha visto a tela grande.

Não era por medo do diferente, que ficasse hipnotizada por aquelas figuras gigantescas se aproximando perigosamente de seu rosto.

Não era por medo do escuro, da atmosfera silenciosa que cobre a multidão.

Não tinha fobias.

É que preferia que o neto contasse os filmes que assistia.

De noite, perguntava para Elias que filme tinha visto e se esbaldava na cadeira de balanço com os olhos fechados e os ouvidos abertos.

Mas ela somente desejava filmes baseados em fatos reais. Tinha como única exigência.

Elias procurava o cinema para matar a saudade de sua avó e se abastecer de notícias. Dos quinze aos trinta anos, cumpriu essa missão.

Ela vibrava quando o jovem vinha com uma obra inspirada na realidade.

“Hoje, vó, vou contar o filme Terminal.

Enquanto Viktor Navorski, viajava de avião para a cidade de Nova Iorque, o governo de seu país sofre um golpe e seu passaporte perde a validade, deixando-o preso no Aeroporto Internacional John F. Kennedy.

Ele não pode entrar nos Estados Unidos nem voltar para seu país.

E não tem dinheiro e não sabe falar inglês. Imagina a dificuldade.

Nos nove meses seguintes, Viktor é obrigado a viver num terminal. Acaba fazendo amizade com os funcionários e aprendendo táticas para conseguir comida e sobreviver.”

Era um filme falado, com projetor aceso das palavras, impregnado da emoção da voz e cheio de perguntas e intervalos para buscar chá e comer chocolate.

A vó sorria, chorava, sofria.

“Hoje, vó, vou contar o filme À Procura da Felicidade.

Chris Gardner é um pai de família que não tem muita sorte na vida, enfrenta sérios problemas financeiros e é abandonado pela mulher.

Ele fica com a responsabilidade de cuidar de seu filho de cinco anos.

Só que não consegue nenhum emprego. É inteligente, mas não há nenhuma vaga.

Sem lugar para dormir, sem apoio dos parentes, aceita começar de baixo: um estágio numa importante corretora de ações.

Tem que ser admitido o mais rápido possível para ganhar o primeiro salário…”

Quando Elias dizia o fim, a vó dava um abraço e mexia na carteira à cata de um dinheirinho.

— Não, não, de modo nenhum.

— Toma, Elias, é o ingresso.

— Então, é a metade, pois acima de 65 anos tem desconto.

Apesar dos encontros divertidos e comoventes, Elias ainda alimentava a esperança de que um dia pudesse carregá-la para o cinema.

Preparou uma surpresa. Surgiu de carro em sua casa, não explicou o destino e entrou com Bernardete numa sala do shopping Iguatemi. Quase que forçosamente, carregando sua amada senhora pelos braços.

Optou por “Um Sonho Possível”. Quando o filme terminou, ansioso pelo resultado do encantamento, perguntou o que ela achou.

— Não gostei, você contando é muito melhor.

Sua vó era também um filme baseado em fatos reais.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
14/5/2014

UM ELOGIO AOS CURIOSOS

Arte de Hannah Höch

Nem humildade, nem ambição: curiosidade.

A curiosidade é humildade e ambição ao mesmo tempo.

Na curiosidade, temos humildade para aprender e ambição para não desistir de buscar.

É uma perfeita medida. Os estados de espírito terminam moderados, neutralizados.

A curiosidade freia que a pessoa seja megalomaníaca e também inibe que seja uma pobre coitada.

O problema do humilde é que ele quer ser santo, o problema do ambicioso é que ele quer ser rei. A curiosidade escapa desses dois extremos da ganância.

O curioso é apenas curioso. Não pode ser mais do que curioso. Está protegido da fama e da doença do excesso.

Ele é um insistente, um incansável. Não fica reclamando, vai perguntando e correndo atrás para descobrir o que falta.

Ele é menor para que a vida se torne maior. Ele é discreto para que suas descobertas produzam visibilidade.

Ele faz perguntas idiotas para gerar respostas inteligentes.

Ele não tem vergonha das suas dúvidas, sempre desconfia que tem mais a saber.

Ele não mentirá (o mentiroso é um ansioso), já que prefere desvendar a verdade.

Ele é independente, enfrenta a banalidade e a complexidade com desembaraço, acolhe o óbvio e o abstrato com democrática simpatia.

Ele é um interessado intenso. Não finge atenção, é atenção. Está satisfeito com tudo porque completará com sua procura.

Não é acomodado, é observador. Realiza seus desejos com espontaneidade. Como se fossem naturais. Não é espalhafatoso em suas intenções. Conclui antes de anunciar. Ao estudar sobre aviação, é capaz de voar. Ao estudar sobre orquídeas, é capaz de cultivá-las.

Não cria empecilhos para protelar nenhum sonho. Dispensa o esforço da desculpa pelo entusiasmo da interrogação.

O curioso jamais é ingrato. Se recebe um presente, será eufórico, ainda que seja uma lembrança. É fácil de ser agradado. Não repete a mesma área, quer ir além.

Pode ganhar um CD brega de amigo-secreto e irá ouvir com dedicação. Para um dia dizer que ouviu. Para entender o motivo da breguice. Não fará a cena de deboche e de engano que todos realizam quando não são correspondidos com sua idealização.

Não joga nada fora, nenhuma pessoa. Conversa com igual atenção com o zelador, o eletricista, o empresário, a manicure. Questiona sem parar modos diferentes de conduta, tenta entender como aquela personalidade se formou, quais são suas fragilidades e forças. Assim desarma seus preconceitos com respeito e intimidade.

Não será melhor do que o outro, pois sempre se melhora com o outro.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 13/5/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17795

domingo, 11 de maio de 2014

SEJA HOMEM PARA TERMINAR

Arte de René Magritte
 
Se vai se separar, não arrume desculpas ou evasivas.
 
Não tente colocar a culpa no outro para ainda se sair como vítima.
 
Não transfira sua decisão, muito menos queira repartir a culpa.
 
Não fique cavando erros para sair ileso e diminuir sua pena.
 
Não procure aliviar a dor com eufemismos.
 
Não torture com falsas promessas para ganhar tempo, não sustente planos conjuntos.
 
Não escolha o melhor dia para evitar conflitos. Não há melhor dia para se despedir. Todo dia é ruim. Todo dia é triste.
 
Não diga “eu te amo” por convenção, como se fosse um cumprimento, para despistar o que já definiu em segredo.
 
Não perdure cobranças se já não deseja mais nada.
 
Não discuta por horas a fio por um preciosismo ou um deslize se não tem paciência.
 
Não imponha sua vontade se não tem vontade.
 
Não banque o tirano, o ditador, para encobrir o crime do desamor.
 
Não conte aos amigos o que sente se não conta antes para sua companhia.
 
Não mergulhe na omissão sob a alegação de que ela não vai entender.
 
Não pense por ela, não fale por ela, não está mais conectado para traduzir o que ela deseja.
 
Não faça fiado com o silêncio, não faça empréstimo com as lembranças, não invente de pagar as palavras com juros.
 
Seja direto, didático, claro.
 
Que encontre a coragem da simplicidade. A confusão neste momento gera covardia.
 
Sem teorias, sem defesa, sem chantagem, sem adiamentos.
 
Exponha que não ama mais ou o que está envolvido com uma nova pessoa ou que não tem mais interesse.
 
Mas assuma o ponto final, não finja que é uma vírgula.
 
Metade dos traumas da separação é que alguém saiu sem explicar o motivo.
 
Metade dos traumas do divórcio é que alguém ficou com aquele medo preguiçoso de transparecer o fim.
 
E quem é deixado para trás passa o resto dos dias buscando entender o que aconteceu, remoendo o desfecho, carregando o ressentimento de que havia como continuar e inventando motivos.
 
Não dê trabalho de ressurreição a quem dividiu a vida com você, dê a verdadeira causa do óbito.
 
É uma injustiça sumir, desaparecer, virar as costas.
 
O coração é um cartório. Tem que reconhecer firma. Na entrada e na saída de qualquer relacionamento.
 
Caso foi homem para declarar o amor, tem que ser homem para encerrar o amor.
 
Caso foi homem para começar o amor, tem que ser homem para terminar o amor.
 
  

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 11/5/2014 Edição N° 17793

quarta-feira, 7 de maio de 2014

MAIS DO QUE AMOR 20: AMOR 21

Arte de Eduardo Nasi

Não há maior orgulho materno do que cuidar de uma criança com síndrome de Down. 

O rosto de mãe já é coberto de ternura. Mas o rosto de mãe de uma criança portadora é de uma pureza contagiosa. Rosto transfigurado pela doação. E pela recompensa de ver o filho crescendo miudamente.

Eu tenho arrebatamentos ao avistar uma mãe caminhando com seu filho na praça.

Ela não se entregou para aparência, não escondeu a feição de seu rebento em nenhuma imagem, não se diminuiu em preconceitos, não fugiu dos amigos e familiares, descobriu a beleza dos olhos graúdos e oblíquos pescando o infinito, a delicadeza daquelas orelhas pequenas que lembram uma boca fazendo bico para a foto.

Não se arrependeu em nenhum momento e nem rifou sua paz pela idealização.

Assimilou a lição de que o que vale é um dia atrás do outro. O que vale é o dia imperfeito (o dia imperfeito é o que completamos, o dia perfeito se faz sozinho).

Um filho com síndrome de Down é inteiro porque se comemora também os números quebrados de cada façanha.

Ele não aprende a andar uma única vez, aprende a andar sempre. Ele não aprende a falar uma única vez, aprende a falar sempre. Ele não aprende a amar uma única vez, aprende a amar sempre.

A repetição aperfeiçoa a intimidade e cristaliza os laços.

Não há o extremismo da ternura. Extremismo é imaturidade: ou é o meu sonho ou será o pesadelo daqui por diante.

Compreende-se que viver é provisório, um meio-termo, aceitar o possível.

Melhor o que é real e pode ser dividido do que aquilo que é imaginário e morre com a gente.

Ela passeia com uma altivez de mãos dadas que deve influenciar o voo dos pássaros e o salto dos gatos.

Não sinto pena, não sou contraído por compaixão, é admiração pura.

Não sofro pontadas de curiosidade, é encantamento mesmo.

Invejo a entrega irrestrita, generosa, compreensiva.

— Aquilo é amor! —, minha ânsia é apontar e completar as palavras com as mãos.

Ela tem o dobro de preocupações, porém recebe o dobro de esperança.

É como se sua criança jamais abandonasse o apelo infantil, a honestidade infantil, a confiança infantil.

Trata-se de um outro diálogo, em que exige paciência para ouvir e conversar.

O tempo suspende seu passo de ponteiro, ela baixa a cabeça para entender o que está sendo desejado pelo seu filho.

Não escuta correndo, distraída. Não escuta avoada, dispersiva. Escuta olhando nos olhos.

É óbvio que a criança tem uma outra fé no mundo quando tem alguém para si que só fala olhando nos olhos.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
7/5/2014

segunda-feira, 5 de maio de 2014

TELECOLO



Os casais não têm tempo para cuidar do outro. 

Marido e esposa chegam arrasados em casa, destruídos pelas preocupações do dia e antecipando as expectativas da semana. 

São como lutadores de boxe, suados e inchados, pedindo um abraço, uma trégua, antes de desferir os próximos socos. 

Entram em seu lar e, mesmo bem intencionados, fracassam em consolar sua companhia. Não encontram ânimo para manter uma conversa inspiradora e incentivar o casamento.

Deitam no sofá, encalhados. Ambos querem chamego, precisam de cuidados e não se oferecem por absoluta falta de energia.

É deitar que desmaiam.

O que abre a possibilidade de um novo negócio no mercado: o tele-colo.

Pessoas capazes de oferecer um colo amigo.

Nada a ver com sexo, com prostituição, com taras eróticas.

Nada a ver também com terapia e confissão.

Uma profissional da ternura.

Nas horas de estresse absoluto e desesperança, chamaríamos o tele-colo.

Procuraríamos o telefone no ímã da geladeira.

Apareceria em sua residência uma tia, com idade superior a 65 anos e cheiro de vó, vestindo pijama e calçando pantufas.

Sim, pijama e pantufas, para desfazer qualquer apelo erótico.

Seu serviço poderia durar apenas trinta minutos, o suficiente para espantar a enxaqueca dos ossos.

Consistiria em carinho nos cabelos, cafuné, e um silêncio entremeado de palavras de apoio e frases afirmativas.

Nenhuma discussão, nenhuma pergunta, nenhum questionamento.
Nenhuma desconfiança, nenhum julgamento.

Conheceríamos a paz absoluta da cumplicidade.

Sua primeira providência seria preparar um chá e alcançar um analgésico, naquela atitude preocupada, de pé, esperando os movimentos da nossa boca.

Deitaríamos nos ombros dela com a confiança de travesseiros ortopédicos.

Resmungaríamos que está difícil, complicado, que não enxergamos saída e sentido para tanta entrega.

Ela responderia com ênfase: "Vai passar", "É só cansaço", "Está fazendo seu melhor".

A voz deve ser mansa, legível, reconfortante, de rádio AM.

Fecharíamos os olhos docemente, para ensaiar o sonho em rápido cochilo.

Ela nos colocaria na cama, puxaria nossas cobertas até o início do queixo. Programaria a televisão para desligar em quinze minutos e armaria o alarme do celular.

Dependendo do desespero, cantaria uma música de ninar. Mas só em último caso.

Sairia de cena sem deixar vestígios.

Amanheceríamos com a sensação de banho tomado. Banho de alma.

  

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 4/5/2014 Edição N° 17737

A MÁQUINA RECEBE HÉLIO DE LA PEÑA

O humorista Hélio de la Peña, criador da revista Casseta Popular, membro do Casseta & Planeta e escritor, conta que os filhos já sofreram bullying por conta do seu humor, especialmente quando ele se vestia de mulher.

Ele fala sobre o racismo antes e depois da televisão em meu programa A Máquina de terça (29/4).

Veja a entrevista completa que foi ao ar na TV Gazeta, às 23h30.