sábado, 18 de junho de 2011

O CASEIRO DO MAR

Afastado da família por quase três meses, Bacelar sobe os 161 degraus e 39 metros do Farol de Mostardas quatro vezes ao dia. Foto de Emílio Pedroso

Ele apaga e acende a luz de um dos mais importantes faróis do Rio Grande do Sul. É o caseiro do mar, o zelador das ondas e do vaivém lírico da costa marinha gaúcha.

O suboficial Luis Carlos Donato Bacelar, 50 anos, pernambucano de nascimento e gaúcho por adoração, sobe 161 degraus quatro vezes ao dia. Mantém ativo o Farol de Mostardas, em Tavares, cidade litorânea de 5,2 mil habitantes, a 217 quilômetros de Porto Alegre.

Inaugurada em 1894 e reformada em 1940, a construção é um dos oito faróis que permanecem guarnecidos no Rio Grande do Sul, dispensando estrutura automática e dependendo do controle de um faroleiro.

Do mirante, o bege das dunas, o cinzento dos terrenos baldios e o verde escuro das águas formam uma fusão extraordinária.

– É um outro planeta, uma Antártica sem gelo – suspira.

Bacelar atravessa 85 dias por ano, de 6 de junho a 29 de agosto, na casa da Marinha aos pés do farol, completamente isolado, suportando a saudade da família. Pretende apenas iluminar, não ser O Iluminado de Stephen King:

– Não posso parar um minuto, cumpro permanente agenda física e intelectual para não ficar banzo.

A mulher, Denise, 49 anos, e seus três filhos – Luiz Carlos, 21 anos, Pedro Augusto, 18 anos, e Renato, 12 anos– moram em Pelotas. Ele não pode trazer nenhum parente durante o serviço.

– Meus olhos me fazem companhia – diverte-se.

Vinte e cinco barcos pesqueiros e mercantes que passam pela praia são suas visitas, ainda que visuais.

Bacelar não pode perder a hora. Liga o facho que atinge 40 milhas exatamente ao pôr do sol, às 17h45min, e desliga ao amanhecer, 7h10min.

Disposto a não enlouquecer, alimentou uma disciplina severa de pequenas e simpáticas missões. Uma delas é mandar quatro boletins meteorológicos diários para o Centro da Marinha, no Rio de Janeiro. Alistado desde que era adolescente, há três décadas no serviço, formado em Hidrografia e Navegação, ele se define um marinheiro de várias encarnações. Não existe porto que não conheça no país, de Belém a Rio Grande.

Sua dedicação ao farol gera ciúme na mulher, que telefona várias vezes de tarde.

– Eu entendo o ciúme. A torre é mesmo feminina, vestida de azulejos, demora para se arrumar e piscar para o oceano. Exige cuidados especiais, vaidosa como uma apaixonada – provoca.

E Bacelar não nega carinho à sua amante de 39 metros. Varre as escadas e pinta a fachada de preto e branco, sobe a cada mudança climática para tirar ou pôr as sanefas (cortinas) da cabine, e proteger as lentes e cristais franceses.

Ele tem acesso a entrar a qualquer instante no espaço sonhado por todo adolescente, em especial aos que já namoraram nas casinhas de salva-vidas e que sempre desejaram passar uma noite romântica no alto do farol.

– Vejo jovem tentando pular a cerca, mas não dá. Esse janelão tem dono.

O faroleiro do litoral se delicia com a exclusividade do horizonte. Lança o lampejo como quem coloca um poncho no mar.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 35, 18/06/2011
Porto Alegre, Edição N° 16733
Acompanhe nossos vídeos dentro do Farol.

7 comentários:

Blog da Liana disse...

Fabrício, adorei a história do ''caseiro do mar''.

Poxa, é tanta dedicação e carinho com o farol, que parece que ele cuida de uma pessoa.
Subir 161 degraus 4x no dia, não é fácil.
Eu ia desistir no meio do caminho... rsrs

Entendo sua esposa ter ''ciúmes'', afinal, pelo que entendi, ele passa mais tempo no mar, cuidando do farol, do que em casa, cuidando da esposa e filhos.

Adorei mesmo.
Me senti um pouco lá dentro, olhando o infinito mar...

Beijos querido!!!

Anônimo disse...

Nossa, como é bom ver uma pessoa que se dedica a um trabalho tao inusitado com AMOR. Admiravel!!!Uma pessoa dessa merecia aquelas medalhas que o governo federal distribui para as pessoas que nao sao NINGUEM ou nao fazem NADA de util a sociedade e no entanto sao todas cheias de medalhas no peito. Alias, hoje em dia, ser condecorado por um governo é DEMERITO. Nao é orgulho a ninguem...
elizabeth

Anônimo disse...

Dedicacao é amor. E ele demonstra isso, suportando a solidao, a rotina, longe da civilizacao. Deve ser uma pessoa MUITO especial, de bem com ele mesmo, amante da natureza. Enfim, tem espirito elevado que suporta a si mesmo. Que lindo isso num mundo tao cheio de conflitos e desamores.
Eliko

Anônimo disse...

Superacao e Amor!!!! É o Bacelar com a sua profissao. Que lindo! Um cara bem resolvido...

Anônimo disse...

Que bonito!
Bacelar deve ir direto para o ceu, quando morrer, porque ja esta bem pertinho do ceu e da PAZ...

Anônimo disse...

Quem sabe conviver com o silencio, com a solidao, com a grandeza do mar é um ser de muito AMOR. Bacelar, parabens! Vc é um cara que tem farol na sua cabeca, uma LUZ especial...

Jade Krug disse...

Fabrício, gostaria de parabenizá-lo por este belíssimo texto. Sou estudante do curso de letras português da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) e tomei a liberdade de analisá-lo em um trabalho para a disciplina de Gêneros e Leitura. Espero que não se importe... um abraço
Jade Krug