terça-feira, 31 de dezembro de 2013

NÃO É AMOR


Arte de Manet

Por que ela não conta? Por que ela não presta ocorrência na delegacia?

Todos acham um absurdo apanhar e não revidar publicamente.

Não é fácil se separar. Não é simples para muitas mulheres denunciar o companheiro.

Eu entendo a vergonha de quem suporta maus-tratos em casa.

A humilhação de apanhar do marido. De receber tapa ou empurrão e guardar para si. De levar soco ou pontapé e cuidar dos hematomas em sigilo.

Ninguém tem ideia de como essas pessoas sofrem.

Sofrem pela dor física, mas sofrem ainda mais pela esperança de que um dia seu homem vai se recuperar. E isso não acontece.

As mulheres que aguentam violência doméstica são solitárias. Absurdamente sozinhas. Loucamente desamparadas.

Perdem a paciência e a tolerância de quem poderia salvá-las.

Elas se isolam dos amigos, pois não têm mais coragem de disfarçar as histórias.

Elas se distanciam dos familiares porque nenhum parente admitiria a hipótese sequer de um insulto.

Morrem socialmente: enterradas vivas em suas próprias residências.

Apesar do calor excessivo, não podem usar vestidos e mangas curtas para não ostentar as feridas e os inchaços. Acordam de óculos escuros para se encarar no espelho. 

Colocam sua maquiagem a reparar os danos noturnos.

Para os colegas, estão constantemente caindo da escada e tropeçando nos móveis.

Para os filhos, fingem que não choram com um sorriso que não mexe nem as rugas.

Elas mentem no lugar do agressor. Mentem pelo medo de não ter outra chance de ser feliz.

Dedicam suas horas a zelar por uma farsa, a proteger um conto de fadas que existe na aparência, tentando salvar o casamento a qualquer custo.

Festejam as semanas sadias como milagres. Saúdam os momentos calmos como férias. Esmolam olhares de ternura para compensar o inferno.

Eu entendo as mulheres agredidas. Entendo, e dói entender.

É uma espiral de constrangimentos, que abole as defesas, que apaga a personalidade, que anula o temperamento.

São frágeis, quebradiças, carentes.

Atravessam um domingo inteiro procurando uma desculpa para continuar.

São as únicas que não enxergam que terminou o relacionamento, que não há jeito de recuperar o respeito.

Não são apenas cegas de amor, porém também surdas e mudas. O amor roubou todos os sentidos, todo o sentido de suas vidas.

Juram que foi uma exceção quando é a terceira ou quarta vez que a discussão desanda em briga.

Invertem a perspectiva do mundo: a tranquilidade é a exceção em sua rotina e se enganam que é a regra.

Juram que o marido não é violento, que há muita pressão do trabalho, que é efeito da bebida.

Explicam e justificam e argumentam o impossível, naquela mania de se convencer da pobreza para aceitar a miséria.

Ele se arrepende, ele chora, ele promete que não fará de novo, ele se ajoelha, ele manda flores, mas será reincidente.

Para essas mulheres que resistem em segredo, só tenho uma coisa a dizer: quem bate uma vez baterá sempre.

Apanhar por amor jamais melhora o amor.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 31/12/2013 e 01/01/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17660

domingo, 29 de dezembro de 2013

TÁTICA DE GUERRILHA (PARA HOMENS DISTRAÍDOS)

Arte de Fatturi

O que uma mulher mais reclama do homem é sua distração: esquece de observá-la, não valoriza os detalhes, não identifica surpresas e passa reto em datas importantes e comemorações amorosas.

Com objetivo de salvar casamentos e namoros, encontrei a saída do labirinto.

O homem deveria confessar que tem déficit de atenção já no primeiro encontro. Na verdade, déficit de atenção é um outro nome para egoísmo - ele só escuta o que quer e só faz o que deseja -, mas rebatizando o defeito terá uma nova vida sem atribulações e julgamento, sem críticas e implicâncias.

Tente, funciona perfeitamente.

Está começando uma relação, chame sua garota para perto, faça o olhar triste do Gato de Botas do Shrek, e puxe uma conversa séria:

— Antes de tudo, preciso expor algo, você tem o direito de não ficar comigo, eu entenderia, mas não desejo esconder nada: eu tenho déficit de atenção!

É óbvio que ela aceitará, todo mundo admite qualquer coisa que é dita na primeira semana de relacionamento (é a fase da tolerância e impunidade). Ela arregalará os olhos, lamentará a dificuldade, prometerá ajuda e não terá mais como cobrar absolutamente nada daqui por diante de seus lapsos e apagões. Será o paraíso fiscal, a redefinição mágica de sua rotina.

Você não reparou que ela cortou os cabelos, daí você diz:

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não lembrou que completam um ano de relacionamento, não comprou presente e flores.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você saiu com os amigos para beber, e não avisou.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não gravou quando ela avisou que não gostava de azeitonas e buscou servi-la.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não reconheceu o sogro de sunga e a sogra de biquíni.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você troca risos e bocas com uma estranha.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não notou que a casa está tomada de velas e que sua mulher dança sensualmente, e ligou a televisão no canal de esporte.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Mas, se ela se depilou e você não viu, por favor, não culpe o déficit de atenção, é o único caso que ele não pode ser usado. Vai voar um tabefe na sua orelha para voltar a ouvir. Ou para ensurdecê-lo de vez.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 29/12/2013 Edição N° 17658

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

ZORRILHO

Arte de Albert Bertelsen

Viajava de carro com a família. Meu filho me questionou que cheiro era aquele na estrada.

Era de zorrilho.

– Mas é ruim, né? – ele comentou.

Não achava ruim, apesar de surgir quando o bichinho se sentia ameaçado e em perigo.

Eu me alegrava com o cheiro. Significava que entrava em Uruguaiana. Finalmente vencia os 650 quilômetros de chão.

Abria os vidros para que o vento me trouxesse a lufada característica de ingresso na cidade, o odor vinha envolvido com o sol da manhã batendo nas plantações de arroz ao fundo.

A raposinha era o primeiro aviso que desceria em Uruguaiana. Meu pórtico emocional.

Minha infância voltava intacta com a nuvem do olfato: atravessar os trilhos do trem no inverno, quebrar o gelo do percurso de ferro até a escola União; tirar com os dedos a cal dos muros do Clube Ferro Carril; beber chimarrão na Praça Barão do Rio Branco com pipoca doce; acompanhar o desfile na Avenida Presidente Vargas.

O pai me levava para assistir à Califórnia da Canção. Funcionava como fonoaudiologia para mim. Sofrendo sérios problemas de dicção, ele me convidava para acompanhar as finais, pois consistia no único momento em que não tinha vergonha, perdia a timidez e cantava alto junto com milhares de pessoas. Eu, que mal falava, cantava no festival. Somente cantava em Uruguaiana. A calhandra de ouro morava em meus olhos.

Sempre o zorrilho como carteiro. Sempre o zorrilho oferecendo as boas-vindas.

Podia ser um cheiro ruim, mas era o cheiro de minha meninice. O cheiro de minha esperança. O cheiro de estar em família.

Era o cheiro da fronteira, da possibilidade de ouvir espanhol em Paso de los Libres e misturar idiomas.

Era o cheiro de minha solidão. Quando desistia de perguntar para a mãe se estávamos chegando e tentava descobrir pela paisagem.

Era o cheiro da cumplicidade. Os adultos não me poupavam de nenhum assunto, me reconheciam como homenzinho para falar de coisas sérias e de negócios.

Era o cheiro da amizade, quando conversei pela primeira vez com um cavalo.

Era o cheiro da minha independência, quando troteei pelas coxilhas sem ninguém me acompanhando.

Era o cheiro da diversão, quando colhia as bolinhas de soja caídas do vagão para arremessar nos colegas.

Era o cheiro de que não vivi em vão, de que me lembrava o quanto jamais deixei de ser um menino feliz. Feliz porque aprendi a repartir minhas tristezas em Uruguaiana.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 24 e 25/12/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17654

domingo, 22 de dezembro de 2013

JÁ ACONTECEU

Arte de Max Hermann Pechstein

Eles mal piscaram, mas já aconteceu a transa.

Ainda nem se conhecem, mas já aconteceu a transa.

Ainda nem se abraçaram, mas já aconteceu a transa.

Não beberam juntos, não dançaram juntos, não jantaram juntos, mas já aconteceu a transa.

Não houve nenhuma saudade, desconforto, receio de se perder e já aconteceu a transa.

Não houve nenhuma confissão, partilha de memória, declaração apaixonada, e já aconteceu a transa.

Ainda não mostraram o jeito de vestir, não ensaiaram a nudez, mas já aconteceu a transa.

Eles nem supõem se um é colorado ou gremista, se um é anarquista ou conservador, se é rico ou endividado, se dança rock ou pagode, se tem filhos ou não, se foram casados ou guardados, se têm amigos em comum, mas já aconteceu a transa.

Nada pode apagar o fato consumado antes dos fatos.

O olhar é premonitório, existe uma confiança por detrás do gesto que garante que já aconteceu a transa.

Não há como impedir a união, ambos se escolheram muito rápido.

Denunciaram o enlace ao mexer os cabelos, ao sorrir encabulado, pondo as mãos no bolso.

Foi uma provocação que vingou, foi uma graça que levantou o humor, foi uma cumplicidade que declarou o início.

É assim mesmo que acontece: definimos com quem teremos o envolvimento antes do envolvimento. A atração manda no futuro.

Não significa que vão namorar, casar, serem felizes, não há estabilidade garantida pelo desejo. A curiosidade eclodiu e suspenderá os pré-requisitos, os impeditivos, os critérios preventivos.

É o instinto definindo a ação, avisando o inconsciente que a transa já aconteceu.

A transa é uma lembrança que antecede o ato.

É uma determinação de gosto que impregna a palavra. A transa está no passado, mesmo quando parece uma possibilidade remota.

Eles não se tocaram, mas já se cheiraram, já se estudaram rapidamente, já se aprovaram, já facilitaram os caminhos.

Ainda nem sabem o nome um do outro, as convicções, os medos e desejos, mas já aconteceu a transa.

Ainda não têm noção se preferem sushi ou churrasco, se são melancólicos ou ansiosos, arrebatados ou inseguros, mas já aconteceu a transa.

Ainda não se adicionaram no Facebook, mas já aconteceu a transa.

Ainda não salvaram os telefones na agenda, mas já aconteceu a transa.

Definiram pelo olhar que vão transar. Só não marcaram a data.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 22/12/2013 Edição N° 17652

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

ALMA COMPLEMENTAR

De onde as mulheres tiram tanta energia?

Por que é difícil achar um homem que não tema a independência feminina?

Veja respostas em DRnaTV, exibido na TVCOM, na terça (17/12), com produção de Fernando Muniz.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

ME CHAMEM DE VOLTA QUANDO A CIDADE ESTIVER PRONTA

Arte de Juan Gris

Já é complicado viver numa casa em reforma, imagina viver numa cidade em reforma?

Se em nossa casa em reforma, a gente já se irrita, não aguentamos a falta de tranquilidade, as interrupções, o atraso, os pedreiros de um lado para outro, o orçamento quebrado; se em nossa casa em reforma, já ficamos loucos, possessos, nervosos, torna-se um pesadelo o descumprimento do planejamento inicial, queremos gritar, sair correndo, acabar o casamento, não conversar mais sobre material de construção; imagina, então, viver numa cidade em inteira reforma como é Porto Alegre?

Qualquer rua vira engarrafamento porque o corredor de ônibus está sendo remodelado; qualquer avenida vira tranqueira porque há uma obra a 500 metros; qualquer horário é sinônimo de atraso.

Parece que nada vai terminar. Nenhum viaduto, nenhuma passarela, nenhuma construção. Um desespero em câmera lenta.

É atravessar o natal e o ano novo sem nenhuma vontade de comemorar. É receber o carnê do IPTU e quase comer o papel com ketchup e mostarda.

Estamos muito próximos, todos nós, porto-alegrenses, de um colapso nervoso.

Há uma anedota envolvendo o poeta Mario Quintana que ilustra o nosso terror. Quando visitou São Paulo, o escritor ficou assustado com o excesso de obras. Daí disse:

- Me chamem de volta quando a cidade estiver pronta.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (17/12) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

A MULHER FIEL

Arte de Joaquín Sorolla

Minha mulher permaneceu quatro dias descansando em Búzios.

Eu me encontraria com ela no final de semana.

Quando cheguei ao litoral fluminense, apareceu na porta da pousada morena, radiante, com os cabelos loiros quase brancos, um loiro diáfano. Era outra, nativa, contrastando com minha brancura amadora.

Eu, um branquinho com cravo; ela, um brigadeiro com granulado. Eu, bolero; ela, samba.

Uma diferença absurda. Ao seu lado, era mais um turista americano. Todos se aproximavam de mim falando inglês. Alguns até elogiavam meu português.

Não tinha saída, nem adiantava convencer do contrário. Faltava somente o chapéu panamenho e camiseta larga para entregar minha origem estrangeira: branquela desde a raiz dos pés.

No momento em que minha esposa pediu para passar protetor em suas costas, já ancorados na praia de cadeirinhas, identifiquei uma queimadura. Enquanto a pele seguia uniformizada, bronzeada, com a cor de café importado, ali havia uma região vermelha, doída de luz, descascando antes da hora.

Perguntei o que tinha acontecido.

– Não se cuidou?

Ela meneou a cabeça, envergonhada:

– Como estava sozinha e você não veio comigo, não pedi para ninguém passar protetor em minhas costas. Era uma infidelidade.

Eu amoleci de ternura, como se estivesse na terceira caipirinha sob o sol.

Suas palavras foram açúcar e cachaça. Sucumbi diante da declaração de amor.

Sua timidez era cuidado comigo. Katy não quis insinuar nada de errado solicitando que outro tocasse em sua pele. Vá que homens e mulheres pensassem bobagem, confundissem favor com oferta.

Ela arcou com as consequências em nome do amor. Poderia ter pedido uma gentileza para a camareira, para o porteiro, para as atendentes das tendas à beira-mar.

Mas não. Não correu riscos. Suportou a solteirice pela integridade da relação.

Não há mulher mais fiel. A que se queima para não gerar dúvidas, a que aguenta a lealdade na ardência, reta e firme, sem olhar para os lados.

Mulher fiel não tem costas. Como um anjo. Voa no céu anil da paixão.

Dá gosto de olhar para o horizonte marítimo. Dá vontade de acreditar em casamento.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 17/12/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17647

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A PARTE BRANCA DO BIQUÍNI

Arte de Fritz Bleyl

O verão é perturbador.

A nudez da mulher muda com a praia e a piscina.

Ela passa a ter uma calcinha na pele. Quando transar, terei duas calcinhas para tirar.

Se uma já era boa, duas são insuportavelmente excitantes. É a tara masculina saciada em dobro.

Você vai baixar a primeira de renda com as mãos e outra com os olhos.

Preste atenção, aproveite a temporada. Só nos meses quentes para contar com strip-tease duplo de sua esposa.

Irresistível a marca de biquíni que ela deixa para mim. Sua pele branca somente reservada para minha adoração.

É o mapa do pecado, é a geografia do desejo, é o país da lascívia.

Fortalecendo a morenidade de minha mulher, o sol me ajuda, é meu cúmplice de alcova. O sal e o mar colaboram colorindo o corpo e me separando a tez imaculada.

Abençoo o contraste. A parte branca do biquíni significa um presente marítimo, uma concha inteiriça e de som infinito que erguemos do rebuliço das águas.

Eu entendo e respeito quando ela fica horas torrando na cadeira. De bruços, de frente, de lado, seguindo os raios com a lealdade dos reflexos dos óculos escuros. Não reclamo do seu isolamento, não digo que é perda de tempo, não vejo como imolação, não recrimino com piadas sexistas, não zombo da dedicação.

Pelo contrário, agradeço sua generosidade comigo. Levo cerveja gelada, caipirinha e protetor reserva para prolongar seu tempo de exposição. Busco toda coisa que deseje. Ela tem direito a sonhos de grávida, a excentricidades de grávida. Não considero nenhuma regalia absurda perante o prazer que encontrarei de noite.

Eu me torno seu cooler, seu isopor, seu guia do deserto, seu pajem. Altero a direção dos ventos, sopro tempestades para longe, abro frestas nas nuvens com o poder do pensamento. Combato o que pode atrapalhar seu dia iluminado e claro.

Conheço o valor de minha recompensa, prevejo a extensão da dádiva.

Não é o bronzeado que me alucina, é onde ela não se bronzeou. É onde ela se guardou para mim.

A parte branca do biquíni vale qualquer esforço, qualquer sacrifício.

A parte branca do biquíni é uma cobiçada ilha após a natação dos braços.

Sem querer esnobar, eu entro onde nem a luz tem permissão.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 15/12/2013 Edição N° 17645

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

VAMOS BRINCAR DE GANGORRA, MEU AMOR?

Arte de Antón Lamazares

Quando um está mal, o outro deve estar bem.

Quando um está irritado, o outro deve ser paciente.

Quando um está cansado, o outro deve encontrar disposição.

Quando um adoece, o outro deve mostrar saúde.

Quando um se envaidece de razão, o outro deve ser humilde no cuidado.

No casal, as fraquezas não podem convergir. Não podem ocorrer simultaneamente.

Se vê que sua parceira explodiu, escolha um momento distinto para desabafar e reclamar. Recue de sua catarse. Deixe para o dia seguinte. Ela nem irá ouvi-lo no acesso de cólera.

Quando os dois decidem ser a parte mais fraca do relacionamento, os laços sucumbem.

Não podem ocupar o mesmo papel, o mesmo script. Só há vaga para um protagonista em cada crise. Alguém terá que ser coadjuvante. Dois vilões no mesmo filme geram divórcio.

A alternância é o segredo da convivência. Mudar de lugar sempre, analisar quem mais precisa e ceder se for necessário.

O que traz estabilidade é a gangorra: quando a mulher cai, o homem estende o braço, quando o homem vacila, a mulher acode.

A separação acontece quando duas chagas conversam procurando mostrar qual é a mais funda. É quando duas feridas travam uma guerra buscando sangrar mais, e nenhum dos lados estanca a própria carência.

O sofrimento acentua o orgulho, a dor agrava a cegueira, a ansiedade de resolver logo a discordância apenas abre a porta para o fim.

É uma disputa do desespero, e o casal se afoga nas mágoas. Não haverá sequer um salva-vidas acordado.

Ainda que sobre paixão, ainda que reste confiança, nada segura o momento em que os dois coincidem em enlouquecer. A loucura exige troca de plantão.

O casal é capaz de destruir uma história linda e promissora por uma noite de fúria.

A esposa e o marido se transformam em crianças, e crianças abandonadas em casa berrando e com medo. Tentarão gritar alto para chamar os vizinhos e denunciar os maus-tratos. E vão se indispor e se ofender tanto, e vão se provocar e se agredir tanto, que depois é difícil cicatrizar.

Um tem que ser adulto na hora do pânico. Um tem que ser responsável. Um tem que ser forte o suficiente para preservar as fraquezas do amor.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 10/12/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17640

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

VERDE NÃO É ESPERANÇA, É DESESPERO

Arte de Macke

Não sou o sedutor hortigranjeiro, aquele que cultiva temperos para impressionar a mulher. Faço o tipo perdido no setor de verduras do mercado. Não diferencio alface da rúcula do radite. Preciso olhar a legenda. E ainda fico em dúvida se devo pesar ou não. Entro em pânico diante das cestas, ainda mais agravado com a entrada de produtos orgânicos e sem agrotóxicos. São centenas de opções. Nunca pego a certa, a exata, a solicitada pela lista feminina. É um detalhe que me escapou, que não reparei. Se era alface americana, compro a crespa. Se era a frisada, levo a lisa. Se era a mimosa, tomo a romana. E isso quando não é a roxa.

Eu pensava que alface era alface, e ponto. Nunca é. Sempre existe uma subcategoria para provar que sou distraído e que não tenho cura.

Uma vez tosco, sempre tosco. De verde em minha vida chega o chimarrão.

Distinguir entre agrião e espinafre é tão difícil quanto comprar absorvente para esposa em farmácia. Digo sim para as expedições verdes, mas sofro muito para achar.

O que me salva de não zerar a prova é hortelã, pois o cheiro é gritante, não tem como errar.

Na última semana, excedi as expectativas. Pedi uma pizza no fim da noite. Busquei sair da tradicional calabresa e experimentar novos sabores. Optei por escarola.

Não sei o que o nome me proporcionou, foi uma sensação agradável de independência. Escarola lembrou algo chique, lembrou alcaparras, lembrou amadurecimento intelectual. Era o momento de crescer na etiqueta, dispensar o refrigerante litrão para abrir um vinho chileno.

Solicitei uma grande de escarola.

Depois de uma hora, o que aparece é uma pizza coberta de folhas. Não enxergava a massa. Um labirinto de Nova Petrópolis em cima da mesa. O time do Juventude em rodelas.

Não era pizza, mas contrabando.

Não era pizza, mas toda a salada que recusei na infância.

Para quê? Liguei no ato para a pizzaria para reclamar que trocaram meu pedido.

Expliquei que veio uma pizza de alface. Jamais chamaria uma pizza de alface. Não estava a ponto de me matar ou me converter para a magreza.

O atendente explicou:

— Olha, querido, a pizza de escarola é feita de mussarela, molho, azeitonas e escarola.

— Sim, então o que houve de errado?

— Escarola é escarola!

— Ah, bom!

Entendi o que significava a cobertura, me encolhi e desliguei. Fui apresentado, da pior forma possível, para a nobre representante da família das Asteráceas.

A escarola é rica em vitamina A, B2, B5, e gafes masculinas.

– Chegar atrasado ao arrependimento. O amor é pontual. E o perdão cansa de esperar.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 24/11/2013 Edição N° 17638 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

SAUDADE A DOIS

Arte de Alexandre Cabanel

A saudade tem prazo de validade.

Não pode permanecer muito tempo guardada. Não pode permanecer muito tempo não sendo correspondida.

Depois de aberta e fora do convívio, assim como o leite, a saudade azeda. E não há memória refrigerada para conservá-la.

Quando passa da hora, aquela falta ansiosa e comovente é capaz de se tornar ironia e sarcasmo.

O suspiro se transforma em ofensa – nos enxergaremos tolos e burros por confiar cegamente em alguém e esperar à toa. Reclamaremos nossa idiotice por termos feito uma vigília em vão, por termos esquecido de viver.

Já não queremos que o outro volte, já desejamos que ele nunca mais apareça em nossa frente. Violentaremos as lembranças, fecharemos a reza.

A ternura de antes será trocada pela raiva de não ser atendido. Mudaremos a personalidade de nossa conversa, de doce para ácida. Pois o segredo (a saudade é um segredo!) que nos alimentou durante meses não fora respeitado.

Infelizmente, a saudade apodrece.

Quando deixamos de pedir a presença para cobrar a ausência. É sutil o movimento. Toda a atenção dedicada ao longo de um período começa a ser vista como desperdício. Não aconteceu retorno das juras, nem o estorno das expectativas.

Você mandou centenas de mensagens, renunciou saídas com amigos e bares, teve uma vida discreta e fiel, só para honrar uma despedida, e percebeu que, no fim, sempre esteve sozinho na saudade.

Saudade é como o amor. Perece quando não é a dois.

Aliás, quando a saudade não é a dois, deixa de ser saudade para se descobrir solidão.

A saudade é o que guardamos do amor para o futuro. É o que deixamos para amar no futuro.

Nada dói tanto quanto um amor que não vingou após os cuidados do plantio.

Nada dói tanto quanto a saudade que envelhece, uma saudade que definhou pela indiferença, que não foi valorizada pela nossa companhia, que não desembocou em festa.

Nada dói tanto quanto promessas feitas gerando ressentimento.

A saudade não é eterna. Acaba quando percebemos que o amor era da boca para fora, que a urgência era interesse, que a necessidade era falsa.

A saudade é uma esperança de amor. Precisa ser consumida rapidamente, não mais que três meses. Senão, nos consome e nos estraga.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 03/12/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17633

MÉTODO BELA ADORMECIDA

Arte de Frank Auerbach

O que atormenta o homem é a capacidade da mulher dormir logo em seguida de uma discussão de relacionamento.

Ela puxa a briga no quarto, você vai respirar um pouco e buscar um copo d'água, volta e ela já está dormindo. Como ela conseguiu sair da fúria para o sono em alguns minutos?

Ela deixou o embrulho, o mal estar, de presente para você. Terá que se resolver sozinho, inventar um modo de se acalmar.

Ela agora dorme e você ficou com as palavras trancadas na garganta.

É um grande método das mulheres de forçar nossa reflexão e testar nossa paciência.

E não ouse acordá-la, senão ela vai se encher de razão e xingar sua grosseria.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (3/12), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

terça-feira, 26 de novembro de 2013

QUERO UM FILHO CONTIGO

Arte de Gina Pellón

Eu compactuo com extremismos emocionais. O amor é extremista. O amor é tudo ou nada, é muita briga, é muita declaração, é muito do muito.

Só confio em parcelamento de contas, jamais em crediário do sentimento. No amor, pago mais do que à vista, faço questão de pagar adiantado.

Se, no meio da transa, minha mulher diz que deseja ter um filho comigo, fico ainda mais excitado. Não vou broxar, não vou puxar discussão, não vou sair de perto, não vou entender como uma loucura. O pedido intensifica o arrebatamento, acelera as pernas, redobra o fôlego.

A frase é meu afrodisíaco, meu Viagra, meu Nirvana. Estalo os ossos das costas, estreio a boca.

“Quero um filho contigo” é um apelo para perder as reservas, os pudores, os medos; é quando o casal atinge a fé no relacionamento, é quando a esperança deixa de incomodar, quando os dois são um só e não fingem bom senso.

Não vejo nenhum problema em ter mais crianças, se posso sustentar e cuidar. Para mim, o futuro nunca foi um adiamento, o futuro é um convite.

Devo ser estranho, realmente um tipo incurável. Adoro quando minha mulher me confidencia no ouvido que deseja um filho comigo. É mais do que eu te amo, é eu te amo agora e também te amarei depois em nosso filho.

Nosso cheiro muda com a promessa, o corpo se incendeia, as palavras ganham ênfase, a respiração rejeita a paz.

Devo ser muito tolo e romântico, porém não me enervo com a súplica, eu me entrego ainda mais. Não sou um homem preventivo, que deixa de viver para evitar o pior. Vivo o dobro para chamar o melhor.

Tenho uma única vida para acertar, e há pouco tempo. Tenho uma imensa paixão pela minha mulher, e há pouco tempo.

Meus amigos me qualificam de burro, que eu precisava ser mais cauteloso, que peco pela ansiedade, que tomo decisões sem avaliar as consequências, que filho é uma trabalheira, que é sinônimo de privação e responsabilidade, que é para ir com calma na relação. Mas quem ama já prevendo pensão merece mesmo se separar.

Troco os pés pelas mãos de propósito, para segurar o amor com firmeza. Eu quero sempre ter um filho com minha mulher.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 26/11/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17626

COLETIVATION MTV

Confira minha participação no programa Coletivation, da MTV, com Fiuk e Patrick Maia, falando sobre relacionamentos e poesia. O programa foi ao ar na segunda (25/11).


NOSSA VIDA

Arte de Cy Twombly

Nada substitui a nossa vida. Por mais pequena que seja, ainda é a nossa vida.

Escrevemos "nossa vida" e já sentimos orgulho. Tente.

A falta de confiança nos leva à inveja.

As enquetes e testes das revistas femininas sempre pretendem dizer que a nossa trajetória está errada, da necessidade de modificar logo o relacionamento antes que seja tarde, esquentar a intimidade, aquecer os jogos do casal, viajar e exigir caprichos e cuidados de nosso parceiro.

Ninguém nos dá motivos para permanecer do jeito que somos, percebeu?

Há um interminável apelo a mudar o cabelo, mudar de roupa, mudar de marido, mudar de esposa, mudar de casa, mudar de hábitos, mudar de personalidade.

Se a relação não dá certo, é que faltou se transformar. A rotina invariavelmente é a culpada. O sexo decaiu porque você não aprendeu dança do ventre. Seu par se interessou por colega de profissão porque você não ampliou o repertório de posições sexuais. Não manteve o casamento porque não trocou o cardápio à base do feijão, arroz e massa e não investiu nas iguarias afrodisíacas da Tailândia. 

É sempre alguma coisa que não foi feita, criando uma culpa invejosa, a ponto da esposa ou do marido concluir: “Todo mundo faz, menos eu”. 

Somos condenados a procurar “o tempero” do relacionamento enquanto deixamos a comida queimar. Leia-se tempero tudo o que não se realiza. Nosso modo de puxar conversa é equivocado. Nosso modo de brigar não é o ideal. Nosso modo de lidar com os filhos complica a independência amorosa. 

Se estamos felizes, estamos desinformados. Há uma exigência para se atualizar com dicas e truques, sob a ameaça de que a concorrência (solteiros e solteiras) está preparada. 

Não há saída. A paranoia se infiltra na paz ou na guerra. Alimentamos uma permanente insatisfação, uma rejeição premeditada. E cobramos de nossa companhia uma perfeição impossível.

A impressão é que deveríamos estar em outro lugar, em outra biografia, que alguém roubou a nossa história e desfalcou nossos prazeres.

O problema que identificamos é simples: não damos valor para aquilo que somos, para as próprias experiências do casamento. Não cuidamos do que temos.

Desejamos um armário novo, não apenas uma roupa. Não queremos menos. É tudo ou nada.

Não enxergamos as delicadas novidades dentro dos hábitos. Subestimamos as variações da correnteza diária. Ganhar uma nova peça é poder arrumar as antigas, reencontrar combinações e reavivar acessórios.

A ambição enfraquece os significativos e discretos avanços.

Cansei da futilização do amor. Amor é essencial, é tão importante quanto o orçamento doméstico ou pagar as contas. Amor é economia. É cuidar com elogio para evitar a falência. É zelar pelo patrimônio das palavras para ter o que lembrar e falar.

A mulher fica a responsável por compreender e salvar a relação. É uma infantilização do homem. Em vez de chamar para a cumplicidade, a mulher aproveita e fortalece o preconceito, antecipando que ele não se dispõe a debater os rumos da casa, que não gosta do assunto, que nem vale a pena, que terminará por debochar e chamar de ridículo. Será que não é teimosia? Ou preguiça para rebater as discordâncias? Será que não é apenas a vontade de decidir sozinha? 

Talvez não seja o homem que boicota a intimidade, mas a mulher que não tolera o retrabalho de uma segunda opinião.

Um exemplo é quando o marido decide ajudar nas tarefas domésticas, após longa insistência da esposa. Ele vai limpar o fogão. Fica uma hora passando esponja, areando, procurando brilho metálico. Quando termina, a esposa não perde a chance de mostrar que ele é incompetente para aquilo:

- Você está confundindo o fogão com carro? Não sabe limpar.

Finalmente, quando seu parceiro atende seu chamado, em vez de animá-lo a prosseguir em novas oportunidades, trata de castigá-lo como um filho desobediente. Uma hipótese é que a mulher tem dificuldade de repartir as atividades porque as coisas não serão feitas como ela costuma arrumar. É óbvio que não. Então, ela ordena: 

- Deixa que eu faço. 

“Deixa que eu faço” é o equivalente a concluir “Você não serve para nada”. E ele não se candidatará a atividade novamente para evitar humilhações. O homem terá que cozinhar mal para cozinhar bem, terá que lavar superficialmente as roupas para entender a arte da espuma, terá que varrer pelo centro até localizar as sujeiras dos cantos. 

O que não acontece é suportar o período de adaptação do voluntário. Ansiamos que acerte de primeira, e sem vacilação. A esposa pretende que ele colabore, porém não pretende perder tempo ensinando. 

Esqueça o conto de fadas por um momento. Encontrar alguém é fazer por merecer, não é deixar que o relacionamento se faça sozinho.

Localizar o par ideal é fácil, difícil é suportá-lo.

Vem a convivência e estraga a telepatia do início: ele tem mania de palitar os dentes, ela usa calcinha cor de pele; ele ama a solidão mais que a própria vida, ela deseja filhos; ele toma cerveja, ela é adepta do suco natural; ele joga futebol, ela consulta a cartomante; ele sonha em montar negócio próprio, ela idealiza meditar em centro budista; ele espera assistir corridas em Interlagos, ela torce para um dia ver o grupo de balé Bolshoi.

Por um tempo, durante a paixão, acreditamos ter encontrado o perfil sonhado. Mas paixão é férias, amor é trabalho.

Amar é se esforçar o dobro para permanecer junto: como conciliar as vontades? Como organizar as doutrinas? Como parar de adivinhar o desenlace futuro?

Para fazer um matambre recheado, precisamos de linha de costura; para assar o peixe na brasa, dependemos de papel alumínio; para a longa vida do motor, só trocando o óleo a cada cinco mil quilômetros.

É mais feliz quem compreende que estar triste é parte natural da vida. E quem compreende essa simplicidade, não precisa mais vencer sempre. 

A vida exige ciência. A ciência de conviver nada tem a ver com truques visuais: meia-calça de seda, cinta-liga, cueca boxer branca. Os efeitos especiais ajudam a formar um clima agradável, entretanto, não garantem o desempenho emocional. 

A ciência de conviver depende da coragem, isso sim. Coragem de defender o amor. A coragem é o verdadeiro ingrediente secreto, a pimenta dedo-de-moça do acarajé, o leite condensado do brigadeiro. 

Salgado, doce, coragem.

É quando não importa mais quem colocou a bola em campo: todos podem jogar.

É quando não tem diferença nenhuma definir quem errou, mas quem se prontifica a consertar.

É quando o senso de justiça cede lugar ao apelo da união.

É quando o ímpeto de estar bem juntos supera a ansiedade de dominar e ter razão.

É quando a insegurança larga a intolerância e entende o improviso e a limitação de cada um.

É quando a coragem aparece. Porque saberemos que dependeremos para sempre daquela pessoa para assumir a própria individualidade. Amar, portanto, não é mudar, é se aceitar.

Amamos para que o outro nos ajude a não apagar aquilo que somos. É certo que esqueceremos um dia, entraremos em desvalia, desconheceremos nosso tamanho, mas o outro nos lembrará do que já foi feito e do que necessita ser feito. 

Amamos para que a nossa vida nos seja devolvida de repente. O marido ou a esposa é a chave reserva de nossa memória. Nosso backup. 

Melhor do que confiança no relacionamento é coragem.

Coragem para aceitar alguém de volta. Coragem para perdoar o erro e a fraqueza. Coragem para assumir o que o coração anseia, apesar da aparência e dos outros.

Coragem é reconhecer o medo e seguir adiante mesmo assim.

domingo, 24 de novembro de 2013

O QUE TIRA UMA MULHER DO SÉRIO?

Arte de Alphonse Mucha

– Receber um beijo um pouco mais longo e concluir que ela quer sexo e ir descendo a mão;

– Deixar as tampas abertas dos potes;

– Elogiar pelo motivo errado: gostar do vestido que ela usa há três anos ou confundir a camisola de seda com roupa de sair;

– Não desembaraçar as peças antes de pôr na máquina;

– Não expor o que deseja fazer no final de semana;

– Nunca controlar a data de validade dos produtos na geladeira (não somente no supermercado);

– Debochar de tudo, não ter limite para a piada;

– Dizer que ela está ficando parecida com a mãe;

– Responder ok no fim de uma briga.

– Acreditar que as mentiras pequenas não são mentiras;

– Alterar o horário de um encontro e deixá–la esperando;

– Começar conversas paralelas com amigos e não explicar o que está falando;

– Rir do nada e responder que é nada;

– Submetê–la a reverenciar seu churrasco todo domingo.

– Demorar de propósito a retornar um torpedo ou uma ligação e responsabilizar o excesso de trabalho;

– Não trocar as cuecas da gaveta;

– Pedir para ela cozinhar com a justificativa calhorda de que “ninguém faz aquela comida como você”;

– Concordar rápido por preguiça. Dizer o que ela quer ouvir, não dizer porque acredita;

– Achar que declarar eu te amo uma vez ao dia é suficiente;

– Avisar que ela está em TPM fora do período da TPM;

– Esconder meias sujas nos tênis;

– Fugir das respostas objetivas;

– Armar festa com amigos em casa logo depois de uma briga;

– Pedir ajuda para procurar o que perdeu;

– Justificar em vez de assumir a culpa;

– Trocar de canal enlouquecidamente no momento do comercial;

– Disfarçar a falta de vontade na avareza. Aceitar participar de um passeio e reclamar de qualquer coisa, do preço do estacionamento ao preço do cinema;

– Fazer massagem nas costas com uma única mão, com aquela disposição de doente terminal;

– Regredir a dicção na presença da sogra;

– Almoçar na casa da família e sestear enquanto ela tem que entreter os sogros;

– Dirigir trocando música da rádio e com o celular no ouvido e ainda xingar os outros motoristas por distração;

– Nunca pensar duas vezes antes de ter ciúme e cometer injustiças;

– Pegar a lixa preferida de unha dela como material de construção;

– Isolar–se com o videogame para esfriar a cabeça, e jamais regressar ao convívio;

– Passar o telefone com alguém que ela nem tem intimidade;

– Chegar atrasado ao arrependimento. O amor é pontual. E o perdão cansa de esperar.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 24/11/2013 Edição N° 17624 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

A ORELHA DO EDUARDO

Arte de James Rosenquist

O melhor antídoto para a discriminação é a turma unida.

Quando os colegas se somam para uma competição, o bullying morre.

Todos têm importância: aquele com dificuldades de matemática recebe ajuda dos nerds, os nerds ganham aula de dança das meninas, os tontos adquirem esperteza, os malandros se regeneram em sensibilidade.

Os atritos de convivência são contornados pelo espírito coletivo. O grupo esquece as desavenças pessoais e valoriza cada um dos temperamentos da sala.

Não há deboche interno em nome de uma causa externa. Não há facções ou panelas em favor de um objetivo em comum.

Quando adolescente, minha turma participou de uma gincana entre as escolas de Porto Alegre.

Os rancores desapareceram no ato. Como a disputa elaborava charadas e pedia urgência nas respostas, descobríamos habilidades antes inimagináveis nos nossos colegas. Eu não sabia que Mariana entendia de nós em cordas (seu pai era oficial da Marinha), eu não sabia que Antônio dominava potência e motor dos carros, eu não sabia que Aline conhecia trilhas ecológicas no Morro do Osso. Nossos preconceitos ruíram pela necessidade de resolver as questões. Ouvíamos ideias e sugestões, desprovidos de censura.

Não vencemos, mas nos unimos. A derrota também virou uma comemoração em equipe.

A emoção criou o milagre do entendimento: pôr-se no lugar do outro para sentir na pele a diferença.

Eduardo representou nossa transformação. Tinha um problema facial, uma longa queimadura na sua orelha. A orelha mal existia. O rosto direito era perfeito e simétrico, enquanto o lado esquerdo apresentava um rebaixamento grave.

Sara, durante a despedida dos jogos, no momento em que a gente se abraçava e lamentava o resultado, caminhou na direção de Eduardo, que estava retraído numa cadeira do fundo. Ela segurou a face dele com as mãos e beijou – sem nenhum nojo – sua orelha derretida. Um beijo terno, doce, honesto. Podíamos escutar o pressionar dos lábios, nos viramos para admirar a cena, perplexos com a atitude imprevisível (Eduardo aguentava o desprezo, a mais severa discriminação na escola; ninguém encarava sua fisionomia, por medo).

Naquela hora, nunca mais vi na vida alegria igual. Uma alegria de família.

Experimentamos o riso da cumplicidade, que é mais delicioso do que o riso do deboche.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 19/11/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17619

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

SERVIU O CHAPEUZINHO?

Arte de Miró

Jamais soube receber presentes. Ou ser amado.

Sim, sou incompetente. Sou um fracasso para acolher afeto. Eu me antecipo para não precisar encarar minha timidez de ser amado. Eu prefiro amar do que ser amado. Posso ser perfeito para planejar surpresas e ser romântico e adivinhar desejos de minha mulher. Mas receber carinho me põe em desespero. Terei que agradecer, como? Terei que agradecer e superar o que me foi dado. Entro numa competição diabólica, numa disputa de vaidades. Para não contrair dívidas amorosas, para não ficar atrás. Não há problema em assumir o papel de credor, sofro horrivelmente na figura de devedor. 

No fundo, acho que não mereço ser amado. E amo o dobro ou o triplo para provar minha tese. Para que o próximo diga: chega!, e se afaste. 

A única festa de aniversário que ganhei em minha infância, nenhum convidado foi. Pedi para a mãe congelar a torta para o próximo ano. Jamais me recuperei do trauma. De ver as cadeiras vazias em torno da mesa repleta de brigadeiros, branquinhos e salgados, preparados ao longo de duas semanas. 

Nada como um trauma para reservar uma mesa no inferno. Não me permitia ser feliz em nenhum aniversário. Sempre boicotava, conspirava, maltratava quem tentava me alegrar. Queria passar a vida inteira tirando proveito do remorso, tirando lucro do coitadismo. A cena da infância vazia e abandonada formava uma fortuna imbatível. Não ser amado é um luxo, é uma maneira de dizer que ninguém presta, que ninguém consegue me contentar, que tenho o direito (e o dever) de ser ranzinza e não respeitar a felicidade alheia. 

Descobri que era um desamador. Até o sábado de meu aniversário de 41 anos. Quando minha mulher Katy preparou uma festa surpresa sem que imaginasse qualquer detalhe e sinal. Cheguei em casa do trabalho e lá estava mais de 40 pessoas gritando, corneteando, aplaudindo no escuro assim que abri a porta. Fui arremessado numa piscina de bolinhas posta dentro do apartamento. Recebi banho de champanhe, de espuma. Havia painéis e balões temáticos do Wolverine, meu heroi predileto. O bolo não durou nem uma hora. Circulei pela festa como se fosse o enterro da mágoa, a cremação das serpentinas. Estava recebendo amor de todos. Ainda encabulado. Ainda assustado. Ainda desconfiado. Mas recebia. Fui recebendo. Fui aprendendo a receber, desajeitado e finalmente espontâneo. A cada conversa, a cada beijo na boca da esposa, a cada brincadeira. 

Vi que o trauma da alegria é maior do que o trauma da tristeza. Muito mais inesquecível. Agora posso emprestar meu nascimento para os outros.

Publicado na Revista IstoÉ Gente
Colunista
Novembro/2013 
Ano 13 Nº 703

domingo, 17 de novembro de 2013

AS MENTIRINHAS PERVERSAS

Arte de Fatturi

Protegemos nossas pequenas mentiras em vez de cuidar do relacionamento.

— O que está pensando?

— Por que fez aquilo?

— O que deseja?

Não respondemos o que vem à cabeça, filtramos o que seria mais importante falar, o que daria mais ibope, o que nos fortaleceria naquela situação.

A vontade de agradar é maior do que a vontade de ser verdadeiro.

Não aceitamos nossas imperfeições, e mascaramos os defeitos com imprecisões. A vergonha de errar nos leva aos grandes erros.

Sem querer, já estamos mentindo. E mentimos porque a verdade não impressiona. A verdade não tem roupa de festa. Ela fica abandonada enquanto exercitamos as mentirinhas. Não nos sentimos culpados, pois ninguém conhece a nossa verdade.

Batemos o pé por bobagens, compramos brigas desnecessárias, geramos discussões à toa.

Usamos a toalha do outro por engano. Pode estar encharcada e sustentamos que não foi a gente. Comemos um doce reservado na geladeira e somos capazes de jamais admitir a autoria e desfazer o mal-entendido. Quebramos um objeto na sala e fingimos que ele sumiu de repente.

Era algo simples de ser assumido, e deixamos passar. Criamos uma avalanche a partir de uma pedra de gelo.

Não confessamos o que aconteceu, e o costume ainda é incriminar quem nos chamou atenção, invertendo o jogo: - Não acredita em mim?

Trocamos a espontaneidade pelo orgulho, a franqueza pela persuasão. Subestimamos quem nos escuta ou não nos julgamos dignos do que pensamos. Planejamos o nosso depoimento para soar natural. Premeditamos nossa conduta para receber somente elogios. Ao evitar os castigos e reprimendas, evitamos também a autenticidade.

Uma mentirinha é logo esquecida em nome de uma nova e não acompanhamos os juros.

A mentira é um modo de não ser julgado. Mas estamos nos condenando secretamente a nos afastar do que nos incomoda.

Nem é mentir no início de um relacionamento, o que é perdoável, é exagerar um pouco por dia. Sobre o emprego. Sobre o sexo. Sobre o amor. É falsificar nossa pobreza. Colocar uma manta para cobrir o sofá rasgado.

A partir de uma resposta mais agradável, desviamos o caminho, distorcemos algumas frases e somos obrigados a inventar todo um passado.

Prefiro estar acompanhado numa estrada real, ainda que penosa, do que viver sozinho em minha imaginação.




Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 17/11/2013 Edição N° 17617