quarta-feira, 25 de junho de 2014

CHICO NÃO CONTA

Arte de Eduardo Nasi

Geni vivia alertando:

— Chico Buarque não é traição!

O compositor era um desconto essencial na monogamia, nem poderia ser considerado infidelidade, já que ele entendia as mulheres como ninguém.

Moisés não morava no Rio de Janeiro, não corria o risco de esbarrar com o compositor de olhos verdes marinhos, nem de extraviar  sua companheira  em um mergulho nas águas geladas da Barra da Tijuca. Morava longe da gloriosa exceção, protegido em Porto Alegre, o que lhe trazia tranqüilidade.

O gênio de Meu Guri, Valsinha e Construção não simbolizava uma ameaça direta, apenas uma implicância platônica e idealizada a todo momento:

— Poderia compreender um pouco nossa alma como o Chico, né?

— Desculpa, amor, mas eu dava para o Chico. Como pode alguém escrever que a saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu? É muita sensibilidade!

— O Chico é rei, Chico é Deus, diz tudo o que uma mulher gostaria de ouvir: “Ainda vou penar com essa pequena, mas o blues já valeu a pena”.

Moisés buscava inutilmente criar atenuantes: Chico está barrigudo, completou 70 anos, tem idade para ser seu avô, deve usar viagra.

Geni ficava ainda mais atiçada.

— Chico é eterno, não adianta se defender. Ele não conta como traição!

E saia cantarolando pela casa:  “Meu coração/ que você sem pensar/ ora brinca de inflar/ ora esmaga/ igual que nem/ fole de acordeão/ tipo assim num baião/ do Gonzaga”.

Enquanto Chico permanecia longe da capital gaúcha, Moisés não se percebia corneado. O desastre emocional foi quando Geni apareceu com dois ingressos para show no Teatro do SESI.

Moisés suou frio, imaginou Geni se esfregando no cantor, imaginou Geni trancada no camarim, imaginou Geni gemendo chansons e sambas no ouvido de Chico. Foram dias repletos de angústia, paranóia, aflição. Não se alimentava direito, não trabalhava concentrado, extraviou o apetite sexual.

Quando chegou a hora do espetáculo, quando Moisés viu os olhos brilhando de Geni na platéia, quando as cortinas se abriram, quando ouviu o início da primeira música da noite — “Hoje o inimigo veio me espreitar/ Armou tocaia lá na curva do rio/ Trouxe um porrete a mó de me quebrar/ Mas eu não quebro porque sou macio” — não sei o que aconteceu com Moisés, talvez tenha sido o medo desesperado e irracional de perder a esposa, talvez tenha sido o pânico do concorrente famoso, mas Moisés correu em direção ao palco e beijou Chico na boca, inesperadamente, interrompendo a canção “Meu Querido Diário”. Um beijo estranho, de língua, assustado, deixando o músico extremamente constrangido.

Ninguém entendeu nada, muito menos Geni. O público aplaudiu timidamente jurando que se tratava de mais um fã alucinado e carente.

Levado pelos seguranças para fora do teatro, Moisés ainda conseguiu gritar para sua mulher:

— Chico não conta, não vale, não é traição!






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
25/6/2014

2 comentários:

Vih disse...

Realmente, poucos são tão sensíveis quanto Chico; seja pra falar de amor, seja pra falar de sacanagem. É tudo tão bonito que, quando se nota, já se concordou com tudo o que ele cantou.
Beijos rimados, Carpi :*

Unknown disse...

Segui. Da uma olhadinha no meu blog. Sou compositora de belíssimos poemas, e queria muito ter um reconhecimento. Aqui segue o link:
http://deamigasparaomundo.blogspot.com.br/