quarta-feira, 29 de maio de 2013

ME DÊ UM PAR


Arte de Eduardo Nasi

Quando a minha vó Elisa me mostrou sua aliança, eu fiquei hipnotizado.

Foi um pouco antes dela morrer. Era viúva há cinco anos.

Ela brincava:

— Leonidas pode me trair, já que está morto. Mas eu continuo viva e não tiro.

O símbolo me cativava pelo uso. Arranhado, com o ouro todo riscado.

Eu queria um igual. Para ser empregado com semelhante fúria. Para ser gasto. Testado. Lanhado.

Uma aliança com mecha envelhecida. Anciã.

Uma aliança como pedra de riacho. Arredondada.

Uma aliança teimosa, que jamais saiu do anular. Nem durante o banho. Muito menos ao longo da viuvez.

Uma aliança montaria da espuma, bambolê de frutas, relógio de unha.

Uma aliança fiel ao corpo, coração na árvore, bússola de besouros.

Uma aliança doída, torneada, esfolada no tanque de lavar, na pia, na mesa.

Uma aliança que é aldrava de janela, argola de brinco, que acalma nossa respiração.

Eu sou apaixonado por aliança que tenha bodas, experiência de vento, vontade vivida.

Já ouvi de casados que a aliança é um ímã de traição, que aumenta apenas o assédio.

Mas aliança não traz infidelidade, não é um escudo.

Ela não nos protege, nós que a protegemos.

Aliança não é o fim, e sim o começo incessante.

Não significa que estamos prontos, definidos, fechados.  É uma escolha renovada, é uma promessa incansável, um compromisso que se carrega na mão para ter gosto de apontar o caminho ao outro.

Aliança é o laço do balanço voando, é uma admiração por alguém estendida em nossa palma.

Ela não está só na mão. É tudo o que enxergo, tudo o que acredito. Olho para os cabelos cacheados de Juliana e vejo alianças. Olho para seus olhos mouros e vejo alianças. Olho para seus lábios soprando a neblina e vejo alianças. Olho para seus joelhos de patinação e vejo alianças.  Olho para suas pequenas orelhas e vejo alianças.

Conchas, círculos, esferas são ensaios de aliança. Desenhos de alianças. Garatujas cantantes, aliadas de minhas pupilas.

A aliança nunca será uma joia, será sempre uma palavra para duas bocas.

A aliança nunca será um anel, será sempre uma chave para duas portas.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 28 de maio de 2013

O AMOR TEM SONO LEVE

Eu, namorada Juliana e minha filha Mariana. Foto de Rodrigo Rocha

Só aprendi a amar uma mulher depois de ser pai.

Antes me amava mais do que amava o outro.

A paternidade mudou meu mundo. Pela primeira vez, me tornei invisível, desaparecia no interior da casa, alguém era mais importante do que eu.

Permanecia 24 horas cuidando de minha filha. Existia por ela, para ela. Passei a destacar o que não seria notícia, a me interessar pelos assuntos da praça, pelos cuidados médicos, por aquilo que havia dentro do armário do banheiro, dentro da despensa da cozinha, dentro de minha cabeça.

Só quando pai é que descobri a diferença dos detalhes, a reparar na gola da camisa desarrumada, no farelo do canto da boca, na remela nos olhos, na previsão meteorológica, na lista do mercado sonhando almoço e janta.

Antes amava a noite mais do que o dia.

Quando nasceu minha filha, me dediquei à ordem doméstica. Dispensei creche para assumir a rotina do nosso bebê.

Meu expediente consistia em acordar, dar comida, trocar fraldas, dispor brinquedos, arrumar bagunça, levar para passear, preparar o banho, contar histórias, fazer dormir. E repetir exatamente tudo igual pela semana.

Controlava os horários com rigor. O relógio entrou em meu sangue.

Era um tal estado de solidão e carência, que todo beijo parecia um abraço dos lábios. Era um tal estado de isolamento, que toda visita recebia o dobro de festa.

Tinha direito a três telefonemas, justamente no momento em que minha criança descansava.

Brilhava cada palavra vinda dos amigos, como se fosse um sopro benfazejo de praia no rosto.

A paternidade transformou meus ouvidos. Eu comecei a escutar a residência inteira, jamais dormi igual. Meu sono agora estava atento a qualquer ruído, generoso, preparado para a vigília.

Só aprendi a amar uma mulher depois de ser pai. Arrumando a merendeira, me importando se o uniforme da filha estaria seco, conservando a memória da banalidade.

Antes não me julgava romântico, antes não me via sensível, antes não compreendia vésperas.

Foi untando os dedos de hipoglós que valorizei o uso do perfume, foi juntando meus pedaços que me formei inteiro.

Só com a paternidade aprendi a esperar, aprendi a abandonar o egoísmo, aprendi a planejar presentes, aprendi a ser provisório e não mais idealizar encontros, aprendi a aproveitar o tempo que eu tinha e o tempo que podia, aprendi a não reclamar à toa, a não mais diferenciar a janela da porta e o amor do perdão.

Só aprendi a ficar de pé depois de ser pai, antes minha fé apenas engatinhava.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 28/05/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17446

segunda-feira, 27 de maio de 2013

A MÁQUINA RECEBE SÔNIA ABRÃO

A jornalista Sônia Abrão fala que o homem ainda é o atestado de existência de muitas mulheres.

Ela conta que, inicialmente, foi a destruidora de sonhos do pai.

A entrevista foi ao ar na noite de terça (21/5), em meu programa A Máquina, na TV Gazeta.

SUPORTANDO O FUXICO

As pessoas conseguem conviver com um romance secreto no trabalho?

Ou levam o caso a público e aguentam as consequências?

DRnaTV buscou casais em uma agência de Porto Alegre para saber qual o comportamento adotado pelos apaixonados.

A exibição aconteceu na terça (21/5), na TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.

domingo, 26 de maio de 2013

ESSE CARA NÃO SOU EU

Arte de Fraga

Sou eu e ela aproveitando os 10 minutos de tolerância do despertador para ficar ainda mais abraçados.

Sou eu e ela brindando com xícaras de café.

Sou eu e ela dividindo o espelho na hora de escovar os dentes.

Sou eu e ela perguntando se está frio ou quente na rua para escolher as roupas.

Sou eu e ela fazendo planos para o final de semana em plena segunda-feira.

Sou eu e ela de mãos dadas no cinema até formigar os braços.

Sou eu e ela criticando a cafonice de alguém na rua.

Sou eu e ela no banco da praça tomando chimarrão e jogando pipoca aos pássaros.

Sou eu e ela trocando cumprimentos de pernas debaixo da mesa.

Sou eu e ela se beijando devagar para respirar melhor dentro do beijo.

Sou eu e ela guardando as rolhas de nossos vinhos.

Sou eu e ela escondendo surpresas no armário da cozinha.

Sou eu e ela ouvindo os problemas sem jamais dizer que não é nada (é horrível ouvir que não é nada quando se sofre).

Sou eu e ela relatando as confusões do trabalho, e exagerando para soar engraçado.

Sou eu e ela disputando quem acessa primeiro a web.

Sou eu e ela arrumando a casa depois de festa.

Sou eu e ela colocando ao mesmo tempo nossas fotos no Facebook.

Sou eu e ela dançando com a cabeça voltada ao teto.

Sou eu e ela lendo o mesmo livro, um esperando o outro terminar o parágrafo para virar a página.

Sou eu e ela adivinhando o que significa certas palavras antes de consultar o dicionário.

Sou eu e ela em silêncio barulhento quando nos emocionamos com uma história.

Sou eu e ela mordendo os lábios no momento da excitação.

Sou eu e ela dividindo os moletons mais gastos.

Sou eu e ela atendendo ligações de madrugada dos amigos em fossa.

Sou eu e ela dando desculpas furadas para não sair no frio.

Sou eu e ela pedindo: por favor, coce minhas costas.

Sou eu e ela passando a roupa um pouquinho antes da festa.

Sou eu e ela atentos quando um dos dois levanta no meio da noite.

Sou eu e ela encardindo as meias pelos corredores do prédio.

Sou eu e ela confessando ciúmes com humor.

Sou eu e ela guardando as caixas de sapatos e as embalagens dos presentes.

Sou eu e ela mudando de canal sem parar sempre alegando que nunca tem programa bom.

Sou eu e ela conferindo se fechamos a porta.

Não sou o cara, mas melhor do que isso: sou um casal.


 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 26/05/2013 Edição N° 17444

quarta-feira, 22 de maio de 2013

ASMA É AMOR


Arte de Eduardo Nasi

Viver é susto. Improviso já é um luxo, agradeça, é quando ainda podemos interferir na realidade.

Juliana tinha que acordar mais cedo que o costume. Pretendia estar 8h na agência de publicidade para dar conta de um projeto importante de mídia.

Precisava dormir cedo. Bem cedo.  Programou a rotina com antecedência, preveniu sobressaltos.

Mas sempre que a gente reserva algo importante de manhã, a noite é um inferno. Ou pelo excesso de expectativa ou porque simplesmente não controlamos a vida.

No caso, a vida era eu ao seu lado na cama. Sofri um ataque violento de asma. Fazia mais de dois anos que não tinha asma.

O problema da asma é que ninguém acredita que ela é física. Todos acham que é de fundo emocional.

Todos, na manhã seguinte, já perguntam: — Está preocupado? — Está tenso? — Está sofrendo? — O que foi?

Entende-se asma como uma ameaça psicológica. Na verdade, a asma é uma fragilidade respiratória, que se agrava com um dilema afetivo.

A preocupação é apenas uma faísca no corpo embebido de gasolina.

Tentei sair de mansinho da cama, sufocar a tosse, enganar o enjoo. Não pretendia despertar Juliana. Conservava a urgência de seu trabalho, como sei que a falta de sono é atalho da irritação.

O que esqueci foi o estardalhaço dos balidos do peito. No meu rosto barbudo de lobo, resistia uma ovelha negra perdida.

A asma acordou o prédio inteiro. Tanto que Ilton, o vizinho do andar de baixo, telefonou oferecendo carona ao médico.

Não havia como controlar o estrago. Minha panaceia consistia em dormir e fingir que nada aconteceu. Juliana, óbvio, não aceitava que permanecesse naquele pânico de boca, sem emergência.

A DR da saúde é um estágio obrigatório do casal.

O doente: — Logo passa!

A companhia: — Precisa confiar em mim! Temos que conferir no plantão.

Quinze minutos de prédicas: eu não desejando incomodar (quem deseja não incomodar incomoda o dobro), e ela morta de sono buscando ser terapêutica, não levantar a voz e me convencer que não iria me recuperar sozinho.

É uma arena delicada de papéis. Desde a infância, desde o fingimento da primeira febre.

Varei luas por filhos com dores na garganta e no ouvido, por pais em crise e por amigos em bebedeira.

Não existe amor que não seja condicionado a atravessar a doença da madrugada.

O que acho triste é que o acompanhante merecia um atestado médico. Até mais do que o próprio doente.




Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 21 de maio de 2013

A ALMA DO PARA-CHOQUE

Arte de Roy Lichtenstein

Comprar carro é enfrentar o pânico de batê-lo no primeiro dia.

Saio da concessionária com o pé tremendo no acelerador, ligo o pisca-alerta 10 minutos antes do contorno. Ando realmente devagar como uma mula, tranco o sinal, recebo buzinadas.

Reedito um nervosismo de autoescola, erro as marchas, belisco o meio-fio, sequer mexo nos botões do painel para não me distrair.

Pelo impacto da emoção, desaprendo a dirigir.

Não é só comigo que ocorre. É a maldição do primeiro dia da compra. Todos temem arranhar o veículo na saída, estragar o investimento, manchar a reputação de motorista sério. Pode ser piloto de Fórmula Truck ou um adolescente filhinho de papai, o medo é contagioso e não escolhe as vítimas.

Quem não pegou a chave no salão encerado e vacilou em pensamento: “Como vou tirá-lo daqui com essa gente me olhando?”

Vem uma mendicância, uma desvalia, uma orfandade com carro novo.

Será uma humilhação acionar o seguro já nas horas iniciais. Imagina: nem mostramos para a família e a novidade está sequelada. Ficaremos com a sensação de que não merecemos o presente. É assinar o atestado de incompetência.

Carro novo deveria vir do estacionamento direto para a garagem. Sem risco de barbeiragem. Sem trânsito no meio do caminho.

Carro novo é carro emprestado ainda. Será nosso depois que desaparecer o cheiro de chiclete dos bancos.

Carro novo é o autêntico teste de balizas. Um magneto de desastres. Um ímã de inveja. Não tem como dissimular sua estreia, a lataria traz em si faróis de neblina.

Atravessamos as ruas como se estivéssemos nus. Indefesos.

Sabe aquela história da infância: quando tudo está perfeito alguma coisa de ruim acontece? Introjetamos essa máxima sádica dos avós e boicotamos nossa felicidade.

Acho que os outros motoristas se sentem incitados a nos testar. Não abrem passagem, não facilitam a troca de pista, motoqueiros surgem do nada, caminhões trancam as vias no cimo da ladeira.

É o equivalente adulto do sofrimento do tênis branco. Na escola, quando aparecia com conga novinho, os colegas se aproximavam maldosamente para me batizar. Sempre voltava da aula com o par sujo e emporcalhado. Impossível conservá-lo por 24h.

Quando compro carro, não me arrisco mais, não barateio a paz.

Entendo que a alegria é uma solidão. Nossa maior solidão.

Com um veículo brilhando em casa, passo a andar de ônibus por uma semana, até vencer o estágio probatório do acidente. Os filhos e a namorada juram que enlouqueci, mas não vou dar mole ao olho gordo. Só pego o carro quando ultrapassar a zona de risco de sete dias.

A superstição é meu para-choque.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 21/05/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17439

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A MÁQUINA RECEBE PC SIQUEIRA

O vlogueiro PC Siqueira parou de ir à escola aos sete anos.

Largou o estudo para ficar no estúdio.

A entrevista foi ao ar na noite de terça (14/5), em meu programa A Máquina, na TV Gazeta.

domingo, 19 de maio de 2013

DEPOIS DO TRABALHO, AINDA FALTA TRABALHAR A RELAÇÃO

Arte de Fraga


Amar não é suportar tudo. Aguentar qualquer coisa.

Não é porque você ama que o amor se faz sozinho.

Não é porque você conquistou quem desejava que deve relaxar.

Não é porque alcançou a independência financeira que já tem autonomia afetiva.

Quando chega em casa do trabalho, depois de oito horas de incômodo, da chuva de cobranças e prazos, cansado, estressado, faminto, não adianta afundar no sofá, esticar as pernas, esquentar algo e se apagar.

Não terá direito à solidão e ficar em paz. Não terá direito a não conversar. Não terá direito a não ser afetuoso. Não terá direito a assistir televisão sem ninguém por perto.

Se pretende se isolar, não ouse casar, não procure dividir o tempo e o abajur.

Quando regressa do serviço, acabou a vida profissional, porém começa a vida pessoal. E do zero.

Sua mulher não tem que tolerar seu desaparecimento, sua anulação, sua desistência pelos corredores.

Ela quer senti-lo, entendê-lo, percebê-lo.

A noite é manhã para o amor.

Quando retorna da rua, agora é o instante de trabalhar o relacionamento.

Da mesma forma em que seria demitido se ofendesse um colega, não desfruta de espaço para agressão e gritos. É a esfera da delicadeza, das pontas dos dedos no rosto, de emoldurar a confiança.

Controle-se, comporte-se, cuidado com o que diz, não se entregue ao cansaço.

Sua esposa nada tem a ver com aquilo que cumpriu à luz do sol. Não conta pontos sua dedicação no escritório.

É um novo turno, sem antecedentes, sem pré-história.

É a primeira vez durante o dia que trocará assunto com ela (que seja separando as melhores peripécias). É a primeira vez durante o dia que se dedicará a ouvi-la (que decore a intensidade das palavras). É a primeira vez durante o dia que passará as mãos em seus cabelos (que seja mais generoso do que a escova). É a primeira vez durante o dia que beijará sua boca (que seja com calma da janela). É a primeira vez durante o dia que presta atenção no que ela veste e como se veste (que seja com atenção de alfaiate).

Não há como trapacear. Não há como despistar, postergar para o final de semana.

É só você e ela.

Tome guaraná cerebral, emborque litros de café, triture amendoim com os dentes. Mas se mantenha acordado. Não se ganha um casamento empatando.

É o período de oferecer atenção integral - ela espera que confirme os motivos para estarem juntos.

Por mais absurdo que soe, assim que pousa sua pasta no chão da residência, inicia o expediente amoroso - todos que amam têm dupla jornada.

É acolher as dúvidas, abraçar demorado, preparar a janta, perguntar sobre os amigos, valorizar os apelidos, deitar próximo, não se distanciar do campo elétrico da pele.

Amar é muito mais grave do que uma profissão. Muito mais complicado. Não tem aposentadoria.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 19/05/2013 Edição N° 17437

quarta-feira, 15 de maio de 2013

BÊNÇÃO EM PESSOA

Qual é o papel da nona na família italiana?

Em qual idade a vó recebe esse título?

DRnaTV foi a Caxias do Sul para entender por que todo mundo vira criança perto dela.

A exibição aconteceu na terça (14/5), na TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.

MOTIM DOS OBJETOS


Arte de Eduardo Nasi

Não sei se você notou. É amar alguém de verdade que os objetos impõem súbita greve de funcionamento.

O poltergeist sempre coincide com início do romance.

Com medo de perder a colocação no lar e o posto de trabalho, o mobiliário faz motim. Receia o gulag do porão e a garagem, teme eventual troca por aparelhos de última geração.

Não há namoro que não mexa com os ânimos dos pertences, incertos daquilo que parte ou fica com a união. Sofrem crises de pânico e esgotamento das baterias, controlam os caminhões de frete pela rua.

Copos pulam do viaduto das prateleiras, pratos voam com a asa-delta dos talheres, é um vendaval de cacos e fragmentos.

No começo do relacionamento, os objetos estragam num único dia, em sequência mórbida. Eles se sentem abandonados e se revoltam. Têm inacreditável ciúme da felicidade do dono. Pressentem o exílio e transformam os aposentos em templo de exorcista: faíscas, pequenos estouros, infiltrações.

Coisas queridas e prediletas se matam para chamar a atenção. É um suicídio coletivo, mobilização alinhada de seita.

Meu relógio parou desde que oficializei o namoro com Juliana. Já troquei cinco vezes a lâmpada do quarto em menos de duas semanas. O DVD baqueou com falhas de contato.

No fim do dia, acumulo inúmeras baixas. O aspirador de pó e a vassoura são enfermeiras de plantão, e vivem recolhendo os ossos de porcelana pelo caminho.

Vejo que a residência me testa seriamente, porém não me irrito. Pago os consertos com inusitado contentamento.

A máquina de lavar rompeu suas correias e estragou seu cano. Providencio arrumação, sem problemas, estou apaixonado.

O carro encalhou em plena descida de ladeira. Quebrou a embreagem. Esperei o guincho feliz, sem problemas, estou apaixonado.

O micro-ondas queimou. Comprei outro, sem problemas, estou apaixonado.

O ar-condicionado não aquece. Decido ajustá-lo, sem problemas, estou apaixonado.

As geringonças e tralhas buscam me constranger, interessadas em demonstrar sua força e poder.  Mas estou apaixonado, e não me importo.

Meu reiki é abrir as janelas e abençoar os corredores com suspiros.

Fecho o corpo para a tragédia. Fecho o corpo para a inveja. Fecho o corpo para a casualidade.

A culpa não vai me estragar.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 14 de maio de 2013

ARITMÉTICA DA SOLIDÃO



Quando fiquei novamente solteiro, estava decepcionado com o mundo.

Entendia a solidão como sarcasmo. Minhas roupas não enchiam mais uma máquina de lavar, a comida estragava na geladeira, toda noite era fim melancólico de domingo.

Não fazia sentido estar sozinho. Logo eu, que sempre defendi a vida a dois, logo eu, que sempre valorizei o casamento, logo eu, que dizia que liberdade na vida é ter um amor para se prender – me enxergava amaldiçoado, raivoso com a falta de sorte, ofendido com as separações.

Reclamava da sina aos amigos da injustiça, já profetizava que ficaria encalhado o resto dos dias, já me preparava para ser um canalha incorrigível, já prometia encerrar o destino romântico e rasgar as crônicas enternecidas.

Minha filha Mariana buscou me acalmar. Saiu comigo para esfriar o drama. Afinal, até ópera tem intervalo.

– Pai, dá um tempo na choradeira...

– É fácil dizer porque não é contigo.

– Está se sentindo o único separado da terra, que coisa, relaxa, olha para os lados.

– É que parece que jamais vou encontrar a mulher de minha vida. Adoro a convivência a dois.

– Você já é dois, pai.

Aquela frase me confortou: eu era dois. Era inteiro. Não dependia de ninguém para me completar. Não precisava levantar os braços para o ônibus de recolhe. Não morreria de sede como uma samambaia. Poderia me cuidar, me dar ao luxo de ser egoísta e não mendigar alianças.

No momento em que aceitei a solteirice, e sorria dentro dela, conheci Juliana. E tudo que abandonei floresceu furiosamente em meus olhos.

O cara que não queria mais um envolvimento sério voltou a oferecer declarações eternas. O cara que não queria mais casamento passou a se imaginar no altar. O cara que não queria mais ter filhos descartou de vez a vasectomia. O cara que não mais confiava nas mulheres começou a desconfiar dos homens.

O namoro venceu o apocalipse, mas não eliminou a dúvida. Havia o receio de reprisar histórias anteriores.

Fui conversar com Juliana:

– Eu sou dois sozinho.

– Pode ser três comigo – ela corrigiu.

Eu ri. E completei:

– Então, posso ser quatro contigo. Eu e minha solidão, tu e tua solidão.

Nunca mais seria metade de ninguém. Nem de mim mesmo.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 14/05/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17432

DIETA PARA O OLHO GORDO

Arte de Escher

Meu pai me alertou hoje de manhã:

- Filho, não fique dizendo que está feliz, não mostre sua namorada, não mostre seu sucesso, olha o olho gordo!

Assim não descrevemos nossa alegria por medo da inveja.

Não apresentamos quem a gente ama, não contamos os nossos melhores momentos, por medo da inveja.

Não nos declaramos aos amigos, para a família, não ficamos rindo à toa por medo da inveja.

Não falamos que transamos a noite inteira por medo da inveja.

Não espalhamos as boas notícias de nossa vida por medo da inveja.

Não contamos sobre uma promoção aos colegas por medo da inveja.

Não exibimos roupas e móveis novos por medo da inveja.

Por medo da inveja, a gente se esconde e se protege.

Por quê?

Por que temos que guardar o que é mais precioso e revelar o que não tem valor?

Para ninguém roubar nossos sentimentos?

Não está errado deixar de viver pela inveja?

A tristeza a gente faz questão de expor. Já disfarçamos o contentamento para não esnobar.

Pode me invejar. A inveja envelhece.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (14/5) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 13 de maio de 2013

A MÁQUINA RECEBE CACO CIOCLER

O ator Caco Ciocler tem pânico do planejamento. Gosta das novelas pois o roteiro é sempre aberto.

Quer interpretar Ricardo III para exercer seus lados obscuros no teatro e não na vida.

A entrevista aconteceu na noite de terça (7/5) em meu programa A Máquina, na TV Gazeta.

domingo, 12 de maio de 2013

SEMPRE TEM ESPAÇO NO AMOR

Arte de Fraga

Tinha sete anos quando meu pai saiu de casa.

Foi minha maior solidão.

Concluído o almoço, ia ao seu armário mexer nas roupas que ficaram do divórcio.

Reconstruía o pai na cama de casal.

Por ordem, colocava a boina, a camisa de linho, a gravata sobre a camisa, a calça, o cinto, o carpim e os sapatos.

Era meu quebra-cabeça em tamanho natural.

Conversava longamente com seu traje estendido no lençol, imaginando que meu pai sesteava.

Um dia minha mãe me pegou falando com os tecidos.

– O que você está fazendo, Fabrício?

– Nada, passando roupa. Brincando de passar roupa.

Eu brincava de ser filho, no fundo. Brincava de saudade. Brincava de reconciliação.

Lembrei dessa cena da infância ao separar metade de meu armário para uso de minha namorada.

Nunca tive problema em ceder território. Prefiro oferecer as prateleiras. Não sou fã do vazio.

Retirar minhas coisas é me selecionar. Não sofro com o ato, não é nenhuma renúncia.

É a alegria de mostrar que a minha vida estava incompleta mesmo, que ela veio me preencher.

Enfrentei várias mudanças nos meus 40 anos.

Já partilhei quarto com dois irmãos, onde tinha direito a somente três gavetas para encaixotar a minha tralha. Como é que comprimia a adolescência em pequena cômoda? E ainda sobravam frestas para esconder os gibis.

Depois ganhei um quarto sozinho e espalhei as roupas e ocupei todo o compartimento. Tampouco compreendia como guardava tudo em três gavetas e em seguida faltava espaço com o armário inteiro livre. Aquilo me intrigava. Redobrei atenção nas aulas de Física, porém a poesia é que solucionou o desafio.

Na vida adulta, após morar sozinho e acompanhado, solteiro e casado, fui entendendo que tenho mais espaço na estreiteza. Eu me organizo melhor na generosidade. Eu me penso melhor quando divido. Eu me cuido melhor quando alguém está comigo.

Não tenho interesse em ganhar um closet, desfrutar de um quarto aos casacos ou aos sapatos.

Independência é conviver feliz dentro da intimidade.

A ambição é deixar que minhas roupas casem também com as roupas dela, que nada fique isolado e casmurro, perdido e avulso.

Hoje estiquei a blusa da namorada na cama.

Melhor sentir saudade na presença do que na ausência.

Vou fingir que estou passando roupa de novo.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 12/05/2013 Edição N° 17430

sábado, 11 de maio de 2013

CONTA DE NOVO


Foto de Leonardo Brasiliense

Se sua mãe conta a mesma história, não é esquecimento, é orgulho de viver.

Se sua mãe conta a mesma história, não é que ela está velha, é que você ainda não entendeu a mensagem.

Se sua mãe conta a mesma história, não custa ouvir de novo. Afinal, quando criança você sempre pedia para ela repetir a leitura dos livros.

Não vou oferecer um par de brincos para minha mãe, vou oferecer meu par de ouvidos.

Ouça minha homenagem ao Dia das Mães em comentário na manhã de sábado (11/5) na Rádio Gaúcha,
programa Gaúcha Hoje, apresentado por Jocimar Farina e Andressa Xavier:

quinta-feira, 9 de maio de 2013

PAGANDO AS CONTAS

Você é chinelão ou chinelinho?

Você paga para estar junto?

Satisfaz a sua companhia?

DRnaTV mostra os dedos dos pés.

A exibição aconteceu na noite de terça (7/5), na TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

QUANDO A AMIZADE É PARA SEMPRE


Arte de Eduardo Nasi

Nunca determino a origem das amizades. Os melhores amigos parecem que estão comigo a vida inteira.

Não guardamos o aniversário de encontro. Não faremos bodas de ouro, nem cobraremos presentes ou lamentaremos injustiça por lapsos.

Não decoramos a data do primeiro abraço, do primeiro riso, do primeiro porre.

A amizade tem uma memória alforriada. Diferente do amor, onde tudo gira em torno de estreias e contagens comemorativas, do namoro ao casamento.

Casal que não recorda do início acelera seu final. Já o amigo não tem tabuada e nascimento, é a benção da tranquilidade. Jamais telefona para recriminar, ou cruza informações para testar o nosso amor.

Apesar do despojamento, conquistar uma amizade não é fácil. Passa a existir de verdade num momento específico. Antes, despontava como esperança de cumplicidade.

O amigo se realiza quando não nos abandona no perigo e na dificuldade. Quando ele demonstra a mesma lealdade da alegria durante a tristeza.

Atravessaremos um portal para consolidar a afinidade, compactuar o sangue, justificar o cuidado. Daquele instante em diante, nada mais será necessário provar.

É uma manifestação de absoluta sinceridade que alçará o amigo a partilhar o resto de nossos dias.

Não teremos mais como quebrar os laços e desfazer o companheirismo.

Mário Corso é um dos meus escudeiros prediletos. Desde a infância.

Somos unha e carne, mafiosos, inseparáveis. Desde uma tardezinha de novembro de 1979.

Um por todos, todos por um.

Não lembro quando começamos a nos falar, mas conservo a visão nítida de quando começamos a nos admirar.

Na infância, nosso hobby principal consistia em pular muros e portões e roubar frutas no bairro.

Eu participava da turma mais velha, espécie de nanico, de anão de jardim, de mascote dos guris mais velhos da quarta série. Recrutado como mão mecânica para colher os galhos mais longínquos (qualquer bando que se prezava admitia uma criança em seus quadros de molecagem para trabalhos especiais, devido ao tamanho e leveza).

Quando invadimos a casa da madre superiora do Colégio Santa Inês, para desfalcar as tangerinas do seu quintal, ela me apanhou de surpresa na árvore. A desgraçada me puxou para dentro da casa pela janela. Fui sugado pelas suas mãos frias e raivosas.

Para quê? Meus colegas desapareceram em segundos. Ao me flagrar preso, escaparam rapidamente.

Eu tremia, chorava, não raciocinava, imaginava castigo na escola, repreensão familiar, humilhação na igreja.

Antevia que iria apanhar de palmatória.

Fechei os olhos ao pior.

Na hora em que a madre veio puxar minhas orelhas, a campainha tocou.

Era Mário Corso, meu amigo ruivo.

Ele retornou da deserção, não suportou me largar sozinho.

— O que quer, menino? — ela gritou.

Ele colocou inocentemente seu cabelo suado para o lado direito e respondeu:

— Estamos juntos!

Essas duas palavras soldaram nossa amizade para sempre. Não há quem possa estragar.




Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 7 de maio de 2013

SOLO SAGRADO DA AMIZADE

Arte de Toulose-Lautrec

Era um vizinho chato. Insuportável. Ranzinza.

Hilton.

Com nome de cigarro e de hotel.

Ao assumir o apartamento, fui brindado com uma carta de oito páginas por debaixo da porta, onde ele – o Hilton – explicava que não dormia devido à falta de mangueira do meu ar-condicionado.

Quanta solenidade. Por que não me chamou ou não mandou um bilhete? Oito páginas para relatar um pequeno incômodo é ócio, é carência espalhafatosa, é exercício literário.

Atendi ao pedido, e evitei a soberba de corrigir as vírgulas do texto.

Dois meses depois, ele reclamava do salto alto de madrugada usado pela minha esposa na época. Sim, qual é o problema? O problema seria se ela calçasse broxantes pantufas. Mas o pior é que não era minha mulher que incomodava, porém eu e as minhas botas argentinas.

Considerava o sujeito fresco demais, hipersensível, desocupado, com a tara de controlar os sons da casa dos outros. Com certeza, guardava uma vocação inata para síndico.

Não duvidava de mais nada. Em seguida, reclamaria que puxava a descarga forte, que tossia alto, que gemia estranho, que não deveria ligar o liquidificador antes das oito horas.

Cobrança excessiva gera paranoia, eu fazia questão de odiá-lo sem reservas e idealizava macumbas e unguentos pelo corredor do prédio.

Três meses depois, o encanamento de nosso rancor explodiu. Ele telefonou cobrando um vazamento no seu banheiro. Trocamos gritos e ofensas até descobrirmos a origem da infiltração longe de minha culpa e de sua responsabilidade – aconteceram avarias naturais da fachada externa do prédio.

Já não conseguia nem ser hipócrita e cumprimentá-lo no corredor. Não haveria conserto em nossa amizade. Jamais. Eu pensava nisso. Foi quando me apaixonei por Juliana em março.

Ela me disse que seu melhor amigo morava no segundo andar.

Que ironia.

Logo aquele insuportável.

Logo aquele ranzinza.

Ilton na verdade, sem o H, pois não era cigarro para tragar, muito menos hotel para oferecer hospedagem.

Minha namorada armou um jantar de reconciliação. Resisti, bati o pé com o salto argentino, terminei vencido.

Ilton mostrou-se educado e carinhoso. Um cavaleiro de rosto erguido. Se estivesse na Idade Média, seria um templário.

Não sofre com a espontaneidade. Abraça com força, chora e se emociona ao lembrar as reuniões dançantes com Keep Cooler. É engraçado e autêntico. Coleciona rolhas de vinhos como a gente, lê os mesmos livros, partilha medos iguais: quando pequeno temia mais perder a visão do que dormir no escuro.

Faltava-nos somente tempo para conversar – enfim via que somos parecidos, próximos, semelhantes. Eu o rejeitava por antecipação e cisma. Pela ideia de que vizinho irá nos incomodar um dia.

Ilton é hoje meu melhor amigo emprestado. Ele me deu um terço de presente com areia da Terra Santa. Veio com um bilhete:

– Pode pisar à vontade, é solo sagrado da amizade.

Vou rezar por mim. Para, na próxima vez, não ser tão preconceituoso.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 07/05/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17425

A POLIDEZ NÃO AJUDA A CONVERSA



Minha namorada Juliana me chamou atenção.  

Eu respondia “não precisa” em vez de “não quero”.  Era um cacoete cansativo. 

"Não precisa" sugere que você quer, mas não deseja incomodar. 

"Não precisa" é esconde-esconde, cabo de força. 

E o outro vai insistir. Vai oferecer de novo. Vai ficar sofrendo esperando confirmar sua vontade. 

Já o "não quero" é direto e não traz dúvidas. 

"Não precisa" repassa a decisão. "Não quero" decide. 

- Você gostaria de comer no restaurante japonês?
- Não precisa.

O que se entende? Que a pessoa está a fim, e depende de um empurrão, de um entusiasmo, de nossa alegre insistência. 

- Você gostaria de ajuda no trabalho?
- Não precisa.

"Não precisa" é quase um socorro, um pedido de ajuda, é um sim tímido. 

O "Não quero" desfaz incertezas, limpa a cena, 

- Você gostaria de comer no restaurante japonês?
- Não quero. 

Não há suspeita, não há incerteza. Acabou o assunto. 

- Você gostaria de ajuda no trabalho?
- Não precisa.

Melhor é usar o "não quero". Evita a teimosia chata, a incompreensão.

A polidez é a maior falta de educação.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (7/5) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina: 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A MÁQUINA RECEBE PAULO MARKUN

O jornalista Paulo Markun se ajoelhou na frente de Fernanda Montenegro em um aeroporto para convidá-la a participar do programa Roda Viva.

Hoje, ele deseja viver de escrever livros e fazer documentários.

A entrevista aconteceu na noite de terça (30/4) em A Máquina, da TV Gazeta

domingo, 5 de maio de 2013

PESCARIA COM A NAMORADA


Arte de Fraga

Deitado no sofá com a namorada Juliana, com as nossas pernas trançadas, fazia planos. Quando fingimos assistir televisão, é que conversamos sério.

– Vamos morar junto.

– Vamos casar na igreja.

– Vamos ter um filho.

– Vamos envelhecer lado a lado.

– Vamos pescar.

Neste momento, ela me interrompeu:

– Pescar? Por quê?

Juliana não estranhou nenhuma das minhas afirmações anteriores, bem mais sérias, para quem está namorando apenas há um mês. Aceitou com naturalidade comprometer sua vida comigo; o que achou esquisita foi a pescaria, numa completa inversão de expectativas.

Para os crédulos e os céticos, para os normais e comportados, pescar seria a única alternativa aceitável. As demais seriam vistas como ameaça, desatino, irresponsabilidade.

Demonstrar confiança na posteridade da relação é um gesto de pressão e sufocamento. É forçar a barra, anular a individualidade. Os passos afetivos devem ser miúdos e recalcados, se possível com o casal descendo as escadas segurando no corrimão.

Para a maioria, esse diálogo apressaria discussões, terminaria relacionamento e geraria debandadas de escovas de dente das canecas do banheiro.

Existe um pânico de ser espontâneo a favor do romance. Como se fosse uma maldição, como se o amor fosse uma promessa política vigiada pelos eleitores.

Muitos nem falam o que desejam para não serem cobrados no futuro. E perdem a chance de aprender a falar.

Juliana ofereceu um espetáculo de fé na gente. Suspirei e ri ao mesmo tempo, de feliz de dividir as sobrancelhas com alguém que não se amedronta em sonhar.

Porque não vejo problema algum em sentir medo da vida, mas sentir medo de sonhar é o cúmulo da covardia.

É a liberdade de querer, que ninguém pode nos tirar. Não planejar a relação para não sofrer só deixa o sofrimento mais despreparado.

Quando realmente amamos, nada é impossível. Nada é sobrenatural. Não resta o pânico da formalidade e do compromisso.

Não receamos firmar pactos, desenhar o futuro, elaborar viagens, confessar as fantasias dentro de casa.

Entre nós, o pudor não pode mandar. Quando tememos dizer algo, até o silêncio será incômodo.

A recompensa da convivência supera as fobias, e as aparências regradas.

Ainda vou convencê-la a pescar comigo.

Será difícil, porém consigo. Talvez leve uns dois anos.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 05/05/2013 Edição N° 17423

sexta-feira, 3 de maio de 2013

I WILL SURVIVE



Não gemer mais do que ela é o mínimo que deve fazer. É uma questão de decência. Uma etiqueta básica desde os visigodos. Uma gentileza inadiável.

No berço, o macho aprende a não ser espalhafatoso, a secundar o chocalho, a chorar baixinho, a não melindrar as cantigas dos móbiles.

É um mandamento inafiançável: durante a transa, não ultrapassar sua namorada na gritaria.

Controle-se. É uma regra cavalheiresca: puxar a cadeira, aguardar ela se servir e não fazer escândalo na cama.

O show é dela, amigo. Você é apenas um convidado, aquiete-se em seu lugar. Não se trata de disputa vocal, dueto, soletração.

Não há orgasmo que justifique exceção, que lhe garanta o direito de superá-la. Não se mexa muito, pois os braços chamam o canto. Mantenha a movimentação aeróbica básica (ou as pernas ou as mãos, evite a sincronia). Um pouco mais e estará cantando Gloria Gaynor.

Toda beldade entra em pânico quando o homem geme acima de 85 decibéis. Ela gela, acha que errou de quarto, de corpo, de época. Pira, surta, paralisa o vaivém para identificar o alarido invasor.

O susto desemboca em trauma amoroso, capaz de provocar frigidez e abstinência. O fenômeno é recente e os psicólogos não avaliaram os danos. Talvez ela saia correndo nua pela Paulista. Ou se converta para meditação de Osho.

A onda mecânica necessita ser discreta. Varão comportado geme na altura de micro-ondas, nunca de uma máquina de lavar e jamais de um aspirador de pó.

Não banque a estrela do aiaiai, a vedete do uiuiui, a Carmem Miranda da banana descascada. Não confunda ereção com seleção de musical da Broadway.

É grosseria ofuscá-la na intimidade, é falta de decoro erótico, é ciúme da vagina.

Ela pode usar cera quente, algemá-lo na cabeceira, recorrer ao fio-terra, chamar seus brinquedinhos para dançar, apontar uma lâmina em seu pescoço, lançar chicote em seu lombo, mas não se desespere. Morda a fronha se não aguentar, bata na madeira se o gozo irromper violento.

Vale apenas resmungar. Já latidos, miados e uivos estão na faixa de agressão ao ambiente - os vizinhos não toleram frescura e serão os primeiros a denunciar a poluição sonora ao zelador.

Mulher se excita ouvindo sua cadência melódica. O prazer dela cresce quando reverbera o timbre pelo espaço. A voz é seu espelho.

O papel masculino consiste em proteger a tranquilidade da audição, resguardar a diva dos impostores e atravessadores. Ela aguarda o eco do seu gemido, o retorno perfeito do palco.

Sexo a dois é ainda masturbação para a mulher. Ela não quer ninguém atrapalhando.




Minha coluna na Revista IstoÉ Gente
São Paulo, março de 2013, p. 68, Edição Nº 695

quinta-feira, 2 de maio de 2013

PALPITES SINCEROS

Bebemos as confissões da madrugada, a angústia sentimental dos insones e invadimos o consultório Quase Perfeito da Rádio Gaúcha.

Veja o DRnaTV  de terça (30/4), na TVCOM, diretamente dos bastidores do programa Brasil na Madrugada.