quarta-feira, 28 de agosto de 2013

CASULO

Arte de Eduardo Nasi

A carreira hoje está acima do amor.

Fico delirando o que me tornou tão diferente das novas gerações.

Não que seja velho — sou antigo.

Na minha visão, a profissão está em segundo plano, por mais que ame escrever.

Eu amo o amor mais do que escrever; sou casamenteiro de raiz.

Os cabelos da mulher amada são o travesseiro ideal. O sachê do quarto. O afrodisíaco de minha gana.

Sair da casa dos pais cedo, aos 19 anos, determinou o meu comportamento.

O que mais procurava era independência, morar fora, criar um apartamento com a minha cara. Passei a trabalhar aos 15 anos e, desde lá, não parei.

Juntava o soldo do mês e sorteava o que iria comprar: liquidificador, cadeira, pratos. Meus móveis foram rifas do meu salário.

Não concebia uma vida com os pais, atrelado aos pais, refém dos pais.

A aventura era ter uma pobreza somente minha, uma pobreza pessoal, mas que pudesse dividi-la com os amigos.

Enfrentei quatro casamentos, morei em dez casas, eduquei dois filhos. Não posso ser chamado de acomodado.

Jamais retrocedi, jamais desisti. A estrada não tem volta após a curva dos dedos do adeus.

Se entro em falência, me empresto dinheiro. Atravesso um mês economizando, não existe a hipótese de regressar ao ventre.

Os pais estão simbolicamente mortos para me dar a chance de viver com soltura. Minhas neuroses são próprias do relacionamento, não da infância. A infância é tarde demais, longe demais.

Entendo que o ninho está mais no voo do que na árvore. Meu temperamento não combina com a época.

Os filhos dos amigos ficam com os pais depois dos 30 anos, depois dos 40 anos.

Nunca abandonarão o lar, aguardam a herança do imóvel com animada resignação. Não sofrem com pressa ou com ambição doméstica.

São despreocupados com as despesas, como se estivessem sempre de passagem em sua própria residência.

Guardam suas economias para gastar com viagens e boemia. Para os prazeres pontuais da semana.

O quartinho de adolescente é quartinho do adulto e será quartinho de velho. A reforma é a única mudança possível.

Não se interessam em morar com o namorado ou a namorada. São visitantes ilustres. Hóspedes circunstanciais.

Seguem com seus trabalhos em primeiro lugar, realizam cursos e pós até a exaustão, colecionam mais diplomas do que desastres.

O paradoxo é que desejam a liberdade, não se prender a ninguém, mas não soltam as abas dos vestidos da mãe.

Como amar alguém sem se divorciar dos pais antes?






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 27 de agosto de 2013

O LADO DO SOL DA CALÇADA


Arte de Hopper

Sem esperança, não há generosidade.

Sem esperança, ninguém rende no trabalho.

Sem esperança, ninguém será receptivo no relacionamento.

Sem esperança, ninguém entenderá um amigo.

Esperança é garantir que tudo pode ser feito com calma, que não é preciso acertar sempre.

Esperança é espontaneidade. Esperança é leveza que se faz densidade. Esperança é não pressionar. Esperança é se doar sem medo de acabar.

A generosidade vem da esperança, eu garanto.

Quem não tem esperança será avarento, poupará sua energia, entrará em estado de sítio, economia de guerra, fará estoque de alegria no porão dos nervos. Não poderá oferecer ao outro o que faltará para si. Começará a acender velas devido à luz cortada de seus olhos, passará a resmungar devido à voz falhada de sua boca.

O desesperançado deixa de fazer convites, restringe os favores, recusa sair, sonega a casa a visitas. Ele é uma ostra que se torna marisco – não tem brilho de pérola para chamar o mar.

A esperança é tempo de ser, véspera, ensaio.

Não se luta pela esperança. Mas, sem esperança, não se luta por nada.

A amargura decorre justamente da ausência de perspectiva.

Alguém ameaçado de perder seu emprego será egoísta.

Alguém separado será apocalíptico.

Alguém falido não dará bom-dia muito menos boa-noite.

Alguém isolado não pensará em ajudar uma velhinha a atravessar a rua ou a carregar suas sacolas de mercado.

A esperança é educação. A esperança é tranquilidade. A esperança é liberdade.

A esperança é perceber que, por pior que seja aquele dia, haverá outro totalmente inesperado.

A esperança é crédito. O crédito é realidade recuperando os atos.

Acaba a esperança, explode a raiva. Acaba a esperança, reina o ressentimento.

A esperança destrói a onipotência, o controle dos fatos. Com esperança, as páginas estarão abertas para a escrita, não escreveremos bilhetes de adeus, não encerraremos o expediente com a morte e o fim.

Um naco de esperança e já somos felizes. Um pouquinho de esperança e já nos recuperamos. Um bocado de esperança e já levantamos o rosto para capturar o vento.

A esperança é confiar em que nada é definitivo, nada é absoluto, nada é perfeito.

Todo homem e toda mulher são generosos quando banhados de esperança. Pretendem mudar, atendem pedidos inconcebíveis, estarão flexíveis e dispostos, autocríticos e atentos. Sem esperança, ficam hostis e intratáveis, bichos com raiva, animais encurralados.

A vida é fácil com esperança. Não tem porta fechada. É possível sair e entrar no mesmo erro. Não existe julgamento e sentença, apenas a vontade de seguir em frente e procurar o lado do sol da calçada.

Sem esperança, não há nem mesmo o perdão.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 27/08/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17535

sábado, 24 de agosto de 2013

A ÚLTIMA PALAVRA


Arte de Fatturi

Quando Mariela anunciou que iria pegar suas coisas, Everton rasgou em pedacinhos o cartão que contava a história do casal. Esfacelou como um pão.

O cartão descrevia como eles se conheceram, narrava os melhores momentos de seis anos juntos, apontava as expressões que somente os dois conheciam e que formavam um dialeto engraçado e comovente. Era o cartão de todos os cartões. Uma aliança de papel.

Tinha o tamanho de um cartaz. Para não ter mesmo lugar para guardar. Para repousar nas prateleiras como um porta-retratos, para ser exibido entre os vasos como um quadro, para surgir entre os objetos de estimação como uma escultura viva.

Homem de poucas frases, que nunca escrevia, Everton superou seu laconismo e resolveu o atrasado da linguagem em longo testamento.

Pediu até para uma amiga professora de Português corrigir, não querendo passar vergonha com erros de ortografia.

As rosas que acompanhavam o texto secaram em uma semana, o que ficou foi a letra dele. Pois o cartão sempre será a pétala que não murcha, mais importante do que o buquê porque é a memória do buquê.

Possuído pela fúria, Éverton sequer pensou duas vezes. Esfarinhou a homenagem em suas mãos. Chorou o que podia com os cortes violentos das margens. Os dedos, afiados em tesoura, desfiguraram o conjunto. Com o pedido de separação, buscou se vingar destruindo sua declaração de amor. Sua única declaração de amor.

Depois do vandalismo, ligou para Mariela:

– Venha pegar suas roupas, mas saiba que rasguei o cartão que lhe dei.

– O cartão era meu, não podia ter acabado com ele.

– Você acabou comigo, o que adianta o cartão?

– Não fala desse jeito. Onde ele está?

– Está no lixo.

– Vai lá e recolhe os pedaços.

– Nunca. Nunca mais me abro para nenhuma mulher.

Éverton desapareceu de casa por uma semana, a fim de deixá-la livre a separar e encaixotar seus pertences.

Ao regressar, surpreendeu-se com o cartão que havia rasgado em cima dos travesseiros.

Todo colado. Todo remontado. Um trabalho de recorte e cole tão imenso quando o dele de escrever.

O cartão lembrava o vitral de igreja que se casaram, com os retângulos formando as imagens da caligrafia.

Estava ainda mais bonito. Mais iluminado.

Ele esqueceu o boicote e telefonou para Mariela:

– Qual o sentido de recuperar o cartão? – perguntou.

– E você ainda acha que a gente não tem conserto?

Com o gesto absolutamente esperançoso, eles se prenderam um ao outro.

A última palavra nada é perto de um novo beijo.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 25/08/2013 Edição N° 17533

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A MÁQUINA RECEBE EMERSON FITTIPALDI

O primeiro brasileiro a se tornar campeão mundial de Fórmula 1, Emerson Fittipaldi teve o pai como maior conselheiro.

Ele conta da superstição do número sete e da relação com George Harrison, dos Beatles.

Fittipaldi foi o entrevistado de meu programa A Máquina, da TV Gazeta, na terça-feira (20/8) .

FIDELIDADE EXIBICIONISTA

Arte de Picasso

Você conhece a fidelidade exibicionista, performática? A fidelidade do cachorrão? Vou explicar.

Ele recebe um e-mail de uma conhecida e mostra para a namorada: – Viu como ela está me cantando? Olha o que vou responder...

Ele recebe uma ligação de uma amiga e conta para a namorada: – Viu como ela está me cantando? Olha o que respondi...

Ele recebe uma cutucada no Facebook e diz para a namorada: – Viu como ela está me cantando? Olha o que vou responder...

Ele recebe uma conversinha mole de uma estranha e logo entrega a cantada para a namorada.

Para que criar ciúme à toa? Transformar o ciúme em paranoia? 

Recusa e pronto. Não fala nada. 

Fidelidade não se explica.

Fidelidade é invisível.

Fidelidade não é um favor.

Fidelidade não é um sacrifício.

Fidelidade é conviver com quem merece nossa exclusividade.

Não fique fazendo propaganda, parece que não é feliz assim.

Fidelidade é apenas uma forma de estar, não é uma forma de se exibir.

Ouça meu comentário na manhã de sexta (23/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Daniel Scola e Jocimar Farina:


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

MEIA BOCA

Quantas vezes devemos dar chance para que o sexo funcione?

O primeiro encontro é o da paciência. No segundo, a curiosidade aumenta. O terceiro é o instante onde os sentidos mandam.

DRnaTV foi ao ar na terça (20/8), na TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

SEM ASSUNTO

Arte de Eduardo Nasi

Quando você recebe uma mensagem “sem assunto” é possível que seja um fora do seu namorado ou namorada. O outro lado encontrou algo que talvez ferre o relacionamento, desde mentira à infidelidade (ou as duas juntas).

Deveria ser criado um anti-vírus somente para evitar sua entrada sorrateira na caixa. 

“Sem assunto” representa uma tragédia epistolar, catástrofe confessional, portal de decisões íntimas desfavoráveis. 

“Sem assunto” é um intervenção do destino. Despedida desfalcada de aceno e choro. 

“Sem assunto” no e-mail nunca é uma notícia auspiciosa, nunca é um chamado alegre de amor ou uma troca de amenidades e carinhos.

Não caia na ideia da pressa. “Sem assunto” é paciência bélica, enervamento proposital. 

O remetente está tão desesperado que não conseguiu eleger um único tema. Está furioso, possesso, nadando no torvelinho de ofensas. Tem dificuldade de escolher o desaforo apropriado.

Por uma questão estratégica, não colocará o que desejava como "Foda-se, "Vai morrer no inferno", "Filho de uma p." e ainda "Não me procure mais". 

Ele está a fim de xingar , mas não pretende entregar o conteúdo. Busca torturar com o silêncio e o branco do envelope. O gesto é dissimulado: chamar você, despreparado, para dentro da angústia. Uma cilada de palavras para dizer o indizível, e despertar sofrimentos repentinos de atropelamento. 

“Sem Assunto” costuma aparecer de madrugada quando você está dormindo e qualquer socorro é tarde demais. Não haverá chance de reparação, é um pedido de despejo, incontestável abandono de laço. 

“Sem Assunto” tem o hábito de ser o primeiro e-mail da manhã. Lerá sem café, estranhando a agressividade, conferindo se está realmente na sua conta, não acreditando na violência verbal, amargando os olhos agredidos pela sombra. 

Se souber o motivo, pior. Se não souber, também pior. 

Não acusará o golpe de primeira. Lerá cinco vezes até entender que é verdade. Mesmo que seja suspeita, fracassará em responder, deitará no ar agarrado ao suspiro.

Sem Assunto não é uma carta aberta ao diálogo, e sim um misto de testamento e sentença. 

Quem escreve e-mail “sem assunto” criou o precipício sem Orçamento Participativo, sem consulta popular, sem avaliar as bases eleitorais. 

“Sem assunto” é uma cova aberta. Você entrará de chinelos jurando que era mais uma obra de trânsito em sua rua. 

“Sem Assunto” é um paredão de fuzilamento. Fecham-se os olhos, porém não os ouvidos. A ameaça do tiro já mata. 






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 20 de agosto de 2013

INFIÉIS DA PRÓPRIA VIDA


Arte de Jean Cocteau

Nossa vida está perdendo consistência. Espessura. Segurança. Estamos mais sujeitos a mudar do que a insistir.

Estamos mais sujeitos a nos separar do que a permanecer casados.

Estamos mais sujeitos a ir embora do que a voltar para casa.

O mundo está tomado de mutantes, zeligs, camaleões, transformers.

Se algo incomoda, se algo atrapalha, o botão Desapego é rapidamente acionado.

Como não pretendemos sofrer, caminhamos para a total insensibilidade. Deixa-se o começo por outro começo. Não há mais meio ou fim, o que vigora é a desistência.

Substituímos a responsabilidade pela ideia de liberdade.

Experimentar é a lei – fazer patrimônio e futuro não tem sentido.

Anteriormente, nos dedicávamos à família. Agora, nossa obsessão é o prazer pessoal. Danem-se as complicações.

A aparente leveza se assemelha a desenraizamento.

Buscamos chegar logo, não olhar a paisagem. A velocidade é o que nos provoca. Buscamos desembarcar logo num novo destino, não nos vale a estrada. A viagem deve ser curta e indolor, jamais reflexiva e longa.

Não estou sendo dramático. Na infância, tínhamos três canais de tevê. Hoje, são mais de 300. A variedade nos conduz a não nos fixarmos em nada durante grande tempo.

Ter um romance longo é quase uma insanidade, assim como ler um livro de 400 páginas ou assistir a um filme de três horas.

Não oferecemos chance para permanência, para a rotina, para a confirmação das expectativas.

Não toleramos o desgaste, o tentar o possível antes de se despedir. Sacrifício e renúncia são expressões banidas do vocabulário, significam burrice. “Perder tempo com alguém, com tanta gente interessante por aí?” é o que nos dizem.

O oi já é um convite, o tchau já é um adeus, não existe relacionamento seguro e firme que suporte a tempestade de contradições.

São muitos apelos para biografias imaginárias. São muitas opções de ser diferente, que nem descobrimos quem somos.

É sempre alguém nos chamando no Facebook ou nas redes sociais com uma história incrível, extraordinária, afrodisíaca, que é um crime não provar.

É sempre alguém oferecendo conselhos, dicas, sugestões.

Repare. O mundo virou sábio de repente: todos têm soluções, ninguém mais convive com seus problemas.

Não me refiro à infidelidade amorosa, mas ao quanto somos infiéis com o nosso passado.

Não é trocar de parceiro ou parceira, mas trocar de tudo: largar emprego, cidade, amigos, esportes, manias.

Troca-se de mentalidade mais do que de opinião.

E é tão fácil descartar, difícil é refinar a própria vida.

Mas se você concluiu a leitura desta crônica, ainda há esperança.

Esperança de não virar a página por um momento.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 20/08/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17528

A GRANDE CONTRADIÇÃO DO AMOR

Arte de Jean Cocteau

Quem não ama faz tudo certo. Oferece tempo de sobra, respeita o espaço do outro, deixa sair com os amigos quantas vezes quiser, não pressiona, pode ficar tranquilamente uma semana sem ver, não telefona a toda hora, não cobra, não discute, não incomoda com perguntas. É perfeito no namoro justamente porque não tem nenhum interesse.

Já quem ama faz tudo errado. Atropela a relação, apressa, pretende ver sempre, sofrerá com a ansiedade do próximo encontro, tem ciúme, saudade do ciúme, fica em cima controlando as saídas, é desajeitado para dizer o que pensa, trocará os pés pelas mãos, vai buscar entender e analisar cada palavra, cada silêncio, não esquece nada do que foi dito, não dormirá sem saber que não está sozinho no próprio arrebatamento. 

Quem ama não seduz. Se seduz, não ama. Não dá para amar e seduzir ao mesmo tempo.

Ouça o que falei na manhã de terça-feira (20/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Daniel Scola e Jocimar Farina:

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

RECEBER AMOR É AMAR DE VERDADE

Arte de Oskar Kokoschka 

Ser amado incomoda. Ser amado é uma droga. Ser amado é uma tortura. Ser amado é o gesto mais árduo da vida do casal - mais difícil do que amar. 

Fica-se com a sensação de que temos que devolver o que recebemos. Não queremos nem abrir a porta para não precisar retornar a visita. Odiamos surpresas que nos põem em falta. Receamos gentilezas que impõem nosso atraso. Detestamos agrados que não foram imaginados antes. 

Excesso de amor intimida, excesso de amor oprime, excesso de amor gera uma competição invisível. 

Somos avarentos por prevenção. 

Somos avarentos para dominar o que sentimos. 

Somos avarentos para evitar a dependência. 

Somos avarentos para não sofrer mais adiante. 

Somos avarentos para não ter que se explicar.

Somos avarentos para não se entregar ao outro.

A avareza é confortável. E previsível

Se alguém dá um presente, surge a miragem de recompensar imediatamente. Pela ideia equivocada de que todo o presente é carente, de que todo o presente pede um irmão gêmeo, de que todo presente reivindica um par para dançar. 

Mas não existe essa obrigação, ela é inventada, a reciprocidade não é automática ou necessária.

O amor é uma corrente que vai e volta, uma eletricidade absolutamente anônima. Assim como cuidado não é favor, tampouco a ternura é uma soma. 

Infelizmente não pretendemos amar para não se comprometer, para não assumir a responsabilidade da troca e do envolvimento. 

A raiz da dúvida é que julgamos não merecer nada, e nos incomoda a generosidade alheia. Mais do que incomoda: parece que é uma cilada, um fiado com juros. 

Preferimos o amor ogro ao amor generoso. 

O problema é que a gente raciocina que seremos cobrados depois, que aquilo que está sendo oferecido não é nosso, é emprestado. Porém, amor não é empréstimo, e sim doação. Amor não é aluguel, não é viver de favor, e sim residência fixa. 

O medo da cobrança estraga o amor, forma paranoia, alimenta desconfianças.

A alegria vira pressão que vira tristeza. E qualquer acontecimento alegre será impregnado de um suspense aflitivo da conta. 

O contentamento não é festejado, logo se torna um fardo, uma preocupação. 

O presente deixa de existir. O que se vê é a angústia da fatura em aberto. 

Pensamos que seremos enganados, traídos. Só esperamos as piores notícias. 

No amor, é necessário ser ingênuo, esperar a boa notícia sempre. 

A boa notícia sempre. 

Mesmo que ela nunca venha.

Publicado na Revista IstoÉ Gente
Colunista
Edição de agosto de 2013

domingo, 18 de agosto de 2013

FOI MAL


Arte de Fatturi


Quando conhecemos alguém, o mais complicado é acertar as brincadeiras. Afinar o humor. Rir e fazer rir.

É somente pelo riso que nos confessamos.

É somente pelo riso que chegamos ao quarto.

É somente pelo riso que superamos as experiências anteriores.

Arrisco a dizer que o humor é nossa verdadeira nudez. É quando realmente expomos os nossos preconceitos e fragilidades.

Não adianta ser simpático, bonito, inteligente, poético, romântico, dependemos da cumplicidade da graça.

Sem a sintonia das piadas, o casal que está se formando não vai superar as brigas e as diferenças no futuro. Casal longevo é o que ri dos seus problemas, e não transforma aborrecimentos em epopeias. Casal maduro é o que perdoa e segue.

O riso é a porta de entrada de todo o relacionamento. Torna-se a parte complicada da aproximação.

Começar uma história significa conhecer as dores do outro durante a mais pura alegria. Estará animado e, sem querer, cutucará uma cicatriz.

O que pode parecer natural para você pode ser de mau gosto para ela, o que pode soar espontâneo para ela pode ser agressivo para você.

Não podemos nos frear, mas não podemos machucar. Não podemos nos censurar, mas não podemos ferir à toa.

Precisa se soltar, porém conservando a prevenção de que ela não vive em sua cabeça e não se habituou ao seu tom de voz, à sua ironia, às suas preferências.

A brincadeira estimula a intimidade. Aproxima. Apressa o abraço. Só que também pode desencadear incompreensão e incômodo.

O cuidado aumenta com a intensidade do relacionamento: quanto mais dependente de uma resposta mais vulnerável nas palavras.

Você terá que aprender a brincar, e principalmente, com o que não pode brincar.

Esta é a senha: não podemos brincar com tudo.

Ao brincar, desvenderá o que é sério e deve manter distância.

Será um trauma, será um hábito, será uma convicção.

Ela dirá que não gosta, e não insista. Não volte mais ao assunto. Não busque se corrigir provando que a crença dela é insignificante.

Há um território do pensamento feminino onde não é possível debochar ou subestimar, é uma lembrança com cerca elétrica, ninguém entra, nem ela mesma.

Toda mulher adora quem a faça rir, mas o que mais ama é quem descobre o que merece respeito.

 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 18/08/2013 Edição N° 17526

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A MÁQUINA RECEBE ALEXANDRE FROTA

Ator, diretor, polêmico e irreverente, Alexandre Frota parece um personagem de videogame.

Diz que foi muito reduzido ao longo da carreira e sente que já viveu duzentos anos.

Ele foi o convidado do meu programa A Máquina, na TV Gazeta, na terça (24/7).

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

OS SETE ANÕES

Você acredita em conto de fadas?

Acha que é uma esperança que trazemos desde criança?

DRnaTV foi descobrir se alguém já viveu uma história digna dos livros infantis.

O programa foi ao ar na terça (13/8), na TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.

NAU DOS INSENSATOS

Arte de Eduardo Nasi

Quem pergunta a própria pergunta parece louco.

Quem busca entender o que não foi dito parece louco.

Quem conversa no escuro parece louco.

Quem desconversa na claridade parece louco.

Quem é adiantado de esperança parece louco.

Quem ama para depois ver se é amado parece louco.

Quem é ansioso pela paciência parece louco.

Quem esquece o passado para repeti-lo parece louco.

Quem se entrega sem fiador parece louco.

Quem muda de vida para não mudar de amor parece louco.

Quem troca de assunto rapidamente parece louco.

Quem se questiona parece louco.

Quem não é avarento parece louco.

Quem tem fé parece louco.

Quem não se importa com a opinião dos outros parece louco.

Quem não se importa com a própria opinião parece louco.

Quem olha para a boca antes da palavra parece louco.

Quem não teme a fofoca parece louco.

Quem transborda de secura parece louco

Quem se contenta com um abraço parece louco.

Quem depende de um sim parece louco.

Quem depende de um não parece louco.

Quem odeia com paixão parece louco.

Quem não reclama parece louco.

Quem se desespera diante do fim parece louco.

Quem se desespera diante do início parece louco.

Quem sofre por dois parece louco.

Quem aceita voltar atrás para saltar à frente parece louco

Quem convida todos os amigos para suas dores parece louco.

Quem recusa remédios parece louco.

Quem não tem um terapeuta parece louco.

Quem pede desculpa fácil parece louco.

Quem erra rindo parece louco.

Quem erra chorando parece louco.

Quem grita para chamar o milagre parece louco.

Quem não teme convenções parece louco.

Quem não passa bem parece louco.

Quem está bem parece louco.

Quem é melancólico parece louco.

Quem não dorme de noite brigado parece louco.

Quem não dorme de alegria parece louco.

Quem dorme com medo para acordar corajoso parece louco.

Loucura é só estar vivo. É só ser espontâneo. É só doer e se alegrar com igual sinceridade.

Há mortos demais entre nós.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 13 de agosto de 2013

ELE VEIO DE CARRUAGEM, ELA ESPERAVA UMA CARRETA DE BOIS

Arte de Gustave Dore

Príncipe conversa com seu confidente. Acabou de se separar da Cinderela. Abrem-se as cortinas.

– Por que vocês se separaram?

– Ela explicou que eu amava demais.

– Amor demais? Tá de sacanagem? Aprontou alguma?

– Não, amei demais.

– Ninguém se separa por amor demais.

– Sim, ela se separou de mim por este motivo.

– Traição, ciúme, ressentimento são as causas mais comuns.

– Não, havia química poderosa. A gente ria muito. Os amigos enxergavam nosso contentamento. Admiravam nossa felicidade.

– Ria?

– Sim, de gargalhar, de doer de gargalhar. Bebíamos de noite conversando bobagem.

– Não faz sentido. Explica?

– Era muita surpresa para uma rotina. Casal perfeito, sabe?

– Sem filosofia, ela alegou o quê?

– Que era muito amor para uma mulher só, que ela não era o que eu idealizava.

– Você falou isso?

– Não, pelo contrário, eu falei que ela era muito melhor do que eu idealizava.

– Toda mulher deseja alguém por perto, romântico, com olhos somente para ela, não?

– Ela não gostava. Chamava de carência. Insistia para me controlar, amarrar as mãos, amordaçar a boca, não ficar em cima, dar espaço.

– Não tem cabimento... Tá brincando?

– Tem, sim. Amor demais. Eu lavava a louça antes dela acordar, eu a levava para o trabalho, eu estava à disposição de seus chamados.

– Ela ainda reclamava?

– Sim. Amor demais. Reclamava que não aguentava tanta pressão, que não conseguia respirar.

– Pressão de quê?

– Do meu amor demais.

– O que você pensava da situação?

– Nada. Estava feliz amando demais. Escrevia cartas e bilhetes, fazia declarações públicas, mandava flores, banquei serenata na janela, coloquei outdoor.

– Nossa, que estranho!

– Não é estranho, ela reclamava do amor demais. Ela se separou pelo amor demais. É muita expectativa.

– Era um conto de fadas, deveria ser bom.

– Mas faltava a bruxa, a maçã envenenada, o lobo.

– Por que você amou demais?

– Eu descobri o infinito no primeiro dia, eu a pedi em namoro no segundo dia, eu ofereci casamento na primeira semana, abri a casa no primeiro mês. Enlouqueci partilhando minhas razões de viver.

– Tudo foi rápido?

– Amor demais. Eu dei um solitário e pretendia casar na igreja. Eu queria ter um filho, já tinha até escolhido o nome. Eu dava presentes fora de hora, levava para jantar, não deixava qualquer pedido em casa. Ela parecia contente até que um dia...

– Um dia?

– Disse para mim: chega de amor!





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 13/08/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17521

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

CACHORRO MANCO

Arte de Fatturi

Sou devoto dos cachorros mancos. Aquele cachorro com uma perna imaginária, apoiando-se no vento.

Admiro imensamente o vira-lata que, apesar de quebrado, percorre seu trajeto com o focinho erguido.

Que altivez! Que elegância vinda do desespero!

Irei segui-lo na rua para descobrir o que come e onde mora. Posso entornar as latas de lixo para me tornar igual. Posso errar o caminho do trabalho e respirar Porto Alegre atrás de seu vulto. Fico curioso e assombrado pela força sobrenatural que emana de seu andar.

Ele perdeu a pata, mas não a estrada. Ele perdeu a pata, mas não a vontade. Ele perdeu a pata, mas não a esperança. Ele perdeu a pata, mas não perdeu a lembrança de caminhar.

Não tenho pena dele, nem cometo o desatino de me comparar. O cão manco é um homem inteiro.

Passeia por mim e não pede desculpa. Não menosprezo sua convicção: o cachorro manco também corre. O cachorro manco talvez voe. O cachorro manco esquece que tem chão. Sua esperança é uma centopeia apressada.

Ele não se entregou ao encolhimento, continua se arriscando no trânsito pela compreensão. Aceitou apenas que a vida não é perfeita e ninguém é capaz de controlá-la.

Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa.

Olhar com calma o pelo que renasceu depois dos maus-tratos e do sol em demasia.

Encarar os olhos carentes desprovidos de cílios, nada separando a realidade do fundo das pupilas.

Sua aparição transforma nosso jeito de desejar o mundo. É só pegar o animal no colo que paramos de reclamar dos pequenos aborrecimentos. Desistimos do orgulho. Nasce uma suave fé da carícia.

Porque o cão manco confia antes de conhecer. Faz festa mesmo sem ser convidado. No amparo estranho, abanará o rabo e tremerá de contentamento. Ele sofreu e não se tornou arredio. Sofreu e não deixou de oferecer o coto.

Um cão manco é uma passagem para a infância – ele lambe o rosto para lavar pudores e ressentimentos. Aceita um prato de comida como se fosse o seu próprio aniversário. Harmonioso na falta, nos diz que não dependemos de equilíbrio, e sim de um lugar para ir.

O cão manco é meu professor de transcendência. Me explicou que eu não posso amar por dois, posso amar por três, quatro, cinco, o que precisar para retribuir a ternura de outro amor.


 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 11/08/2013 Edição N° 17519

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

ETIQUETA DA FOSSA

O que mais incomoda os vizinhos: os gemidos de madrugada ou as músicas deprimentes?

Você tem alguma receita de como curtir o período da separação?

Não importa como acontece, a fossa é o retorno para a adolescência.

DRnaTV foi ao ar na quarta-feira (7/8), na TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.

FELIZ DIA DOS FILHOS


Arte de Paul Klee

Enfrentei divórcio no ano passado e fui premiado com Gripe A. Além disso, estava brigado com a minha filha. Quando jurava que ficaria sozinho, ela apareceu subitamente em casa e eu perguntei:

- O que você está fazendo aqui, não estava chateada comigo?

Ela respondeu:

- Sim, estou. Só que antes você precisar melhorar para eu voltar a ter raiva. Dependemos de igualdade de condições.

E me deu chá e me deu sopa e zelou meu sono durante três dias.

Quando me recuperei, ela me olhou e seguiu seu rumo:

- Agora posso retomar a minha brabeza. Está de novo com saúde para discutir.

Salvar primeiro o outro para depois salvar o relacionamento; esta foi a lição que minha filha me alcançou.

Neste final de semana, não direi Feliz Dia dos Pais, mas Feliz Dia dos Filhos!

Ouça meu comentário na manhã de sexta (9/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

PROMETEU

Arte de Eduardo Nasi

Você escreve melhor quando está triste.

É a frase que mais escuto de meus amigos. Eu já confio que eles torcem pela minha tragédia pessoal. Boicotam minha alegria. Conspiram para meu levante de lágrimas.

É só me separar de mais uma namorada que eles já me analisam com euforia. Não disfarçam a curiosidade. Contam as horas para o próximo texto. Agradecem que deixarei de ser monotemático e descrever uma única pessoa. Já ouvi de um deles: “Você é muito chato feliz”.

Pode ser paranoia, e deve ser, mas pressinto um riso malicioso com a minha derrocada amorosa. Paira uma satisfação coletiva de churrasco sobre minhas cinzas.

Eu não tenho amigos, mas críticos literários. São agentes infiltrados da editora.

Eles não me querem casado e resolvido. Desprezam as sobrancelhas arqueadas da gargalhada e valorizam o olhar tristonho e perplexo: o olhar fixo de caneta no papel.

Partem da crença de que a minha literatura dá certo se me arrebento. Supõem que o equilíbrio não me favorece, a harmonia não ajuda o estilo.

De aniversário, apenas recebo uísque — eles nem mais explicam o presente. Rezam pelo meu alcoolismo. Rezam pela minha sarjeta. Rezam para que não me recupere do soluço.

Não é brincadeira. Qual o motivo do Zé me oferecer, após um desenlace de relacionamento, uma coletânea de músicas com Espuma ao Vento de Fagner e Sonhos de Peninha? É como afiar uma lâmina ao suicida.

Enquanto tento ser exuberante e florido, eles me empurram ao pântano. Sou o jacaré de estimação de meus comparsas.

Nunca me elogiam quando estou faceiro. Nunca me incentivam quando estou eufórico e realizado. Nunca consolidam a minha leveza. Desaparecem durante as declarações de amor, reaparecem depois nas honras fúnebres.

Eu me identifico como mensageiro de más notícias. Um traficante do desespero. Trago frases e pensamentos do submundo e eles se deliciam com a variedade dos entorpecentes em suas baladas.

Não entendo de onde arrancaram essa certeza. Será que acreditam que não minto desesperado, que a fúria é vizinha da sinceridade, que nasci para ser ferido?

É algo quebrar dentro de mim, que eles isolam a área da palavra e selecionam os estilhaços como joias.

Desconfio de seus conselhos. Quando me avisam que é para ir para direita, preciso olhar o chão para não cair no abismo.

O que eles não preveem é que, sem musa, vai sobrar para eles. Vou falar mal deles.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 6 de agosto de 2013

NÃO DEIXE DE SAIR COM O CASACO, MEU FILHO, ALGUMA MULHER PODE PRECISAR

Arte de Thomas Gainsborough

O homem só depende de um casaco para ser gentil.

Deve levar sempre um casaco consigo. Estar preparado para o arrebatamento.

Mesmo que seja um sol de rachar. Ou um mormaço amazônico.

Ele vai precisar oferecer para uma mulher em algum momento. O casaco é que diferencia o cavalheiro dos outros mortais.

O casaco é a arma romântica, a elegância do improviso. Evidencia seriedade de princípios, já que a educação desenvolve intimidade.

É só oferecer o casaco, que ele mostra ser capaz de ceder sua vida, cria empatia com o mundo feminino, assinala vigilância e cuidado.

O casaco é um dos itens obrigatórios para sair de casa. Por isso, a mãe sempre pedia para nunca esquecê-lo na infância.

Não é somente um casaco, mas um colete salva-vidas para as situações amorosas.

Nosso casaco não é para nós, mas para elas.

É óbvio que sua namorada estará desprotegida, toda mulher sai com pouca roupa de noite para se manter sensual.

Ela se sacrifica por você, você se sacrifica por ela. Dois sacrifícios formam uma escolha.

O casaco é um reforço secreto na saída do bar ou do restaurante, nossa alma de linho a desafiar nevoeiros e ventos.

Representa nosso farol, nosso castelo, nossa fortaleza viril.

Simples de tirar e se converter em novos significados. Multifuncional por essência, o equivalente a um canivete suíço. Numa única versão de pano, temos abridor de condicionamentos, tesoura de conversa, serra a críticas, lima para frieza, alicate de travas e chaves de fenda do coração.

Com um casaco, o homem saca um guarda-chuva para sua companhia atravessar a tempestade.

Com um casaco, o homem inventa uma almofada para ela deitar a cabeça ou sentar no chão.

Com um casaco, o homem espanta o frio incômodo dos ombros na madrugada.

Com um casaco, o homem salva sua parceira das sessões gélidas de cinema.

Com um casaco, o homem inaugura um cobertor nas pernas.

Além de eliminar a necessidade do telefonema do dia seguinte. Ele cria automaticamente a necessidade do segundo encontro, e ainda transferindo a responsabilidade para a mulher de entrar em contato.

Ao deixar o casaco, ela terá que devolvê-lo. Duvido que não ponha um bilhete de agradecimento no bolso.

O casaco é também a primeira correspondência de amor.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 06/08/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17514

domingo, 4 de agosto de 2013

EU SOU O MELHOR NO QUE FAÇO, MAS O QUE FAÇO NÃO É NADA BONITO

Arte de Fatturi

Meu pai me chama de Wolverine. É o nosso apelido secreto.

Não tenho o queixo quadrado e a baixa estatura do desenho da Marvel Comics. Muito menos a suíça e o cabelo alvoroçado do ator Hugh Jackman, que interpreta o herói no cinema. A referência física não contribui para nossas semelhanças.

Ele me compara ao personagem pelo meu alto poder de cicatrização. Eu me desespero e logo ressuscito, eu caio e logo levanto.

Não morro de uma única vez. Não desisto. Não me entrego mesmo que não veja a saída. Quando não há porta, eu espero no escuro até ser a porta.

A ansiedade que me enerva acaba por aumentar minha vontade de ver de novo a luz.

Tenho fúria de viver.

Não há perda que seja total. Alguém pode me machucar terrivelmente, mas não me leva. Posso permanecer sequelado, mas sei cavar a terra por dentro da terra. Penso nos filhos, penso nos amigos, penso na literatura e sigo adiante. Cambalear ainda é caminhar. A chuva lava minha ferida e o vento seca.

A carne da memória se recompõe de algum jeito. Talvez seja um excesso de sofrimento na infância que me preparou para o pior no futuro.

Eu sobrevivi a tanta coisa.

Sobrevivi ao bullying na escola, ao pessoal me chamando de ET e monstro todo dia durante o ensino fundamental.

Sobrevivi à resistência dos médicos que juravam que tinha algum retardo mental.

Sobrevivi à desistência dos professores com meu desempenho.

Sobrevivi à traição de amigos.

Sobrevivi às drogas para ser aceito na roda dos adultos.

Sobrevivi à briga de rua.

Sobrevivi a uma tentativa de suicídio na adolescência.

Sobrevivi a enterros de jovens amigos.

Sobrevivi a três acidentes de carro.

Sobrevivi a três separações.

Sobrevivi ao vício do cigarro.

Sobrevivi a dois assaltos a mão armada.

Sobrevivi a várias demissões.

Sobrevivi ao distanciamento de meus dois irmãos amados.

Sobrevivi, vou sobreviver, mesmo que não acredite na hora.

Só não entendia onde meu pai enxergava as garras retráteis de Logan.

– E as garras das mãos, pai?

– São as palavras, meu filho. Você se defende com a linguagem ou se agarra nela para não morrer.

 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 04/08/2013 Edição N° 17512

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

ESPERANDO A TORMENTA PASSAR

Fé é intimidade: saber que o outro está com dificuldades, mas acreditar na relação.

Na fé, ficamos juntos pois sabemos quem nos conhece. É ela quem carrega o amor para onde ele for.

DRnaTV, da TVCOM, foi exibido na terça (30/7), com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.

TORÇO PELO MEU AMOR


Por que a gente não luta por um amor como a gente luta pelo time de futebol? Por que a gente não tem a mesma paciência? Por que a gente não faz a mesma torcida esperançosa? Por que não desfrutamos da mesma garra?

Com o time de futebol, nunca deixamos de estar junto. Ele pode ir para a série C que permaneceremos frequentando o estádio e assistindo aos jogos.

Pode estar quebrado, falido, com salário atrasado, jamais largamos a bandeira, a carteirinha de sócio, a confiança do estádio.

Já com o amor , desistimos rápido. É só o nosso amor cair para a segunda divisão que o abandonamos. É surgir alguma dificuldade, alguma crise, algum contratempo, uma sequência de partidas sem resultado, que desejamos virar a casaca.

Com o time, nunca renunciamos nossa torcida. Nossa equipe pode estar jogando no inferno que continuaremos seguindo a caravana.

Já com o amor, é cair o padrão do jogo um pouco, e já pulamos fora.

Com o time, podemos esperar vários campeonatos, várias décadas, até ser campeão.

Já com o amor, não esperamos nem uma temporada.

Com o time, pedimos a troca de técnico.

Já com o amor, pedimos a falência do clube.

Se o amor fosse futebol, nosso relacionamento estaria salvo.

Torço pela Juliana como se fosse o Internacional, apesar dela ser gremista.

Ouça meu comentário na manhã de sexta (2/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina: