segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

COUVERT FAMILIAR

Arte de Basquiat


Todo pai deve se preparar para o vexame. Um dia seu filho terá uma banda de rock.

A formação do grupo é meteórica, inexplicável como sua dissolução. Não se planeja uma banda, acontece, como um beijo, uma fofoca, um suspiro. Ou porque seu guri está entediado e não tem nada a fazer ou porque é ambicioso e corre atrás de tudo que pode ser feito.

O ato é banal como criar um blog e aderir a uma rede social. Talvez nem seja informado, acabou o tempo em que conversar com o pai era coisa séria, antes a criança preparava o terreno com a mãe, avisava o assunto com antecedência, reservava o escritório.

Descobriu a novidade por acaso, ao assistir um vídeo no YouTube. Demorou a reconhecer o filho, que balançava os cabelos como uma vassoura, mas identificou a própria cama e também as cuecas samba-canção, queimadas num estranho protesto do quarteto a favor das baleias. Será um golpe duro, não tinha consciência de que seu filho tocava ou cantava. Nem o filho sabia.

Se você pensava que havia terminado o martírio das exibições escolares; se você dava graças a Deus pelo fim do ciclo dos teletubbies, dos bichinhos da parmalat, dos bananas de pijama; se você comentava que não havia coisa pior do que aplaudir 15 turmas com coreografias exatamente iguais; se você não aguentava o enxoval das fantasias, os ensaios que tomavam os finais de semana e exigiam caronas para cima e para baixo; se você se enxergava livre da obrigação de filmar cada cena e brigar a cotoveladas com o conselho inteiro de pais e mestres pelo melhor ângulo junto ao palco; se você confiava que não passaria mais pela humilhação de mentir na saída que foi lindo e emocionante e deu um basta ao constrangimento de suportar três horas de pé esperando uma ponta de cinco minutos; se você jurava que não ouviria mais nenhum sermão de diretor profetizando que o futuro é das crianças; se você já se sentia um veterano de guerra, disposto a empinar o peito com as medalhas; se você já entrava com a papelada da aposentadoria, comece a mudar de ideia: seu adolescente é roqueiro.

Deprimente é ouvir como se chama a banda dele, sempre uma nomeação esdrúxula a indicar rebeldia. Grande chance de ser alguma doença venérea: Gonorreia, Sífilis, Herpes. Sorte grande se ficar no corredor dos detergentes e for Diabo Verde ou Pinho Sol.

Na terapia, o que lamentará mesmo é ter brigado com a esposa pelo nome do filho.




Publicado no jornal Zero Hora

Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 31/01/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16597

sábado, 29 de janeiro de 2011

BOTOS E SEREIAS DO ARROIO FORROMECO

Fotos de Ricardo Duarte

São Vendelino aqui, Sankt Wendel na Alemanha. Cidades irmãs, encravadas em morros, homenageando o padroeiro dos pastores.

As idênticas casas enxaimel, a mansidão dos riachos, o silêncio cheio de cigarras e vaga-lumes.

Há até certidão de nascimento oficializando as duas como filhas do mesmo pai (imigrantes de Sankt Wendel fundaram São Vendelino em 1855). O elo é renovado nos pequenos hábitos. Crianças de sete a 12 anos trocam cartas com estudantes alemães, músicos de bandinhas realizam intercâmbios, o estudo da língua de Goethe é obrigatório nas escolas.

A diferença é que São Vendelino é a caçula, uma miniatura no momento, com 1,8 mil habitantes perante os 90 mil de sua inspiração. Dá para contar nos dedos os carros que passam.

Os bichos de estimação superam o elenco tradicional de gato, cachorro e hamster.

Marlene Schneider, 70 anos, cria seis ovelhas em seu pátio. Envaidece-se da fofura da carícia.

Odila Jahn, 65 anos, convive com dois gansos no sofá.

– Protegem mais do que cão – confessa. – Os gansos mordem meu marido quando ele me incomoda e gritam sério diante de gente estranha na varanda.



É normal um menino ganhar um porco, uma menina receber uma galinha de presente.

O folclore infantil é todo peculiar. As crianças não são trazidas pelas cegonhas, mas pescadas no Arroio Forromeco, um dos principais afluentes do Rio Caí. O jogo de cartas – schoff kopp – é o passatempo predileto, mais do que o futebol.

Se você perguntar a profissão para as pessoas, elas não serão objetivas. Olham para cima, ciscando as sobrancelhas. O consenso é responder: faço de tudo um pouco. O tudo é agricultura, o pouco representa as demais profissões.

José Jair Jahn, 37 anos, filho de Odila, é funcionário público, bombeiro voluntário e motorista de ônibus. Ou seja, bate o escanteio e cabeceia, mas ainda tem que defender e apitar o jogo.

– E torcer para mim – completa.

O temperamento é desconfiado, de poucos amigos. “Depende” é a palavra predileta. Ou kann sein.

Os são-vendelinenses falam menos do que os cotovelos. Resmungam. Discordam sem negar. Aparentemente um completa o pensamento do outro, mas estão afirmando duas coisas totalmente opostas. Antônio Jahn, 38, contesta cada frase de seu irmão Jair. Cada sentença. Cada assobio.

– Não sou obrigado a concordar com nada, nem comigo, 49,9% da população diz uma coisa, 49,9% diz outra, ninguém chega a conclusão nenhuma – comenta Antonio.

Os dois centésimos que faltam não nasceram.

O passado flerta nas janelas. Odila reside numa casa branca e verde, com mais de um século. É a terceira geração a ocupar o espaço no Morro da Antena. Marlene também mora numa construção antiga, uma das primeiras da região, com 150 anos. Dentro da residência, resistem intactas as paredes dos primeiros moradores. Pedras grês partilham os quadros com as alas reformadas. A casa já foi barbearia e armazém, a pedra da soleira está gasta pela procissão de fregueses.

As duas não são próximas, mas são igualmente incansáveis. Como cidades gêmeas. Não reclamam do jeito que foi a vida. Marlene, três filhos e cinco netos, mantém na garagem o caminhão Mercedes-Benz do marido, Albano, que faleceu há 14 anos. Por um motivo justo. Foi nele que os dois fizeram a viagem de núpcias para Belo Horizonte (MG). Anteciparam a lua-de-mel na boleia.

Quanto menor a cidade, maiores são os segredos.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 43, 29/01/2011
Porto Alegre, Edição N° 16595
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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

INTENSIVO DE CRÔNICAS EM SÃO PAULO

Foto de Leonardo Brasiliense


TANTA TERNURA
_ oficina de crônica -

Fabricio Carpinejar

de 14 a 18 de fevereiro
de segunda a sexta
das 19h às 22h

b_arco
RUA DR. VIRGÍLIO DE CARVALHO PINTO, 426
SÃO PAULO - SP - (11) 3081-6986
E-mail:
contato@obarco.com.br


A literatura dá tempo para que cada um se descubra. Dá ritmo para que cada um encontre sua voz dentro da letra. Dá força de vontade para que cada um siga a própria vocação.

O premiado autor apresenta suas teorias sobre o fazer literário, como o termo conficções (confissões inventadas), e estabelece uma possibilidade de acentuar a beleza da banalidade, musicar a conversa e pensar com ternura todo detalhe do cotidiano.

Se somos feitos de palavras, quais as palavras que escolhemos ser?


COMPETÊNCIAS
Capacidade para compreender, avaliar e produzir criticamente a natureza da crônica

CONHECIMENTOS
História comentada da crônica: diferenças entre crônica, artigo e conto. A despretensão e a espontaneidade. Simplicidade e surpresa. A leveza não é superficial. Manter o foco. A cozinha do trivial: o assunto é o estilo. Os três E da crônica: Estranheza, Exemplo, Emoção. O detalhe é Deus. Hesitações de uma conversa: a proximidade com o leitor. O ponto de vista minoritário. A importância da poesia na elaboração da atmosfera. O humor no gênero brasileiro: de Sérgio Porto a Luis Fernando Verissimo.

METODOLOGIAS
Exercícios criativos
Debate
Jogos de interação
Produção textual

Para todos os interessados.

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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

COMPLEXO TÊ

Arte de Cínthya Verri

A residência materna tem T na maioria das tomadas. Não precisaria me preocupar com extensões e revezamento para carregar aparelhos. Nem exercer acrobacias com laptop e celulares.

Só que a mãe odeia que usem duas entradas. Tem uma fortuna de adaptadores e vem obrigando os filhos e netos a empregar uma fonte de energia de cada vez.

Ela não é engenheira ou eletricista, não realizou cálculo de ampères para adotar a medida. Não há um fundo científico em seu medo.

O abajur não pode conviver com o remédio de mosquito, a televisão não pode dividir a vizinhança com o DVD, e sucessivamente. O “benjamim” existe para bonito. Não admite sequer duas posições ocupadas, imagina três, que ajudaria ao menos o raciocínio da sobrecarga.

Seu olhar arrasta os chinelos, vasculha os rodapés, varre as quinas. Quando localiza um T inadequado arma um escândalo:

— Ai santo Pai, a casa vai queimar.

Eu é que entro em curto. O que me irrita é que ela adquire o T para negar sua finalidade.

Por que, então, comprou a ferragem inteira?

Primeiro, pensava que mãe não falhasse; tudo correspondia a desígnios de uma sabedoria secreta, milenar, inatingível. Era um embate entre Confúcio e seu discípulo imaturo. Depois é que percebi que ela não tinha as respostas do mundo, muito menos dominava as perguntas.

Talvez espalhasse T pelo simples prazer de restringir. Loucura é tolher quando não há necessidade, é sofrer quando não há dor, é duvidar quando não há indício. Não que a minha mãe seja insana, ela inventou um sistema para enlouquecer a família em seu lugar.

O complexo “T” atinge grande parte das relações, é a tirania do não-sei-o-quê.

Não sei o que quero. Não sei o que tenho.

Funciona desse jeito: você está em crise de identidade e tem vergonha de ser direta, entende o que incomoda e não vai assumir, faz de conta que está descobrindo.

A questão é colocar seu par dentro da crise para que ele ajude a esclarecer a dúvida. Mas não há dúvida. É um falso T. Criam-se as opções das outras tomadas para descartar seu emprego.

Não escolhe, responde com beiço, com talvez. Não aceita e também não recusa.

Acorda contrariada, dorme insatisfeita. Não é que não quer alguma coisa, finge que não tem noção do que falta. Provoca o triplo de esforço do parceiro para culpá-lo por indiretas.

Diz que está com fome, ele prepara italiano, tailandês, japonês, árabe. Nada a contenta.

Diz que pretende viajar e descansar a cabeça, ele arruma um final de semana em Gramado, uma quinzena no Nordeste, um mês em Santa Catarina. Nada a contenta.

Diz que está com vontade de estudar, ele inspira que se matricule no italiano, nos cursos de escrita criativa, cinema, yoga. Nada a contenta.

Seu plano é que ele se canse com as tentativas, que se veja como um inútil, sem competência para agradá-la.

De todas as saídas possíveis, prefere não pagar a conta e esperar o corte da luz.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

MÃO AUSENTE


Toda semana recebo um cartão de Cínthya, é meu álbum de ex-fumante.

Eu me acordo com a sensação de que estou descabelado. Procuro baixar os tufos com as costas da mão. Seria um gesto insignificante se não fosse minha cabeça totalmente raspada.

Sinto o cabelo ainda que não tenha. Assim como alguém procura mexer uma perna amputada e ousa controlar uma mão ausente.

Fumo não fumando. Permaneço levantando o indicador à boca, optando por permanecer na varanda quando o ar-condicionado está ligado na sala, mexendo no bolso à procura do isqueiro.

Completei três semanas sem cigarro. É pouco para muitos, é muito para mim. Persevero, com a consciência de que não terei paz. Enquanto controlo os dias, permaneço fumante. Serei fumante sempre. Um hábito de 22 anos não desaparece por completo. É isso, não há conserto.

É engraçado escrever para não fumar quando eu só escrevia fumando. O cinzeiro é vaso de clipes e elásticos (por que não o joguei fora?). O suor é frio, a pressão sobe e desce, brinca de abrir veias com os poros.

É uma febre sem febre, um vazio transbordando, uma greve do corpo. A fissura pode durar alguns minutos. É fulminante, de farejar o vento à cata de um cigarro aceso nas proximidades. Meus olhos estão no olfato.

Venho elaborando teorias para aliviar o sufoco. Uma delas é que ia de carro ao trabalho, troquei pelo metrô. Mudei meu transporte, meu itinerário, demoro mais para chegar, mas a viagem é mais em conta.

Convenço-me por inversões. Fui feliz quando fumei, não é que deixei de ser feliz.

A mulher Cínthya me anima dia e noite, nos dias que são minha noite. Avisa que os fortes conseguem. Tem funcionado sua guerra psicológica, entendo que apenas o maniqueísmo reabilita viciados. Mas há fortes que fumam, há fracos que não fumam, há fracos que param de fumar, fortes que voltam a fumar.

Desagradável é que perdi a credibilidade. Qualquer desejo durante a abstinência é desmerecido, confundido com a intenção de interrompê-la. Ao me mostrar solícito para fazer compras ou passear com o cachorro, transmito a suspeita de que assaltarei a primeira tabacaria que encontrar.A opinião se mantém viciada aos familiares.

O sofrimento ganhou um novo fiador. Se estou mal-humorado ou dispersivo ou calado, é culpa da privação. Também me aproveito da fama quando careço de explicações para grosserias ou para não precisar pedir desculpa.

O que se evidenciou no processo é a rixa entre fumantes e não-fumantes. Já larguei a correria do primeiro grupo para entrar na concorrência do segundo.

No começo, existia um boicote dos fumantes baforando perto de mim, simulando discussão, reavivando lembranças. Sugeriam que comemorasse a marca de três semanas com unzinho.

Vejo agora uma disputa entre os que pararam de fumar, para ver quem é o mais ex-fumante. Verdade. Como todo antigo tabagista se acha um vencedor, a turma luta pelo melhor tempo. Quanto mais longo, melhor. É uma maratona de retardatários.

Ontem avisei do meu desempenho e um amigo replicou: "Isso não é nada, eu estou sem fumar há vinte anos". Outra amiga pediu a palavra: "Parei há três décadas". E formou-se um grupo de atletas reivindicando o recorde sul-americano.

A mania por marcas é a base das dietas e das reabilitações. A vida se transformou num esquisito e insuperável guiness book.

sábado, 22 de janeiro de 2011

COMO SER FELIZ NA CIDADE DE FELIZ

Fotos de Ricardo Duarte


Em Feliz, terra de 11 mil habitantes encravada no Vale do Caí, os motoristas ainda ensaboam seus carros, as crianças ainda lavam seus cachorros, os estudantes ainda esperam o feijão brotar no algodão na escola, as faxineiras ainda passam óleo de peroba nos móveis, os pais ainda emolduram fotos da primeira comunhão, os relógios ainda são regulados pelas badaladas da igreja, os homens ainda discutem se Deus existe bebendo cerveja.

Ainda são feitos trotes, ainda se borda, ainda se forra gavetas com papel-presente, ainda se recebe visitas na sala de estar, ainda se descasca laranjas, ainda são feitas contas no papel, ainda há tempo para o leite ferver e o bolo descansar, ainda se deixa a porta aberta e as roupas no varal. Não duvido que a lata de azeite ainda seja furada com preguinho.

É mais simples ser feliz na cidade de Feliz e nem estou falando do alto índice de alfabetização, acima de 98%.

São as delícias das coisas singelas. Colher morangos, por exemplo.

– Em maio, pelos cachinhos, sei que teremos uma grande safra e que não passaremos sufoco. É a minha maior felicidade, eu me sinto uma noiva – conta a agricultora Cátia Martins, 32 anos.

Ela veio de Santa Rosa com o marido, Admir, pela tranquilidade. Não se arrepende. Pôde realizar o sonho de quatro filhos em escadinha, como nas antigas famílias: Felipe (13), Pablo (9), Vinicius (6) e Júnior (4).

Uma das paixões felizenses é andar a pé, passar pela Ponte de Ferro (trazida da Bélgica e instalada em 1900) e espiar como está o humor do Rio Caí. E também aprender um segundo idioma em casa. A dúvida é se a primeira língua é a portuguesa ou a alemã. Para não sofrer com o dilema, fala-se o dialeto Hunsrückisch, originado na região de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, e abrasileirado no sul do país.



A fala é rápida, a ponto de não se perceber diferença entre o nome e o sobrenome.

– Como se chama?

– Talcilolorscheiter

– IlsunStumm

– IraciStumm

– Nossa alegria é trabalhar demais para fazer bastante festa, ter uma hortinha para passar o tempo e um ser vizinho do outro. Aqui não falamos mal das pessoas, falamos a verdade – ri Talcilo, 49 anos, que costuma frequentar a residência do casal amigo Ilsun e Iraci.

Para Clarissa Herter, 17 anos, alegria é comemorar com um folhado de salamito.

– É meu luxo – confessa com o salgado recém embrulhado da Panificadora KS.

Ela acabou de ser contratada para seu primeiro emprego na Hidrojet, como analista, selecionada após um ano de curso.

– Agora falta o primeiro namorado – completa.

Ela se encabula para contar onde mora com a mãe, Marlise. Diz, baixinho:

– Bananal.

Ficar envergonhada é também um contentamento.

Em Feliz, ainda é possível descobrir as espécies dos pássaros pelo canto.

– Tesourinha? Siriri? João-de-barro?

O músico Jair da Silva, 41 anos, o Jabá, vai antecipando os sons do alto das árvores para Andrea Barbosa, 27 anos.

– Assim que ele me canta – ela brinca.

O casal namora toda manhã no Parque Municipal. São 25 hectares de sossego, chimarrão e concerto gratuito de aves.

– Não existe como ser feliz sem o parque – afirma Jair, lembrando que é o local das duas principais festas do município (Festa da Amora, Morango e Chantilly e Festival Nacional do Chope).

– Não existe como ser feliz sem Jair – aproveita Andrea.

Os dois se beijam longamente. Com aquela mansidão boa de banco de praça, de ruas vazias, de amor público.

Perder tempo parece que é ganhar felicidade.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 33, 22/01/2011
Porto Alegre, Edição N° 16588
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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

FRIDA E FRITZ

Arte de Cínthya Verri


A Frida Kahlo tornou-se um símbolo sexual estranho. Muito estranho. A Madonna do PSTU. A Shakira da CUT.

Toda mulher que é mulher gosta de Frida. Ela não tem admiradoras, mas groupies.

A adoração ultrapassa as referências artísticas, extrapola a genialidade de sua pintura: as cores vibrantes e os quadros enigmáticos com corças feridas e armações de dor e fúria.

Deduzo que o grande número de autorretratos acentuou a fama do rosto, mas ela foi além das galerias e fotocopiadoras: é um ícone pop. Blusa de Frida, chaveiro de Frida, saia de Frida, caneta de Frida, cadeira de Frida.

Ao desenhar um bigode numa folha, somente o bigode, hoje já ficaremos em dúvida se a intenção é caracterizar Chaplin ou Dalí ou Frida Kahlo.

Mas o que ela tem para ser tão desejada?

A liberação anárquica da beleza. É a mais autêntica hippie da arte no corpo. É a força das flores, mais os inços, mais as raízes, mais os arbustos, mais as gramíneas, mais as ervas, mais os troncos. É uma coalizão dos partidos verdes do mundo. Levou a preguiça às últimas consequências. Acima da Yoko Ono e sua feiura de Gremlin. Superior a Janis Joplin e sua juba mística.

Frida é amada porque teve a coragem de não fazer as sobrancelhas, muito menos o buço. Desdenhou da obrigação cosmética e dos condicionamentos estéticos.

Com seu rosto de monumento asteca, ousou gritar para sua mãe: — Hoje não!

Realizou o sonho da mulher barbuda, abriu a frente da bissexualidade, reuniu os complexos de Electra e de Édipo numa única rima labial.

Frida não precisou enfrentar o martírio de desbastar, a cada quinze dias, com cera quente ou satinelle, a floresta amazônica das axilas. Não gastou um centavo nos salões. Não se preocupava em tirar a sobrancelha, errar a medida para depois se arrepender e substituir o traçado natural com tatuagem definitiva. Não recusou encontros com amantes — Trotsky foi um deles — por vergonha de suas pernas cabeludas. Não pediu desculpa por arranhar o rosto de seu marido Diego Rivera.

É absolutamente broxante para os homens, e encantadora para as meninas.

Quando o marido fala que alguém está parecida com a mexicana é deboche. Quando a esposa comenta o mesmo é elogio.

Para a ala masculina, é como filme da Alemanha Oriental. Eu não queria ser comunista desde cedo, assim que descobri que as principais atrizes das produções soviéticas ostentavam sovaco cabeludo. Os capitalistas erraram a propaganda: para que mentir que comunista comia criança? Era só contar a verdade: no regime, as mulheres não se depilavam. O muro de Berlim teria caído antes.



Crônica publicada no site Vida Breve

PROVOCAÇÕES


Antônio Abujamra lê seleção de meus poemas no programa Provocações, da TV Cultura (terça, 23h).

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

NÃO JOGUE FORA SUAS LÁGRIMAS

Arte de Man Ray

Sou apaixonado por pesquisas estranhas, como as que avaliam o salto acrobático das pulgas entre cães e gatos. Não sei o que os cientistas vêm tomando – mas também quero. Perto deles, os escritores sofrem de bloqueio criativo.

Agora existe uma nova enquete publicada na revista Science e coordenada por instituto israelense de que as lágrimas das mulheres podem combater o câncer de próstata e inibir a calvície. Ao beber as lágrimas femininas, os homens têm redução dos níveis de testosterona. Ficam mais sensíveis, o ritmo cardíaco e respiratório amansado. É como transformar Guiñazu em Bebeto.

Com a descoberta, minha vontade é me ajoelhar e pedir desculpa a Cínthya. Quando se debulhava, ela me oferecia os efeitos medicinais dos seus olhos.

Eu esperava a cura de tudo o que é doença a partir das plantas raras na Amazônia enquanto o soro miraculoso estava na minha cara. Ou melhor, na cara dela.

As lágrimas são florais, a TPM é uma benção, o mundo passa a fazer sentido, explicam a choradeira, o melodrama e as frequentes crises temperamentais de nossas parceiras

Deliro com o impacto da novidade entre os casais. Os maridos coletando lágrimas das esposas, criando calhas nos óculos escuros.

Relacionamentos tristes nunca terminariam. Relacionamentos alegres durariam pouco.

– Por que você se separou?
– Minha mulher não chora mais.

Toda semana, as namoradas receberiam convite para assistir filmes românticos, açucarados, em que os protagonistas se amam e um deles morre ao final. Entraríamos no cinema com o saco de pipocas e outro saquinho de plástico para as lágrimas. Assistiríamos cinco vezes o mesmo título sem reclamar.

– Está chorando?
– É um cisco.
– Tudo bem, me avise quando chorar, tá, quero estar por perto?

A indústria de lenços iria quebrar. Hollywood contrataria apenas jovens franzinos e raquíticos, nerds e intelectuais. Em vez de procurar aplique e perucas, carecas comprariam poções de choro. Os maridos discutiriam a relação com planilhas. Começariam falando mal da sogra e terminariam falando mal da sogra, para não ter queda de rendimento.

Nada seria desperdiçado. Nenhuma gota.

Pena que a pesquisa revela que as lágrimas das mulheres diminuem também o apetite sexual masculino.






Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 17/01/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16583

sábado, 15 de janeiro de 2011

DUPLA SERTANEJA DE UM HOMEM SÓ

Foto de Ricardo Chaves

São Leopoldo é uma cidade grande com espírito interiorano.

Apesar dos 210 mil habitantes e da proximidade com Porto Alegre, a fofoca é notícia, os motoristas dirigem lentamente na Independência para desfilar e olhar as moças, o futebol de várzea é uma guerra de torcidas organizadas, o almoço no Clube Orpheu é programa obrigatório familiar, ainda se discute política no Bar Senadinho.

O tempo anda rápido na aparência dos imóveis, mas é lento por dentro das pessoas.

Quem vem de longe já se torna capilé no primeiro dia. Não precisa nascer no Hospital Centenário, basta ter vontade de ficar. Talvez seja o município mais maternal do Estado. Um pouco pela força das instituições religiosas como Escola Superior de Teologia e Unisinos. Um tanto pelo significado acolhedor de sua origem: berço da colonização alemã no sul do país, em 1824.

Qualquer morador que aparece é um novo imigrante. Sempre bem recebido.

Lázaro Francisco da Silva, 48 anos, é o mais irreverente filho adotivo.

Natural de Cassilândia (MS) e leopoldense desde 1986, chama atenção pela maneira nada convencional para divulgar suas músicas. É uma estação pirata no dial das ruas.

Às quartas-feiras e aos sábados, circula com uma bikelete adaptada ao escândalo. Percorre 40 quilômetros numa tarde. Não há como não enxergá-lo ou ouvi-lo.

A bicicleta tem motor de moto, caixa de 10 decibéis, mesa de som e luzes coloridas. Os feirantes de fruta são suspiros de inveja.

– Faço mais barulho do que brinquedo de bebê – afirma.

Jallapão – seu apelido é uma homenagem ao Parque de Tocantins – pedala, canta, pensa e masca chiclete. É a prova de que a ala masculina pode realizar duas coisas ao mesmo tempo.

Com camisas sobrepostas e chapéu de sertanejo, atua como um DJ do trânsito.

Curiosos confundem sua figura com serviço de mensagens de aniversário e pedem emprestado o microfone para mandar recados ao namorado ou namorada. As crianças o tomam por animador e entoam refrãos do jardim da infância. Há momentos de intenso assédio e ele não tem fresta para cantar seu repertório e vira um programa gratuito de karaokê.

Lázaro sofre para comercializar seu CD Só a semana que vem, que reúne 20 canções das 270 que compôs na vida.

Como o disco não vendia, tentou diferentes estilos: cômico, romântico, gaudério. Como continuava não vendendo, criou uma revista para encartar as letras, aproveitando suas experiências com o design gráfico e serigrafia.

Como o disco teimava em não vender, decidiu partir para o corpo-a-corpo. Até hoje não vende, e não tem mais nenhuma ideia.

O sucesso não lhe dá carona. Muito menos aceita carona de estranho.

No fim, negocia três produtos por dia, o equivalente a R$ 18, o que não cobre o investimento de R$ 6 mil na reforma do veículo.

Sequer conta com o apoio familiar. A esposa Neide e a filha Bárbara acham o equipamento um fiasco desnecessário.

Conhecido pela algazarra e festa, Lázaro é outro quando retorna das andanças musicais.

– A ida é a alegria da esperança, a volta é a tristeza da solidão – poetiza.

Ao atravessar a Ponte 25 de Julho, engole o choro. Não sabe se a estiagem vem dele ou do Rio dos Sinos.

Entra, silenciosamente, pelo portão de sua casa na vila Santo Augusto; o motor e os faroletes apagados.

É um tenor sem orquestra. Uma dupla sertaneja de um homem só.

– Meu maior fã sou eu – confunde-se.

Procurava dizer que ele era seu maior ídolo.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 32, 15/01/2011
Porto Alegre, Edição N° 16581
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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

MIRAGEM

Arte de Cínthya Verri

Homem somente pinta o cabelo desesperado. Ou é emo ou é político.

Brizola desistiu de sua candidatura a presidente quando apareceu com cabelo acaju. Seu índice de rejeição assumiu uma proporção inestimável.

Pintar cabelo é um manifesto feminino. O equivalente ao serviço militar obrigatório.

Depois de dezoito anos, é mais do que um experimento, é mudar de vida. Pode sinalizar uma separação, um novo namorado, último recurso para adiar uma dieta, desistência da terapia.

* * *

Serve também para desafiar as mechas maternas. Tanto que a menina desmama quando pinta os cabelos. Um contra-ataque ao coque e trança, artesanatos de postura impostos dentro de casa para ir à escola e festas. Uma revolta ao regime tirânico do laquê, mousse, cera e gel, que obrigava o rosto a permanecer imóvel. Corresponde a mais importante desobediência doméstica. É quando a moça se desarma, se ama e assume a sexualidade de sua brincadeira.

* * *

Superior ao signo e ao histórico escolar, a mulher entende que é pelo cabelo que se apresenta ao mundo. É pelo cabelo que ditará seu perfil, provará que é dramática, romântica, tímida, expansiva, agressiva, esportiva.

Com a bolsa e as sobrancelhas, forma a sagrada trindade da personalidade.

* * *

A idealização do marido não alcança a idealização cromática dos fios.

Ela delira com um cabeleira de bordas, redonda, macia, desembaraçada, lustrosa. Aquela espontaneidade onde não se enxerga o fim. Uma cabeleira infinita. Dobrando o oceano dos ombros. Vibrante.

* * *

Mas é quase impossível concretizar a metamorfose. Por mais que cada uma siga as instruções da bula.

É como imitar as pinceladas de Van Gogh. Como imitar as formas sensuais das banhistas de Monet. Como imitar os movimentos de tons da ciranda de Matisse.

Pintar os cabelos será a primeira traição que o mulherio enfrenta.

* * *

A dureza já encontra seu auge no início. Nem toda mulher quer ser loira, mas toda mulher precisa ser loira. É um pedágio para encontrar a coloração do sonho. Se ousar partir do matiz original para repetir as caixinhas, o espelho quebra. Obrigatório clarear para diminuir o desastre. Na ambição de ser ruiva, uma morena descobrirá o vermelho beterraba, longe do brilho e da intensidade da embalagem. Terá na cabeça um incêndio apagado, sem labaredas, terra devastada, cinzas e fuligem. Só com muita generosidade para chamar aquilo de ruivo, é o mesmo que confundir espinhas com sardas.

* * *

Muçulmanas, católicas, evangélicas, luteranas, taoístas, batistas… Não há religião que salve. O milagre nunca acontece conforme rezado.

Tingindo de amarelo verão, na ânsia de reproduzir os ares praianos de surfista e aventureira, o máximo que conseguirá é cabelo palha de inverno.

A decepção não tem fundo. São quarenta minutos de expectativa frustrada.

Cereja terminará marrom. Após cinco lavagens, torna-se água suja. O preto azulado — que ninguém avisa — dependeria de licitação da Secretaria de Obras. É, essencialmente, piche. Para tirar, apenas cortando.

* * *

Conhecerá a maldição de fadas. A dissolução do castelo. Ao adormecer como Marilyn Monroe e seu fulgurante platinado, acordará como Cicciolina em fim de carreira.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

SUPERBEM



O Consultório Poético começou no site da revista Superinteressante em outubro de 2005, depois seguiu para o condomínio da Globo. Na comemoração de cinco anos de atividade ininterrupta, agora ganha independência e vida própria no site SuperBem.

Na nova coluna, jovem se apaixonou pela internet, criou expectativas e pergunta se o amor com a outra não passa de uma ilusão ou ainda pode vingar.

Leia aqui minha teoria sobre aeróbica emocional, muito comum hoje em dia em chats e redes sociais.

sábado, 8 de janeiro de 2011

UM PASSEIO PELA ALMA DO ESTADO

Fotos de Mauro Vieira, Diego Vara e Daniela Xu

A série Beleza Interior vai percorrer o Rio Grande do Sul à procura de histórias inusitadas, personagens inesquecíveis e pontos de vista especiais. Será uma cidade por semana até o fim do ano. Traçarei um mapa poético e engraçado da família gaúcha.

Viajar é um hábito que herdei de casa. Meu pai, Carlos Nejar, também poeta, era promotor de Justiça. Cada filho nasceu numa comarca. Aparecia a promoção e pimba!, comemorava-se com um filho. Não posso reclamar. Não surgi do vazio do desemprego, e sim da pressa da alegria.

Lembro das longas viagens por Itaqui, Erechim, Guaporé e Livramento. Estradas de chão batido, curvas apertadas e um terço branco no retrovisor. Havia a tradição de parar na estrada para encontrar o pastel perfeito. Mantenho a caderneta surrada com a avaliação da massa e do recheio, a nota máxima foi 9,4 em São Lourenço. Naquele tempo, as crianças iam atrás na cachorreira, forrada por um pelego vermelho. Bem coisa de gaúcho. Brincávamos de descer pelo porta-malas. A mãe segurava o chimarrão no banco da frente e os manos brigavam para se apoderar da janela.

É emocionante ver que a trupe inteira tomou gosto pelo destino cigano do Direito. Carla já esteve em São Borja, Camaquã, Taquara e Alvorada, hoje é promotora em Porto Alegre. Rodrigo passou por Agudo, Lajeado e Nova Prata, hoje atua no Ministério Público de Gravataí. Miguel incursionou por Novo Hamburgo, Salto do Jacuí e Agudo, agora é juiz em São Sepé. Arriscado definir qual integrante tem a maior quilometragem no carro.

Eu segui pelo caminho torto da literatura. Mas o destino é o mesmo: o amor ao sotaque.

A estreia é Caxias do Sul, minha cidade natal. Afinal, não é fácil ser gringo. Há toda uma arte, uma costura de rituais e de temperamento. A terra da Festa da Uva, pérola das colônias, pode revelar o segredo milenar, explicar essa existência apaixonada e febril, que envolve em especial os descendentes de italianos.

VIDA DE GRINGO

Para ser gringo, um pré-requisito é contar com uma nona como Dona Ilha, 84 anos

O gringo é um estado de espírito espalhafatoso, evidenciado pelo senso de humor, princípios morais fortes e aspereza afetuosa.

Não age, reage, sai discursando no cumprimento. Sempre está se explicando. Não pergunta se vai chover, faz chover. Fala com os gestos, as mãos prolongam as cordas vocais. Tem razão quando não tem razão. O que interessa é ser ouvido.

Como graceja o livreiro Arcangelo Zorzi Neto, o Maneco, 54 anos, a última palavra sempre é do marido:

– Sim, senhora!

O gringo gosta tanto de si que suas manias escapam das críticas e assumem o aspecto simpático de eufemismos: não é gritão, é passional; não é fofoqueiro, é preocupado.

– É preciso comer muito, colocar religião no tempero, preferir macarrão colorido e molho ao sugo, ser ciumento, provocar quem ama, gritar palavrão quando o dicionário não basta – explica Terezinha Onzi Sperafico, 70 anos.

Gringo não fica sozinho, está eternamente recrutando parentes. Abusa de cores fortes: verde, vermelho, laranja. Alterna as tintas das paredes para mostrar que a morada nunca é a igual, mas variada por dentro. Também não joga nada fora. Adora colecionar cacareco. A residência terá um quartinho, para conservar objetos e móveis antigos. Segue à risca o mandamento de “guardar, pois pode precisar um dia”.

Seu sotaque é uma assinatura no vento. Troca o “ão” do final das palavras pelo “on”: Manson, monton, avion, televison. E os dois erres por um somente, numa simplicidade infantil: Caroça, gara, Sera, churasco.

O gringo criou uma coreografia peculiar nos passeios pelo centro da cidade. Famílias andam engatadas pelos braços nas ruas Júlio de Castilhos, Sinimbu e Os 18 do Forte. Como se fosse um arrastão, um cabo de força. Tomam a lateral da calçada.

– É uma forma de se proteger e de estar próximo dos ouvidos para falar bem ou mal dos outros – ri Renata Paim Bossardi, 26 anos.

As esquinas funcionam como uma seção de achados e perdidos. A tática é parar numa delas quando um familiar some nas andanças pelas lojas. O trio de baianas, formado pela mãe Eliana Debon, 54 anos, e suas filhas gêmeas Thaís e Thaína, 24 anos, adotou o hábito.

– Quando a gente se extravia, esperamos na esquina, é um caixa 24h de pessoas – afirma Thaís.

Em Caxias, a base é a família, a identidade é o trabalho.

Numa conversa, a pergunta “Em que você trabalha?” vem em primeiro lugar. A segunda questão refere-se à família: “Já casou? Tem filhos?”. Descobrir o nome é de menos, inclusive porque gringo tem apelido.

– Não ter família aqui é ateísmo. Até hoje há a prática de interromper qualquer tarefa para almoçar em casa – pontua o escritor Paulo Ribeiro, 50 anos, professor da Universidade de Caxias do Sul.

A refeição é farta, em grandes porções. Não é somente nas galeterias que ocorre um rodízio faraônico, mas pela rede inteira de restaurantes. Talvez seja o único ponto gastronômico do mundo em que o bauru é um bufê.

– A gente almoça pensando na janta – descreve a artista plástica Mara de Carli Santos, 56 anos.

A preocupação com emprego se deve às grandes indústrias da região, o segundo maior polo industrial metal-mecânico do país.

– É incrível, enfrentamos engarrafamento às 5h, com o pessoal indo para fábrica – avisa Ribeiro.

Para ser mesmo gringo, um pré-requisito inadiável é contar com uma nona. Vó recebe a promoção ao completar oito décadas.

Ilha Facchin Mantesso, 84 anos, atingiu o estágio. Viúva, vive cercada dos mimos de seus dois filhos e dois netos, que se enraizaram no bairro Panazzolo de propósito, para vigiá-la.

– Não tem como fazer segredo em família de gringo, as coisas são às claras.

Deitada no sofá ou secando a louça, ela não se descola da elegância. Sente-se viva em movimento, cuidando da ordem doméstica. Diz que gringo não pede desculpa, agradece a Deus.

– Graças ao bom Pai, não fiz maldade, a não ser afogar gambá – brinca.

Uma das catequistas pioneiras de Caxias do Sul, contadora de histórias de quatro gerações, não reclama da falta de infância e dos sacrifícios na roça e no plantio de uvas. Seus olhos claros são o álbum da família. De imigrantes de pés descalços e uma vontade férrea de repetir a Itália do outro lado do oceano.

– Ser gringo é carregar enxada que nem louco: saco vazio não permanece de pé – confessa com a convicção de quem tem a alma extraordinariamente cheia.







Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 4 e 5, 08/01/2011
Porto Alegre, Edição N° 16574
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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O BIGODE AMARELO DE FLAUBERT

Arte de Cínthya Verri


Primeiro do ano de 2011, larguei o cigarro, pela segunda vez. Há a teoria de que a abstinência vinga na quinta tentativa.

Estou me adiantando, não sei se conseguirei ou repetirei o fracasso. Antecipo desculpas. Não é fraqueza, é covardia. Não tento ser melhor do que sou, só procuro não me piorar.

As noites têm sido infernais, infantis, sonho que roubo baganas do lixo. Até no sonho não posso mais fumar.

Gemo, grito e desaforo, apesar do adesivo e do Diazepam.

Apresento baqueteamento digital (meus dedos viraram baquetas), o primeiro sinal de enfisema. Meu avô materno morreu exatamente disso.

Careço de oxigênio no corpo. Fui um asmático que zombou das estatísticas. Agora tenho a consciência de que não serei a exceção, não escaparei ileso como acreditava, Deus não me protegerá, não vale invocar exemplos como o de Mario Quintana que ultrapassou os 80 anos disfarçando seus suspiros.

Poetizar o cigarro não perfumará o cadáver.

Não adianta mais justificar que ele era meu aparelho de dentes, a gola rolê do rosto, meu fog londrino, minha adolescência, minha barba ruiva, meu mistério, o elevador da respiração.

Não adianta alegar que ele me amadureceu, me enturmou, me arrumou namorada.

Não adianta insistir em desvairadas fantasias, de que ele ocupava as mãos, ajudava a escrever.

Humphrey Bogart, Joyce, Sartre, André Gide e James Dean não estão aí para me emprestar fogo, meus fiadores morreram.

Verdade seja dita, o cigarro não preservava minha timidez, cultivava minha insegurança (a timidez costuma ser segura de si).

Tornava-me ainda mais agressivo. Retirar o cigarro de mim é como roubar, a cada cinco minutos, o osso de um cachorro.

Tampouco curava minha ansiedade, ficava bem mais nervoso. O cigarro cria nervosismo para nos iludir em seguida de que nos tranquiliza.

Ele é a própria ansiedade. Estava numa conversa e me desligava do assunto para planejar a saída. Eu fugia com frequência de mim pensando que fugia dos chatos.

Não gostava de viver, gostava de fumar. Não dá para fazer os dois. A gente descobre isso quando para.

Não vou me consolar com atenuantes. Um dos erros é negociar com o terrorista. Não posso pedir para descartar os cigarros inúteis e manter somente os fundamentais: aqueles do despertar, do almoço, da janta e do sono. Sinto falta de todos os cigarros. Para falar ao telefone, necessitava fumar. Para sair, necessitava fumar. Antes do cinema, necessitava fumar. Depois do sexo, necessitava fumar. Depois e antes de tudo, necessitava fumar.

Por isso, fumar um é fumar novamente todos. Não é brincadeira. Não há meio-termo.

Se acho triste me desfazer dos meus doze isqueiros engraçados e dos cinco cinzeiros extravagantes, mais triste é se desfazer de mim.

O que me apavora é o alto grau de dependência. Sou uma reunião de condomínio de 4.700 substâncias tóxicas. Definir o elemento que me magnetizou é tão complicado como desvendar a origem de uma alergia.

Guardava uma tabela periódica na boca. A nicotina é a menos perigosa. Será que tenho saudade da acetona: usada para remover esmalte? Ou da tirebina: substância que dilui tinta a óleo? Ou do formol: conservante de cadáver? Ou da amônia: desinfetante para pisos, azulejos e privadas? Ou da naftalina: eficiente para matar baratas? Ou do monóxido de carbono: o mesmo que sai do cano de descarga dos automóveis? Ou dos agrotóxicos usados no cultivo da folha de tabaco? Ou dos metais pesados: encontrados em baterias de carro?

Duvide das facilidades, da força de vontade, do poder da mente. O alcatrão é fundo como um trauma. E delicioso.

Consumia quarenta cigarros por dia e respondia que tinha sido vinte. É simples descobrir a realidade do fumante: duplique o que ele confessa e chegará ao número preciso.

O fumante é mentiroso — eu mais do que os outros.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

QUEBRA-CABEÇA DE CINCO MIL PEÇAS

Arte de Richard Hamilton


Troco os objetos de lugar para que minha mulher fale comigo.

Funciona perfeitamente. Ela que demora a colocar a alma no corpo de manhã acaba conversando mais do que esperava.

– Onde está meu cinto?

– Viu meu celular?

– Cadê meus óculos de sol?

Vou respondendo como um quiz show, um sábio dos esconderijos:

– Na segunda gaveta.

– Está carregando na sala.

– No porta-luvas do carro.

Forjo importâncias. Com o pretexto de salvá-la dos atrasos do trabalho. Ela acorda às 8h30min, tem meia hora para se arrumar e outros 30 minutos para chegar à clínica.

É evidente que ela não perderia tempo se eu deixasse sua bagunça em ordem, acharia mais rápido as urgências, mas crio uma falsa eternidade, uma falsa ordem, para dar a sensação que cuido dela e ainda me preocupo com a limpeza.

O marido mais torturador é o metido a faxineiro. Não vem com o caminhão de mudança, é o caminhão de mudança. Aquele que entra em sua casa como namorado e, na primeira semana, promove uma limpeza geral, com o objetivo de recuperá-la dos vícios. Trata-se de um escorpiano ou um dominador. Ou os dois. A disposição é tanta que passa a temer sua intenção de preparar a salada de maionese do churrasco.

O tipo não se contenta em exercitar seu transtorno obsessivo-compulsivo, pretende emprestá-lo. É um TOC solidário.

Você conclui que foi uma ideia estúpida alcançar uma cópia da chave. A chave é a verdadeira escova de dente que inicia o casamento. Toda a fechadura é um copo que transborda.

Mal entra na sala, enxerga o piso brilhando, encerado, e bate o pavor: as pilhas de papéis importantes estão guardadas não se sabe onde, quer cortar a unha e a tesourinha desapareceu da mira, o prontuário de receitas repousa em uma caixinha anônima na lavanderia. Afora as toalhas, as calças, os vestidos.

E nem pode reclamar, nem pode xingar. Porque os piores atos são feitos para o bem. E isso é um costume do amor.

O arranjo das flores no centro da mesa pede sexo de agradecimento. E ficará chato dizer: “Não toque mais nas minhas coisas”. Engolirá a raiva e permanecerá entontecida em seus próprios domínios, tentando completar diariamente o quebra-cabeça de cinco mil peças.

Uma mulher odeia que a gente mexa em sua bolsa, mas não fez nenhuma restrição em alterar o trajeto dos seus pertences fora do ferrolho. Não colocou nas resoluções do condomínio.

Coitada de Cínthya. Tirou a chave da bolsa, já é minha. Tirou o pente, já é meu. Tirou o filtro solar, já ponho no armário do banheiro.

E ela pensará em mim várias vezes durante o expediente.

– Onde que ele colocou, onde ele colocou, onde ele colocou... minha vida?

E não devolvo.




Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 03/01/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16569