terça-feira, 4 de setembro de 2012

QUANDO A ESPOSA VAI EMBORA

Arte de Cy Twombly

Maurício estava separado.
 
Sua esposa recém abandonou a casa. Levou as roupas e os pertences sem motivo. Um suicida seria mais educado: pelo menos, deixaria um bilhete e uma explicação. Não foi o que ocorreu.
 
Para complicar, Maurício e Karen irradiavam felicidade nas últimas semanas, o que ferrou com a cabeça do sujeito. Não houve nenhuma discussão, nenhuma cobrança, nenhum problema pontual.
 
Não entendia até aquele momento uma verdade dura dos relacionamentos: a felicidade separa mais do que a infelicidade. Poucos suportam depender de outro. Não há maior humildade do que precisar de alguém.
 
A empregada Leonice vinha sempre às 8h, e encontrava o bancário arrumado e com a mão na maçaneta.
 
Naquela sexta, não foi diferente, a não ser a esperança da reconciliação.
 
– Karen ficou dormindo, somente acordará ao meio-dia. Parecia muito cansada. Assistimos a um filme e deitamos tarde.
 
A empregada suspirou feliz com a reaproximação do casal. Só faltou benzer a porta fechada do quarto.
 
– Volto para o almoço às 14h – completou.
 
A empregada foi ao mercado comprar ingredientes e preparar um empadão de palmito, prato predileto de sua patroa.
 
No decorrer do caminho, recebeu ligação de Maurício.
 
– Não esquece a rúcula e o iogurte natural que acabaram. Karen não abre mão.
 
Ao meio-dia, Maurício telefonou de novo:
 
– Ela levantou?
– Não, permanece quietinha lá, sonhando com os anjos – respondeu Leonice.
– Então, deixa dormindo.
 
Quando Maurício regressou para o almoço, no meio da tarde. Karen não tinha dado sinal. Ponderou, ponderou e decidiu não despertá-la.
 
– Ela nunca pode dormir. Não deve ter trabalho hoje. Não é o caso de incomodá-la. Acordará sozinha.
 
O tempo rodou 15h, 15h30min, 16h, 16h30min.
 
Maurício ligou mais uma vez:
 
– E Karen?
– Nada ainda.
– Compra flores na esquina e decora a sala. Gerânios, ela adora essa palavra: gerânio. Ela costuma falar que a palavra já tem cheiro.
 
Satisfeita por dentro, Leonice riu com suas covinhas, concluiu que os dois continuavam apaixonados um pelo outro.
 
Quando Maurício regressou às 18h, Karen resistia dormindo. Ele teve que pedir:
 
– Vai acordá-la, passou do limite, o almoço já é janta.
 
Leonice ressurgiu na sala branca, esverdeada, rosa, azul, amarelo, lilás, alternando as cores do medo.
 
– Não tem ninguém no quarto.
 
Maurício respirou fundo e somente disse:
 
– Não estou pronto para saber disso. Vamos continuar fingindo que ela ainda mora conosco, tá bom, Leonice?
 



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 04/09/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 17182

16 comentários:

Juliana Stock disse...

Respira querido! A solidão pode ser libertadora... Faz uma viagem louca... sozinho. Se larga no mundo. Vc vai ver que gigante!

Débora Aquino disse...

No primeiro dia pensei em me matar. No segundo, em virar padre. No terceiro, em beber até cair. No quarto, pensei em escrever uma carta para Marcela. No quinto, comecei a pensar na Europa e no sexto comecei a sonhar com as noites em Lisboa. Em seis dias Deus fez o mundo e eu refiz o meu."


[Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis]

Patrícia Santos Gomes disse...

Pqp que dor!

Patrícia Santos Gomes disse...

Melhorando o comentário (sou geminiana com ascendente em Leão, explicado). Sabe a música Atrás da porta e Eu te amo? Este texto está na mesma prateleira delas. Causa dor, aperto no coração, falta de ar. E fico pensando que vc é o único gaúcho que consegue falar de si abertamente (supondo que esteja fazendo isso nesse texto belíssimo). Fica na Paz

Anônimo disse...

Como diz Lacan "Faltou a falta"

Vanderley José Pereira disse...

que lindo... arrepiei todo...

Brendda Neves disse...

assim você nos fará chorar junto contigo... é de doer quando o amor vai, mas fica ainda dentro da gente... é preciso encarar, sem fantasiar que o outro foi de fato e não voltará...

Brendda Neves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabriela Martins disse...

Lindo mesmo! Leonice da minha vida...vamos fingir o mesmo?

Anônimo disse...

��

Regiane

Luiza Versamore disse...

Pelo visto ela sabia que você teria coragem de suportar uma covardia tamanha. É mais covarde sem aviso prévio, deixando a "casa inteira" sem nem bilhete de adeus. Beijo, querido.

yuna disse...

senti a cada palavra e passo do texto, leva um tempo, espero que só um tempo, sentir assim tanto é complicado... sei bem!! melhoras pro Maurício!

ana disse...

O Maurício poderia escrever um livro sobre como sobreviver à separação, já que para ele só a lembrança
pode amanhar a saudade.






Anônimo disse...

Tocante. Triste. Talvez Karen não estivesse tão feliz assim... Talvez Maurício já viesse fingindo a presença da esposa há mais tempo...

Unknown disse...

Vixe Maria!!! A gente esconde tanta coisa assim para tentar seguir com a vida normalmente, mesmo sabendo ser impossível...

ganha dinheiro disse...

parabens pelo belissimo blog, acompanho o mesmo desde 2010, recomendo a muitas pessoas. Parabens