terça-feira, 29 de julho de 2014

A JANELA ADESIVADA DE MINHA ADOLESCÊNCIA

Arte de Willem den Broeder

Visitei a casa do meu passado onde mora a mãe.

Sempre que entro no meu quarto é como se regredisse no tempo.

Os móveis do jeito que deixei, a estante com os livros de Castañeda e Hermann Hesse, as gavetas com cartas e fotos de amores antigos, os quadros de Brecht e Che Guevara.

Fui abrir as janelas para tirar o cheiro de guardado de décadas e permitir o sol entrar. Ao pentear as cortinas ao meio, eu me dei conta de que não dava para ver nada.

Lembrei que, como adolescente em minha época, adesivei todo o vidro.

Participei da febre e da moda entre os jovens dos anos 80: colar adesivos de lojas, de rádios e camisetas, sorteados em promoções.

A vidraça inteira coberta de propaganda. Não havia nenhuma frincha para escapar o olhar ao pátio.

A vidraça abarrotada como uniforme de piloto de Fórmula-1.

A vidraça cheia como um álbum de figurinhas gigante.

A vidraça pichada de slogans e apelos comerciais.

Não faz muito sentido hoje, mas traduzia uma das primeiras demonstrações de emancipação adulta.

Afrontávamos a estrutura dominante, careta e organizada da família.

Como não contávamos com o direito de escolher a cama, a escrivaninha, a colcha e o armário, partíamos para personalizá-los. Ou seja, estragá-los com nossa desobediência.

Os pais reclamavam de nossa mania. Para eles, significava lesar a conservação dos espaços e impedir a limpeza.

Nem havia mesmo como tirar depois. Ficava eternamente na película com sua cola aderente, grudenta, que só esponja de aço seria capaz de remover.

Pôr adesivo tinha o mesmo peso de uma tatuagem e um piercing. Uma transgressão, uma clara discordância doméstica, sinal de que crescíamos e que desejávamos nossa independência, nosso caos, nossa bagunça, expor as nossas preferências. Realizávamos escondidos, distanciados da censura dos mais velhos.

Entre os colegas de escola, disputava os decalques. Se recebia um novo, de formato diferente, já festejava e esnobava diante da turma nos grupos de estudo.

Os mais chinelos eram os de postos de gasolina, os mais venerados eram os de jeans com frases de efeito: “Liberdade é uma calça velha azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser”.

A janela adesivada ilustrava o isolamento do adolescente, que cria um forte em seu quarto, uma trincheira de seus gostos, apartando-se cada vez mais do resto da residência até sair em definitivo.

Explicava o quanto vivíamos para dentro, em nossos devaneios. A paisagem não existia, unicamente nossas ideias, fantasias consumistas e palavras de protesto. Período saudoso quando morava apenas em meus pensamentos e acreditava que o mundo deveria me obedecer.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 29/7/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17874

Um comentário:

VITORIO NANI disse...

Lendo este post, voltei no passado dos meus filhos adolescentes! Hoje tenho netos na mesma idade e eles são muito diferentes dos pais. Que pena! Vivem escravos dos tablets e celulares!