quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O DOCE É O VERDADEIRO VIBRADOR FEMININO

A mulher esquece do homem quando enxerga o doce, ou quando come o doce.

Viajei para a cidade nacional das guloseimas, Pelotas, para entrevistar o público feminino sobre essa paixão exclusivista.

Assista DRnaTV, meu programa doido na TVCOM, com mediação de Sara Bodowsky e produção de Manuela Ferreira.

 A exibição aconteceu na noite de terça-feira (26/2).

LAURA

Arte de Eduardo Nasi
 
Eu e meu marido saímos cedo de casa. Ele acorda antes de mim. Nem o vejo: pressiona seus lábios em minha cabeça e parte para o curtume.
 
Às vezes exala de sua boca o aroma de café com leite. Eu gosto de ser beijada dormindo. A testa é a última porção do rosto que lavo na hora de acordar — preservo sua benção.

Não nos falamos durante o dia. Começo o expediente às 8h na fábrica de costura. O intervalo de almoço é de 45 minutos. Nossa vida é baixar o queixo e se concentrar em panos e couros.

Mário ainda trabalha longe, em outra cidade, chega em nossa residência depois da meia-noite. Preparo comidinha e guardo nas panelas. Nunca janto com ele.

Ele pressiona seus lábios em minha cabeça e dorme. Aprendeu a tirar a roupa sem me acordar. Imagino que seus sapatos são silenciosos; as mangas, esvoaçantes; os casacos, de pluma.

Sua nudez não pesa mais no colchão. Ele treinou desaparecer de mim.

É um homem que cuida de meu sono, já que não pode cuidar de minhas palavras.

Experimentamos a solidão do casamento. Aperto o forro dos bolsos para fingir sua mão na minha mão. Sua mão pesa igual à gaveta da cozinha.

Quando cruzamos um olhar no corredor, é uma janela. Ele não amaldiçoa o cansaço, o salário, a falta de esperança. Agradecemos a saúde para continuar.

Eu me habituei com o raso, é só pôr mais água no feijão.

Somos acostumados. Juntamos nossas economias para pagar a casinha. Há mês que sobra, arrumamos até um armário novo para o quarto, com prateleira para botar cobertas e lençóis.  Pela primeira vez, tiramos as caixas de papelão debaixo da cama.

Meu homem é do mundo. Eu sou do mundo. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado sem ele. Sem trocar impressões ou pedir ajuda ou chorar. Sou quase uma viúva. Ele é quase um viúvo.

Mas jamais reclamo porque tenho meu domingo.

No domingo, nos acordamos no mesmo instante. E eu dou um beijo em sua testa.

Preparamos o mate e sentamos na varanda.

Ele me fala o que fez, o que pretende fazer, o que nunca fará.

O vento sopra em nossas oliveiras e ele pergunta se estou com frio.

Naquele momento, ele é meu homem, somente meu, de mais ninguém.

Quando ele é meu, eu também me pertenço.

São seis horas por semana em que não preciso dividi-lo. Cheiro suas golas, deito em seus ombros e penteio seus cabelos com as unhas.

Parece pouco, mas é toda a minha vida, por isso despertarei o resto dos meus minutos. Duvido que alguém seja mais feliz.
 
 




Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

BENDITA

Arte de Cindy Sherman

Palavra tem sentimento, muda o destino do casal. Um termo errado nos precipita ao desterro, o termo certo nos conduz ao paraíso. Falar não é um detalhe para as mulheres que nasceram para ouvir. É trocar um adjetivo, que renovamos o alvará do amor. Não podemos, homens, nos dar ao luxo da preguiça. A sedução é trabalho diário e incansável. Cultive o dicionário, colecione vocábulos, sente na gramática.
 
Não diga que ela é autoritária, diga que ela é uma liderança.
 
Não diga que ela é indiscreta, diga que ela é curiosa.
 
Não diga que ela mente, diga que ela possui uma imaginação poderosa.
 
Não diga que ela é estourada, diga que ela é corajosa.
 
Não diga que ela é atrapalhada, diga que ela é perfeccionista.
 
Não diga que ela é irritante, diga que ela é persistente.
 
Não diga que ela é consumista, diga que ela sabe escolher.
 
Não diga que ela é manipuladora, diga que ela é decidida.
 
Não diga que ela é dramática, diga que ela é emotiva.
 
Não diga que ela é vulgar, diga que ela ama a simplicidade.
 
Não diga que ela é imprudente, diga que ela é ousada.
 
Não diga que ela é ciumenta, diga que ela é interessada.
 
Não diga que ela é medrosa, diga que ela é sensível.
 
Não diga que ela cozinha mal, diga que sua comida é rústica.
 
Não diga que ela exagerou ao cortar o cabelo, diga que ela transpira independência.
 
Não diga que ela grita, diga que todos precisam ouvi-la.
 
Não diga que ela é agressiva, diga que ela é lutadora.
 
Não diga que ela é orgulhosa, diga que ela tem personalidade.
 
Não diga que ela é possessiva, diga que ela é cuidadosa.
 
Não diga que ela é mimada, diga que ela é uma princesa.
 
Não diga que ela não tem razão, diga que sua opinião é importante.
 
Não diga que ela sempre se atrasa, diga que admira sua calma.
 
Não diga que ela é confusa, diga que ela é misteriosa.
 
Não diga que ela é ambiciosa, diga que ela é sonhadora.
 
Não diga que ela entendeu errado, diga que você explicou muito rápido.
 
Não diga que ela é fofoqueira, diga que ela é bem informada.
 
Não diga que ela é obcecada, diga que ela não desiste.
 
Não diga que ela é maníaca, diga que ela é organizada.
 
Não diga que ela é gorda, nem tente encontrar um sinônimo, apenas não diga.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 26/02/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17355

PENHOR

Arte de Patrick Heron
 
Se você recebeu um presente que não gostou não dê para outra pessoa. Já não funcionou uma vez.
 
É ser camelô do afeto, contrabandista da amizade, traficante da própria casa.
 
Por que você acredita que alguém vai gostar de algo que você não gostou?  Ou você acredita que o outro tem mau gosto?
 
Acertei? Você tem bom gosto e dá para quem tem mau gosto? Está chamando o presenteado de cafona? Está ofendendo o presenteado?
 
E ainda lança aquela frase hipócrita: “Pensei em ti, pensei que é tua cara”.
 
Nossa, reembrulhar um presente traz azar, tem energia negativa, todo mundo nota o embrulho solto e o durex sem cola.
 
Não se pode remanejar presente. Reutilizar. Não favorece o carma. É muita avareza entregar algo de segunda mão. É para economizar duas vezes (poupar tempo e poupar dinheiro).
 
Presente não é obrigação. Presente não é se livrar da tarefa. Não é disque-entulhos.
 
Melhor esquecer a data do que passar adiante algo rejeitado.
 
Oferecer jóia da ex-mulher para a nova namorada, por exemplo, é de última categoria.
 
Você não é uma casa de penhor, querido.
 
Pior que isso é só reciclar camisinha.
Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (26/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:
 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A FOLIA DO CIÚME


Não temo o barraco. A gritaria do ciúme. Desde que seja no instante em que ela viu e esbravejou. No momento certo da raiva.
 
Ciúme pontual é saúde. Ciúme atrasado é doença.
 
Ciúme bom é flagrante, é catarse. Sentiu, falou, acabou.
 
Ciúme ruim é dissimulado, reprimido, azedará em segredo.
 
Não me amedronto com o escândalo na frente dos amigos, não receio zombaria entre os colegas.
 
Que a mulher me xingue em público, jogue minhas roupas para fora do armário, arremesse pratos na parede, esculhambe meu expediente.
 
Ciúme é natural no amor, como cachaça em prateleira do boteco.
 
Apagar o ciúme é apagar, da convivência, a embriaguez da paixão, anular o sentimento de pertencimento, é retirar a insegurança que nos torna atentos.
 
Ciúme é curiosidade, é a vontade de saber, de descobrir, de atualizar a relação. Nada de errado.
 
O que morro de medo é do ciúme retardatário, o ciúme premeditado, o ciúme friamente planejado. Quando a esposa silencia para cobrar no futuro.
 
Sempre sai mais caro, sempre tem juros.
 
Fiasco na rua não me assusta, discussão alta de madrugada não me envergonha.
 
O que me incomoda é quando a mulher percebe algo de errado e não me diz e fica colhendo provas.
 
Aquele ciuminho que poderia ser resolvido rapidamente acaba se transformando em mágoa e a mágoa crescendo em desconfiança permanente.
 
Coitados dos casais educados que não resolvem pequenos desentendimentos no ato. Levar problemas para casa significa valorizá-los.
 
Sorte dos barraqueiros: eles dificilmente se separam, não cultivam ressentimentos, explodem na hora e não tocam mais no assunto.
 
O que morro de terror é do ciúme calculado, o ciúme abafado, o ciúme que será rancor e despejo.
 
Tremo com o ciúme que é relatório do Tribunal de Contas, feito para separar e jamais esclarecer. O ciúme que demora a ser formalizado, longe de sua origem e eclosão.
 
O ciúme que o homem já esqueceu, de tempo atrás, mas que ela conservou na adega do inconsciente e um dia vai abrir. O ciúme que é vingança, revanchismo, vontade de terminar.
 
Não me indisponho com o ciúme passional, com a censura instantânea, com as perguntas à queima-roupa (Quem é ela? Já comeu? Tá me traindo?).
 
O que me causa dissabor é a maldita frase “Vamos conversar depois”.
 
E você não tem nem ideia do que ocorreu, não tem noção do que ela localizou e compreendeu errado.
 
"Vamos conversar depois" é uma sentença terrível. Ela não revela o que incomodou, deve ser coisa antiquíssima, e mantém um suspense sádico para atrapalhar a tranquilidade.
 
Ela anseia seu sangue, seus nervos, seus ossos – o desespero masculino no estado bruto. Cobiça que realize a revisão de seus atos, que interrompa tudo para adivinhar o motivo.
 
Você vai procurar alguma mensagem ambígua, algum comentário esquisito no Facebook, alguma pedra de amolação na intimidade.
 
“Vamos conversar depois” é terrorismo, é avisar de um castigo escondendo o desaforo, é antecipar a quarentena ocultando a doença.
 
É reprimenda de mãe. E já tenho uma mãe, não quero outra.
 
 
Minha coluna na Revista IstoÉ Gente
São Paulo, fevereiro de 2013, p. 66, Edição Nº 694

domingo, 24 de fevereiro de 2013

QUASE PERFEITO — Consultório sentimental de Carpinejar

VETERANO DA DESPEDIDA
Arte de Kurt Schwitters

“Estava namorando há quase sete meses com uma mulher que não achamos tão fácil por aí. Eu sou mais emotivo do que ela. Gosto de abraçar, beijar, ficar junto, porém ela não é assim. Terminamos no final de semana. Na verdade, ela me deu um pé na bunda por incompatibilidade de gênios. Queria que me ajudasse, pois agora ela está pedindo pra voltar. Ela me magoou muito, e não gosto mais dela como antes. Estou indeciso porque já tive outro relacionamento em que terminei com a minha ex oito vezes. Foi um inferno, e eu não quero que isso se repita. Obrigado desde já, Rafael”
Querido Rafael,
Você adora discutir o relacionamento, acredito que se sente valorizado na hora de brigar (tanto quanto no sexo).
Toda briga engrandece seu passe. Com uma discussão de relacionamento, temos o poder de terminar ou reatar. Há uma adrenalina na gritaria, feita de reinícios, reprises, acusações, defesas, beijos com gosto de lágrima e ecos intermináveis.
Julgar o outro sempre é uma forma de se perdoar e se elogiar. Ela é fria, e, portanto, você é quente. Ela não abraça, não beija muito, não se derrete, portanto, você é que oferece afeto e não é reconhecido.
Entende? Você é o certo, e, portanto, ela é errada. Você é o santo, e, portanto, ela é o monstro insensível. O maniqueísmo destrói afetos.
Não deve ser bem assim o romance. Precisamos dar um desconto, concorda?
A cobrança é uma competição oculta. Fomenta uma rivalidade difícil de controlar. Espera o erro dela para logo denunciar, ela espera sua denúncia para logo pedir as contas, e assim os humores se esgotam com rapidez.
Você terminou oito vezes seguidas com a ex. O que me sugere que o barraqueiro é você, não a atual namorada. Não vem dizer que discute porque não tem saída, a discussão é sempre a sua saída.
Por algum motivo, carrega a suspeita de que ninguém é capaz de amá-lo sinceramente. Talvez você se ache feio, ou com pouca experiência, ou em desvalia financeira. A DR serve para testar o amor de sua companhia. As conversas sérias são maneiras de examinar se ela realmente terá paciência para conviver e quais as verdadeiras intenções. Abre um inquérito das últimas declarações com o claro objetivo de desmascarar suas pretendentes.
Diz que não gosta tanto dela como antes porque simplesmente frustrou seu plano, desistiu de brigar e rompeu o namoro. Não tolerou o permanente ataque de nervos por melhores condições e caiu fora.  Você ficou falando sozinho.
Ela não foi aprovada no grande concurso público de suportar suas ofensas até o fim. Alguém suportaria?
É impossível conviver com o inimigo. Mude de lado, por favor.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Caderno Donna, p. 7
Porto Alegre (RS), 24/02/2013 Edição N° 17353
Preservamos a identidade do remetente com nome fictício.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

LEITURA DE CASAL

Você lê a dois? Espera o outro terminar a leitura para virar a página?

Ou o livro é egoísta?

Veja meu programa DRnaTV, da TVCOM, exibido na noite de terça-feira (19/2).
 



JUSTIFICATIVAS SÃO MENTIRAS

Arte de Hannah Hoch

Triste quem vive se justificando e não assume o que aconteceu.
Não é que eu fui corneado, nossa relação era aberta.
Não é que eu tropecei, estava dançando.
Não é que eu roubei, peguei emprestado.
Não é que eu broxei, quis dar mais tempo para o sexo.
Não é que eu esqueci, preparava uma surpresa. 
Não é que eu menti, realmente não sabia a verdade.
Não é que eu recebi um fora, forcei para que ela terminasse.
Não é que fui grosseiro, era brincadeira.
Não é que fui orgulhoso, não posso ceder com facilidade.
Sou a favor do otimismo, jamais do faz-de-conta.
Desculpas furadas esvaziam amizades e amores. A culpa não é boa conselheira, sempre buscar fraudar o cotidiano, adulterar os fatos.
Todos percebem quando exageramos, recusamos as evidências, fugimos da realidade, desprezamos os nossos erros, falhas e fatalidades.
Ser responsável não é ser careta, é bancar o que somos para o bem e para o mal.
Uma grande vida falsa nunca será maior do que uma pequena vida de verdade.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (22/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A MÁQUINA RECEBE XICO SÁ

O seresteiro da crônica Xico Sá confessa seus defeitos e proezas para meu programa A Máquina, da TV Gazeta.
 
Depois de escrever seu primeiro romance Big Jato (Companhia das Letras, 2012), que romnta sua infância no Ceará, ele parou de sonhar com a infância.
 
O tumultuado e lisérgico encontro teve exibição na terça-feira (19/2).
 



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

NÃO SE ENVOLVA COM AMIGO

Arte de Eduardo Nasi

Minha filha, não se envolva com amigo.

Mais difícil do que iniciar o romance é terminá-lo.

Não há como encerrar sem trauma, sem ressentimento, sem a crueldade da palavra exata.

Ficará com medo de perder a amizade, e perderá. Não terá coragem de ser sincera como antes, e queimará o céu da boca.

O desejo é uma embriaguez violentada pela ressaca. O desejo é uma miragem alcóolica do corpo. Acordamos da bebedeira das palavras ainda mais carentes.

Não se envolva com amigo. O antigo confidente terminará sendo seu segredo (e agora, para quem contar?).

Acabará o amor, mas não a amizade.

Ele não dará nenhum motivo para o fim da relação. Não vai traí-la. Não vai provocar ciúme. Não vai cometer indelicadezas e grosserias.

O homem certo é o errado. O homem ideal é imprestável.

Ele não ajudará na despedida, fugirá das discussões de relacionamento. Conhece o suficiente para agradá-la todo momento com cafunés e presentes.

O amigo é insuportavelmente bom. Terrivelmente bom. Sua mãe recomenda. Seu pai recomenda. Seus amigos recomendam. A unanimidade não nos permite escolher.

Não se envolva com amigo.

Se enfrentou indecisão para beijá-lo no início, o verdadeiro dilema é parar de beijá-lo. Como chegar e falar:

— A brincadeira acabou, vamos retornar ao que era antes?

Não há como regressar, a amizade não é líquida como o amor. Não é gelo que volta a ser água que volta a ser chuva que volta a ser rio.

Sempre o amigo se apaixona por você, e você não se apaixona por ele. É a lei natural da desigualdade.

Amigo não gera nem raiva, mas pena. Não exala a sensualidade da teimosia, o suor maravilhoso da discordância.

Envolver-se com amigo é a maior solidão: quando a solidão vira desterro.

Bancará a ruptura sozinha. Ele não facilitará o testamento. Será a ogra, a monstra, a interesseira.

Ele dirá:

— Mas nada aconteceu, por quê? O que eu fiz?

Nada aconteceu, ele não fez nada, o fim é exatamente a monotonia do bem.

Um amigo, minha filha, tem menos chances de surpreender. E desconcertar.

Tem menos possibilidade de incomodar, de ser inesquecível e desafiar a compreensão.

O amigo é a segurança, o conforto, o pique, a trégua do pega-pega.

O amigo é a previsibilidade da justiça.

E o amor, minha filha, é injusto.
 




Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

NEM ME PREPAREI

Arte de Hannah Hoch

Eu peço respeito. Acabei de pagar o material escolar de meu filho, incluindo mochila, estojo, cadernos e livros de todas as disciplinas.  Não foi barato.
 
De repente, já vejo ovos da Páscoa nos céus do supermercado.
 
Como? Que loucura é essa? Estamos no meio de fevereiro.
 
Começo a recém firmar os dois pés em 2013 e me equilibrar e já tenho que me abaixar ao teto de chocolate no mercado, com ovos gigantes, médios, pequenos, com surpresa, sem surpresa.
 
É uma precocidade indigesta. Um banho de chocolate amargo.
 
Não tem cabimento.  Antecipação excessiva é desespero. 
 
Eu quero namorar, noivar e casar com o comércio. Nosso amor não pode ser tão rápido. Não pode ser assim, interesseiro, sem preliminar. 
 
Os ovos devem entrar em março.
 
Pois me dá um mal-estar, um medo, logo mais acabou o ano.
 
É o mesmo terror que sinto em outubro quando vejo árvores de natal nos shoppings.
 
Não é cedo demais?
 
O coelho da Páscoa é o inimigo do coelho da Alice.
 
O coelho da Alice está sempre muito atrasado.
 
O coelho da Páscoa está sempre muito adiantado.

Ouça meu comentário na manhã de quarta-feira (20/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:
 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O PIANO DA SALA

Arte de Hannah Hoch

Não fica com dó ao enxergar um piano parado, totalmente sem uso, num apartamento?
 
Não sente um remorso? Não considera um desperdício?
 
Tão caro e tão abandonado. Tão valioso e tão calado.
 
O piano no canto, como uma lareira em eterno verão. De vez em quando, crianças abrem sua tampa e desafinam as teclas. De vez em quando, uma visita rompe sua solidão, sopra o pó da manta e dedilha a trilha da Pantera Cor-de-Rosa. E é só.
 
Nada mais. Não existem recitais, saraus, festas. Nenhuma musa se debruçará na cauda para cantar Cole Porter. Nenhum estardalhaço é reservado àquele hóspede negro, brilhante e silencioso na sala.
 
Não bate ânsia de telefonar para os Mensageiros da Caridade e encaminhar o instrumento a um jovem concertista?
 
Pois é, somos diferentes. Eu não sofro nenhum problema com pianos abandonados. Não farei denúncia. Não abrirei a boca. Não subirei no púlpito para pregar sermão contra o luxo e a favor da necessidade.
 
Pelo contrário, tenho cócegas de ternura. É um indício de lealdade.
 
Sempre confiei em mulher que mantém um piano e não é pianista.
 
Sempre confiei. Será fiel pela vida inteira.
 
Não julgará aparências, oferecerá toda paciência para acolher ritmos distintos, acomodará o antigo e o novo, alheia à pressão do conforto.
 
Deve ter um moletom surrado no fundo do armário, um baú com as sapatilhas da infância e uma gaveta abarrotada de cartas de amor.
 
Uma mulher que conserva o piano da família não se desfaz do artesanato da infância. Respeita as histórias que vieram antes dela, reza na hora de dormir, toma café engolindo a fumaça, olha lentamente a janela de manhã para escolher a roupa.
 
Reserva espaço ao que não tem serventia, reserva um pouco do seu território para aquilo que não domina.
 
Não glorifica o que produz sentido imediato. Não força talentos e façanhas. Defende o mistério e aceita as incompreensões.
 
Tem noção de que nem tudo entra pela porta, que uma janela tem seu valor.
 
Não despreza a herança dos pais, não queima a bagagem extraviada, não anula as cicatrizes, não renega o que não é aproveitado, não usa somente o que interessa.
 
Não se mostrará prática, objetiva e indiferente, muito menos jogará fora o que não é do seu tempo e que não nasceu do seu esforço.
 
Não dará ultimato, não ameaçará despejo, não venderá a memória, não vai expor as confidências.
 
Acredita ainda em casar-se e na genealogia do romance.
 
Acredita que um dia aprenderá música. Ou seu filho. Ou seu neto.
 
Um piano em casa é esperança.
 



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 19/02/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17348

domingo, 17 de fevereiro de 2013

QUASE PERFEITO — Consultório sentimental de Carpinejar

LONGE DE VOCÊ
 
Arte de Kurt Schwitters

“Estava morando com meu ex-namorado, com quem tenho um filho de menos de um ano. Nos separamos há alguns meses, e eu não deixei de amá-lo. Nos magoamos muito nessa separação. Não houve traição, não houve briga, foi por causa da família dele. Ele não tem outra pessoa, eu também não. Mas ele está relutante. Disse que não quer voltar, pois está muito magoado. Sendo assim, será que ainda existe algum meio de reconquistar a confiança e o amor dele? Obrigada, Angélica”

Querida Angélica!
 
Mulher tem o costume de conversar o que incomoda na relação com suas amigas. Seu amor é pedagógico: vê com clareza as preocupações e paga o desconforto em dia. Não atrasa as contas do afeto. No casamento, fala diretamente com o sujeito aquilo que pressente, o que sente e o que teme. Com naturalidade. Não subestima sua intuição, chega a reconhecer que seu medo é um fato (às vezes é). Se acha que seu namorado está traindo, diz que está traindo mesmo sem provas.
 
Já o homem, engole as contrariedades. Fala evasivamente com os colegas, não explica direito suas mágoas para esposa. Nunca revela o seu descontentamento. Adia as dívidas, que se acumulam até a hipoteca da relação. O sujeito, quando toma a dianteira para discutir o relacionamento, é para terminar, jamais para encontrar uma solução. A gota d’água é colírio masculino.
 
O homem raramente acaba sem preparar uma segunda vida. Ainda mais quando tem um filho envolvido. É uma saída de casa difícil e traumática, só admitida quando nasce uma outra paixão.
Ele aceitaria a reconciliação se fossem somente os desentendimentos e provocações da separação. Quando amamos, a memória é o nosso desejo e esquecemos o que nos machuca.
 
Ele está relutante porque deve ter encontrado uma segunda namorada. Não apresenta a atual companhia para não gerar ciúme e represálias. Nem digo que foi infidelidade, mas interesse que coincidiu e cresceu com o aumento das discussões do divórcio. Pulou fora após arrumar o bote salva-vidas.
 
Somos maternais com o passado. Para sair de um casamento, só por um novo casamento.
 
Existe um plano B que você não conhece e não desconfiou. Ele não entra em contato, não procura, não sofre recaídas sexuais, não incomoda com mensagens e torpedos. A independência dele é estranha. Jura que ficaria no seco durante esse tempo e, na ausência de um caso, não lhe procuraria pela intimidade e cumplicidade amorosa?
 
Não é que permaneceu quieto pelo luto, por ter sofrido ou para se recuperar dos dissabores da convivência recente. Calou-se porque encontrou uma felicidade longe de você.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Caderno Donna, p. 9
Porto Alegre (RS), 17/02/2013 Edição N° 17346
Preservamos a identidade do remetente com nome fictício.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O COITADINHO E O CANSADINHO

Arte de Jean Dubuffet

Os repelentes do amor são o coitadinho e o cansadinho.
 
A mulher detesta os dois tipos. O coitadinho é o ranzinza, o eterno insatisfeito. Quando chega no trabalho, reclama de casa. Quando chega em casa, reclama do trabalho. E vai reclamar da fila do cinema, do valor do estacionamento, do restaurante cheio, da festa vazia.
 
O cansadinho é outra azia: sujeito morno, sem vontade para nada, nem para protestar. Diante de qualquer pergunta, ele diz "tanta faz" ou "pode escolher". É uma falsa generosidade, repassa a responsabilidade por absoluta falta de interesse.
 
Ouça meu comentário na manhã de sábado (16/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Daniel Scola e Andressa Xavier:
 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A SIMPATIA DO CONTRA

Arte de Jean Dubuffet

Mulher tem o dom de concordar discordando. Ela possui uma ideia totalmente diferente da nossa, mas parece que a sua ideia é a nossa e a gente acaba fazendo.
 
Ele nunca fala não, tampouco fala sim. Sua tática é jamais rejeitar nosso desejo e criar uma falsa unanimidade, um falso consenso. Quer ver?
 
Vamos ao cinema assistir Fogo contra Fogo, com Bruce Willis?
Ela diz: — Vamos, mas antes vamos assistir ao espetáculo de balé que entrou hoje em cartaz, é uma única apresentação.
 
Vamos beber com amigos hoje no Apolinário?
Ela diz: — Vamos, sim, estou com muita vontade, mas antes vamos beber com minhas amigas na Champanharia Ovelha Negra.
 
Vamos assistir ao Gre-Nal no meu pai?
Ela diz: — Vamos, que boa ideia, mas antes podemos almoçar na minha mãe.
 
Vamos curtir um final de semana na praia?
Ela diz: — Vamos, estou com saudade de ficar só contigo, mas antes podemos dar um pulo em Nova Petrópolis para comprar algumas malhas.
 
Vamos namorar em casa hoje?
Ela diz: — Claro, daí você já me ajuda a trocar os móveis da sala de lugar. Faz tempo que estou esperando ajuda.
 
Vamos na churrascaria do Bom Fim?
Ela diz: — Vamos, eu adoro aquela salada de maionese, mas antes queria ir no japonês, tô morrendo de vontade de sushi.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (15/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Daniel Scola e Jocima Farina:


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A MÁQUINA RECEBE MARINA PERSON

A casinha de pescador em Ubatuba, com mangueira e bromélias, junto dos pais, é o refúgio da memória de Marina Person, apresentadora do Metrópolis da TV Cultura.

Meu programa A Máquina, da TV Gazeta, é hipnose regressiva.

A atriz e cineasta lembra de sua infância e revela o desejo atual de ter um filho.

O encontro foi exibido na noite de terça-feira (12/02).

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

MACHO PELA METADE

Arte de Eduardo Nasi
 
Não entendo os barulhos do carro.

Afora a luz obrigatória da gasolina, ignoro o que significam os símbolos menores do painel. Eu ainda me confundo ao disparar o limpador de para-brisa.
 
Não foi uma vez que saí com farol alto em vez dos normais e recebi advertência dos outros motoristas. Não me pergunte qual a calibragem dos pneus, está anotado em algum lugar.

Metade do manual do veículo é desconhecido para mim. Falei metade, mas metade é otimismo.

Não troquei pneu na vida, o macaco hidráulico não recebeu graxa de minha mão.

Uso carro, não moro no carro.

Se surge um ronronar diferente, não sou como meus amigos que logo arriscam um diagnóstico:

— São as pastilhas dos freios.

— É a embreagem.

— Pode ser as cruzetas.

Admiro o dom mecânico dos colegas. Não alcanço nem o que é cruzeta para participar do leilão de hipóteses e mentir vantagem.

Diante de falhas, abandono o Sandero na oficina e não questiono o orçamento.

Na rua, um ladrão é capaz de levar a estepe do porta-malas que nunca notarei o furto.

Em compensação, sei reconhecer a tosse do meu filho em enfermaria lotada.

Sei reconhecer o choro de meu filho em praça dominical.

Sei reconhecer o riso de meu filho em pleno alvoroço do recreio.

Sei reconhecer o grito de meu filho no estádio de futebol.

O filho é a universidade do meu instinto. Decorei seus timbres da dor ao entusiasmo, do berro à gargalhada.

Meus ouvidos são caseiros. Meus ouvidos são cardíacos. Meus ouvidos são caninos em casa.

São vários anos acordando com seu rosto no café da manhã, antecipando seus desejos, adivinhando seus rancores, repondo as cobertas do meu menino na madrugada.

Pelos silêncios e omissões, identifico quando experimenta a alegria de uma novidade.

Pela maneira de abaixar a cabeça, percebo quando pede ajuda.

Pela pressa da letra no caderno, vejo sua displicência e vontade de voltar aos jogos no computador.

A duração do seu bocejo denuncia a insônia. O olhar parado no copo revela o descontentamento com o dia.

Sofro com seu possível sofrimento. Eu me preocupo com a nova turma, se suporta boicote ou é amado, se está comendo o suficiente, se está feliz, se tem esperança.

Junto pressentimentos, sonho rumores, advogo sinais.

Sou mais pai do que homem.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A ARTE DE PÔR AS MÃOS NO BOLSO

Arte de Kurt Schwitters

Sensualidade é elegância. Temos como parâmetro afrodisíaco a mulher que usa vestido, decote, que mostra as virilhas e os seios. É a imagem praiana, tropical, sestrosa. A clássica cena latina, da modelo voluptuosa, transbordante, oferecida, rebolando sem parar e, claro, de bunda avantajada.
 
Não é isso que me interessa. Chupar os dedos e descruzar as pernas tampouco paralisam meu olhar.
 
Também nunca fui fã da garota de Ipanema, ela não saiu da infância do sexo.
 
A discrição é que me excita. A discrição que é selvagem. A discrição é que oculta os poderes intuitivos. Um verdadeiro animal não se entrega de primeira.
 
Nada mais elegante (e sexy) do que uma mulher com calça de alfaiataria, de algodão, com corte apropriado e honesto.
 
É na calça que ela vai demonstrar toda sua cultura, temperamento e domínio de lugar.
 
É na hora de colocar as mãos no bolso.
 
Mulher que sabe colocar as mãos no bolso me desconcerta e me alucina.
 
Tem vocação de imperatriz. Não teme a masculinidade do traje. Não é afetada, não precisa apelar para a roupa colada, não promove nenhuma exibição gratuita das coxas.
 
A sobriedade é ainda um concurso insuperável de beleza. Ser bonita de saia é fácil. Vá colocar uma calça e atrair a rapaziada para compreender o que é empatia da pele.
 
Eu me apaixono na hora. Entrego o carro como entrada de apartamento, largo a estrada pela varanda.
 
Além de manter o mistério, ela venceu o maior desafio da aparência: pôr as mãos no bolso e não transpirar timidez, desconforto e confusão.
 
O bolso representa um desafio de intimidade. Uma prova de autenticidade.
 
É como preparar arroz. É simples, mas a maioria erra o ponto.
 
Eu até hoje não tenho prática. Amontoo os dedos, não relaxo, mexo as chaves, jogo um fla-flu com as moedas, coço o saco, fico tenso e ridículo. Quem me olha jura que faço pose, beiço, chantagem ou – pior – que estou apertado.
 
Mulheres que conseguem colocar belamente as mãos no bolso são decididas, transam maravilhosamente, não têm vergonha do corpo e do amor.
 
Não serão fantoches do trabalho, ou dos clichês.
 
O bolso é uma luva, o bolso é uma bolsinha de festa, o bolso é o avesso do mundo.
 
É previsível – não duvide – que elas vão terminar colocando seu homem no bolso.
 



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 12/02/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17341

PINÓQUIO DO AMOR

Arte de Jim Dine

Que bom. Ela diz que te ama, olhando de volta para seus lábios, e você vem com gracinhas, tipo "que bom, quando você descobriu?"

Também. Ela confessa amor e você diz também. É a resposta desinteressada. E tem que ser rápida, para não chamar atenção e provocar briga.

Eu te gosto muito. Ela confessa que te ama e você replica que gosta muito, significa que ela ama mais você do que você a ela. É entregar os pontos. É a resposta camicase: cavou a própria cova.

Te adoro. Ela confessa eu te amo e você diz que adora. É mudar de assunto de repente. Amar e adorar não são a mesma coisa. O primeiro é domínio da vida de casal, e o outro é vocabulário da amizade.

Te quero. Ela está a fim de romance e você revela intenções sexuais. Eu te quero é sexo. Só falta acrescentar: eu te quero agora.

Obrigado. Ela diz eu te amo e você diz obrigado. Obrigado o quê, cara pálida? É a resposta falsamente educada, e altamente megalomaníaca. O sujeito se acha um rei, e agradece o amor recebido.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (12/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Daniel Scola e Jocimar Farina:
 

domingo, 10 de fevereiro de 2013

QUASE PERFEITO — Consultório sentimental de Carpinejar

"O MARIDO FUGIU COM MINHA IRMÃ"

Arte de Salvador Dali

“Sou casada há 18 anos e tenho quatro filhos. Minha irmã mais velha é casada há 25 e tem três filhos. De uns tempos pra cá, notei que ela e meu marido estavam muito próximos. Ele trabalhava no restaurante dela, voltava pouco pra casa, praticamente abandonou a família. Desconfiei do caso, mas minhas amigas disseram que era loucura, que minha irmã jamais faria isso. Não aguentei e joguei verde com meu marido, disse que sabia tudo. Ele ficou desesperado, saiu de casa, os dois abandonaram as famílias e fugiram juntos. Não sei onde eles estão. O que eu faço? Um abraço, Liége”

Querida Liége,
 
Pode me chamar de moralista. Sou moralista. Hoje é um crime ter moral. Parece que é uma virtude não possuir valores e aceitar qualquer coisa.
 
Careço de capacidade para banalizar a intimidade. Surpreendo-me com a tristeza. Meu pessimismo é sempre inédito.
 
O que aconteceu com você, Liége, foi uma dupla covardia. Ele traiu pelas costas e ainda fugiu. Não honrou a palavra dentro e fora de casa. Tornou-se um impostor mais do que um mentiroso.
 
O que machuca é acabar sendo a última a desvendar a trama, é ser alvo de fofocas, é ser motivo de pena entre os parentes e os amigos. É pertencer a uma história secreta no bairro, e ficar vulnerável à maldade dos vizinhos. É pressentir a tragédia e suportar a alcunha de louca. É dar inúmeras chances para a confissão do caso, e ele não aproveitar nenhuma delas.
 
Se vai trair, conta antes, conta logo. Assume o desejo. Nomeia o desejo. Abraça o desejo. Explica que se apaixonou, não finge normalidade quando as evidências gritam o contrário.
 
Há uma tendência da infidelidade de deixar acontecer para depois decidir. É como se o infiel precisasse provar para optar. Ou se enredar tanto nas mentiras até ser descoberto.
 
Homem não decide, homem estraga sua vida para assim ser obrigado a mudar.
 
Não custava confessar a insegurança e a confusão emocional quando sentiu a atração. Seria trágico, mas contornável. Seria horrível, mas superável.
 
O que ele aprontou é exemplo da falta de exemplo num macho.
 
Não respeitou sua relação com a irmã.
 
Não respeitou dois casamentos longos.
 
Não respeitou os próprios filhos e os sobrinhos.
 
Não respeitou o ambiente profissional e misturou sexo com serviço.
 
Não respeitou o passado e o futuro ao recusar o dever da despedida.
 
Portanto, querida, não faça nada, tudo já está feito.
 
Lamento mesmo é a inveja monumental da irmã. Ela queria sua vida, mas nunca terá sua dignidade.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Caderno Donna, p. 7
Porto Alegre (RS), 10/02/2013 Edição N° 17339
Preservamos a identidade do remetente com nome fictício.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

AMIZADE CINZA

Arte de Edward Wadsworth

Agora existem aplicativos no Facebook para transar com amigos. Dois novos serviços foram lançados no Brasil: Vai Pegar? (vaipegar.com) e Pegava Fácil (pegavafacil.com.br)
 
O usuário escolhe de sua lista de contatos com quem gostaria de fazer sexo. Se outro revelar a mesma vontade, ambos recebem mensagens de sinal verde do provedor.
 
De cupido, o Facebook assim vai se transformar em cafetão.

Era o que faltava: usar o amigo para segundas intenções, explorar a compreensão do amigo, banalizar a ternura do amigo, brincar com os sentimentos do amigo.
 
Tratar o amigo como encosto da carência, estepe sexual, suplente da cama, prostituta digital.
 
É a supremacia da indiferença e da preguiça. Uma enorme crueldade com quem deveria ser o nosso confidente.
 
Esses sites revelam perigoso desinteresse pela convivência. Ninguém mais se dispõe a perder tempo seduzindo, ninguém quer se esforçar para conquistar, ninguém deseja sair de casa e se decepcionar.
 
É o elogio ao sexo fácil, discreto e vazio. É o fim do romantismo, do olho no olho, do nervosismo delicioso.
 
Amar é de menos, os relacionamentos são compras virtuais, privilegiando a comodidade e a segurança.
 
Estão transformando a amizade em um mercado livre.
 
Para transar, é necessário apenas uma mensagem automática. Nada pessoal. Nenhuma conversa. Nenhum charme. Nenhum agrado.
 
Toda a responsabilidade da união é repassada ao Facebook.
 
Nos anos 60, amizade colorida. Hoje, amizade cinza.



Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (8/2) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Daniel Scola e Jocimar Farina:

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A MÁQUINA RECEBE JEAN WYLLYS

Em meu programa A Máquina, da TV Gazeta, o deputado federal pelo PSOL-RJ e vencedor do Big Brother Brasil 2005 Jean Wyllys lembrou a sua infância em Alagoinhas (BA), confessou suas tristezas amorosas e não mediu a lábia para caracterizar José Sarney ("um fóssil").

O encontro foi exibido na noite de terça-feira (5/2).

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

AFRODISÍACO

O quadril se entrega com uma rima? Os seios se rendem a um estribilho?

Meu quadro DRnaTV discute se a poesia é fiadora do sexo.

O programa da TVCOM foi exibido na noite de terça (5/2), com mediação de Sara Bodowsky e produção de Fernando Muniz.

UMA BEM DADA, E ACABOU

Arte de Eduardo Nasi




Se você quer uma, duas ou três numa noite, procure um adolescente, um jovem de menos de 30 anos.

Não eu. Não vou mentir que sou herói da volúpia. Minha fase epilética e vulcânica acabou. Tive meus momentos de aplicar a tríplice vacina e conservo a carteirinha de saúde com ternura.
O homem quando completa quatro décadas adere ao período performático.

Larga o passado velocista para economizar o fôlego. Não irá se expor a piques desnecessários.

Seu diferencial é o alto aproveitamento das raras chances de gol.

É uma bem dada, e acabou. Talvez enfrente morte súbita ou decisão de pênaltis em jogos decisivos, mas representam exceções, não leve em conta.

1 a 0 já são três pontos. Não competirá com a amante, ou humilhará os adversários com goleada.

É uma bem dada, o resto põe na conta dos espasmos, encenações, contrações.

Homem com quatro décadas é um ator da intimidade. Pisca para a câmera, tira a roupa com lentidão, discute o relacionamento, geme alto, finge ápices.

É o sexo com estilo. Mais caprichado, mais cênico.

É o sexo pensado, retórico.

É o sexo catimbeiro, com espiadelas no espelho e conversas laterais.

É o sexo reflexivo, com gentilezas e intervalos para pegar água gelada.

É o sexo intensivo, com massagens, preliminar e cafuné.

Homem de quarenta anos muda sua visão da cama. Incorpora o temperamento roleta-russa. Coloca uma bala no tambor, mira com firmeza e apenas atira com a certeza do tombo.

O quarentão não vai correr como louco, tem como virtude o posicionamento na pequena área. Está sempre em condições privilegiadas para receber e finalizar.

Aprendeu a controlar o orgasmo, e a se poupar ao orgasmo.

Ele acelera o clímax pelo desaforo, reduz com o elogio. Seu dom é a fala, mistura putaria com poesia ao ouvido:

— Minha vadia, sua respiração segue o ritmo da música ambiente. Não existe pele mais afinada.

A atitude é acrobática. Lembra um trapezista dos travesseiros, um domador de edredons.

Não é selvagem, aquilo de penetrar de pé e ejacular de susto, mas tampouco é desligado e indiferente. Dedica-se a obedecer ao ritmo feminino, a honrar os altos e baixos da montaria.

Seus pulos são calculados, profissionais, nunca cedendo ao risco de cãibras e torções.

Rebola com acento, beija com ênfase, prende o jogo, não tem pressa nenhuma. Desenvolve o pescoço e não cansa do bailado de barco.

O que ele deseja é gozar depois dela. Muito depois. Como um favor. Após tremenda súplica.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

NÃO DESISTAM DE VIVER

Arte de Lasar Segall

A vontade é de abandonar o trabalho, não acordar mais, definhar abraçado ao travesseiro, encolher-se no canto e não erguer nem mais o braço para atender a porta e pedir ajuda.
 
Nada tem mais sentido, e ordem.
 
A vontade é de não ter mais vontade.
 
Os filhos morreram, os irmãos morreram, os colegas morreram.
 
Eu entendo.
 
Entendo que vocês levantarão, sobressaltados, às duas horas de todas as madrugadas de suas existências, que haverá sempre uma sirene abrindo as ruas do sangue, que será insuportável raciocinar diante de um alarme dos bombeiros ou de ambulância lá fora.
 
Entendo que a casa está vazia, como a cidade está vazia, como o corpo está vazio.
 
Mas não podemos chorar a morte dos familiares se não valorizarmos nossa vida.
 
Entendo que não será mais a vida idealizada, não será mais a vida planejada, não será mais a vida que merecíamos.
 
Mas ainda que seja uma vida desesperada, uma vida atormentada, uma vida traumatizada, ainda é a nossa vida.
 
Ainda é a vida que ficou.
 
Ainda a vida que temos que cuidar.
 
Ainda é a vida que temos que salvar.
 
Afinal, nossa vida era tudo o que a gente pretendia assegurar para eles que se foram na boate Kiss.
 
Gostaríamos que os duzentos e trinta e sete jovens estivessem com a gente, então não podemos nos jogar fora. Não podemos esnobar a chance de estar aqui.
 
Continuar a viver é preservá-los.
 
Continuar a viver é sabedoria.
 
Continuar a viver é fé.
 
Continuar a viver é humildade.
 
Continuar a viver é respeito: é não ser mais vítima do que as vítimas, por mais que doa doer o dia inteiro.
 
É imperioso cortar o cordão umbilical da Rua dos Andradas, abolir as hipóteses: se eu tivesse proibido meu filho de sair, se eu tivesse viajado com a família, se eu tivesse telefonado antes, se eu tivesse sido mais rigoroso...
 
O “se” não devolve o que perdemos, nem diminui o sofrimento.
 
A culpa não deve abafar a justiça, o medo não deve sufocar a esperança.
 
Não há como controlar o destino. A tragédia não aconteceu porque vocês falharam. Vocês, familiares, não teriam como evitá-la.
 
O que sobra é amar a si para explicar o que é amor, para explicar o que é saudade.
 
O que nos resta é a responsabilidade de lembrá-los com garra. De lavar as escadarias das igrejas com flores. De ir adiante para que esse incêndio criminoso nunca mais se repita em nenhum lugar do mundo deste Brasil.
 
Que nossos filhos de Santa Maria jamais morram para a História.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 05/02/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17334

MÁGICO COTONETE


Compro e compro e sempre acaba.

O cotonete.

Levo três mil cotonetes. Um capacete de cotonetes. Um baú de cotonetes. Um pavilhão de cotonetes. Quando vou usar, não tem mais nada. Saio do banheiro pingando de raiva, com a orelha molhada.

Questiono a família e ninguém foi tomado de nenhuma urgência.

Em um mês, os cotonetes desapareceram. Calculando quatro por dia X quatro pessoas de casa, o resultado é 496 cotonetes.

Não há lógica no gasto de três mil cotonetes.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (05/02) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Daniel Scola e Jocimar Farina:
 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

domingo, 3 de fevereiro de 2013

QUASE PERFEITO — Consultório sentimental de Carpinejar

VALE A PENA VER DE NOVO
Arte de Paul Delvaux

“Querido Fabrício! Amor tem reprise? Vale a pena ver de novo? Estou apaixonada pelo ex. Depois de três anos longe e muitos relacionamentos de ambos, nos reencontramos há dois meses numa festa. O beijo foi da primeira vez, uma loucura! Porque não tivemos recaídas antes, jamais tínhamos ficado. Agora a paixão veio com tudo, acrescidas das neuras que fizeram o término da união. O que fazer? Beijo Catherine”

Querida Catherine,
 
Há uma morte separando vocês. Uma morte emocional. Por isso você o chamou de fantasma. Para uma relação funcionar pela segunda vez, é necessário absorver o que falhou na primeira vez.
 
Uma possível reaproximação reeditará as brigas e os ressentimentos. É voltar a ficar junto que os vícios da relação retornam com o dobro de força. O ciúme de antes crescerá em possessividade. A preguiça de antes resultará em marasmo. A distância agrava os defeitos, como se ambos houvessem traído o romance neste intervalo todo. Não menospreze as represálias dos órfãos amorosos.
 
Temos uma profunda dificuldade para perdoar divórcios e abandonos. Não procuramos o amor, mas a perfeição.
 
Não entendemos que um deslize não abole aquilo que foi bom no passado. Não é porque a pessoa errou num momento que errou sempre. Não é porque mentiu de repente que mentirá sempre.
 
Somos justiceiros mais do que compreensivos. A gente não perdoa para se mostrar superior. Você acha que o credor quer que o endividado pague sua pendência? Não, ele deseja humilhá-lo. Deseja torturá-lo. É seu canal de catarse.
 
O único modo de dar certo seu amor pelo ex é destruir a intimidade anterior, quebrar os modelos, os moldes. Jamais dizer “eu te conheço”. Não conhece mais, não. Depois de uma separação, todos se transformam. Uns ficam mais amargos, outros mais humildes. Os dois passaram por namoros, adquiriram hábitos diferentes, amadureceram a sexualidade, cicatrizaram lembranças.
 
Deve começar a relação do zero. O que é quase impossível, a situação pede uma paciência de desconhecidos. Do zero mesmo. Sem cobrança. Sem fiadores. Retomar pelas perguntas mais triviais: o que ele assiste, vê, lê, faz. Não reprisar filmes e rever fotografias dos tempos felizes. Não repetir viagens e lugares prediletos. Não reutilizar os apelidos mimosos e os beiços.
 
Esquece que você sabe o que ele gosta. Não compara, não cruza informações. O pior que pode acontecer é testá-lo: para ver se ele mudou ou continua igual. Estará daí analisando, jamais experimentando.
 
Existe um grande risco de trai-lo com ele de três anos atrás. Raciocine que é um novo beijo, um novo livro. E com novos autores também.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Caderno Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 03/02/2013 Edição N° 17332
Preservamos a identidade do remetente com nome fictício.