sábado, 31 de dezembro de 2011

NASCI PELA SEGUNDA VEZ. E, DE NOVO, GAÚCHO


Já estou com saudade.

Foram 52 cidades gaúchas retratadas num ano. Percorremos 14.590 quilômetros, o equivalente à distância de Porto Alegre a Cabul, no Afeganistão.

Nove mil fãs em nossa página no Facebook, mais de mil mensagens dando dicas e roteiros para visitar. Tantos amigos, tanta cumplicidade, tantas gargalhadas.

Não mexi no meu passaporte, mas atravessei as culturas italiana, polonesa, alemã, suíça, africana, indígena, açoriana e japonesa pelo território gaudério. Viajei o mundo de nossas raízes.

A vontade era nunca terminar. Nunca se despedir.

Não posso dizer que conheço o Rio Grande, posso dizer agora que não conheço o Rio Grande. A humildade é ambiciosa. Vi o suficiente para lamentar que ainda falta muito para ver. Quanto mais vejo, mais quero enxergar.

O pampa é a gula do olhar. Coxilha chama coxilha que chama coxilha e já estamos na fronteira.

Eu me reinventei, me esclareci em cada pórtico.

Acordei minha infância, hábitos interioranos que nem me lembrava, mas que estavam intactos em mim.

Como resistir a nossa mania de transformar o fogão em mesa? Só aqui a chaleira é areada, cintilante, com primazia de cristaleira. Repousa no pano de prato como um troféu. E a casa somente estará arrumada no momento em que a chaleira é posta no tampo de vidro. Antes não.

O gaúcho tem manias incríveis. Gosta de apresentar a cozinha aos visitantes. Faz questão. É a sua verdadeira sala de estar. Algo que qualquer corretor do interior desvenda no berço. Primeiro, mostre a cozinha, em seguida o resto das peças.

Eu me emociono com o mínimo. Ao localizar, por exemplo, uma espumante em destaque na prateleira, para ser aberta num dia especial. Quem não teve? Quem não guardou uma bebida com expectativa? Lembro o meu avô que mantinha uma Espuma de Prata fechada em cima da televisão.

Se ele estivesse vivo, Leônida Carpi, hoteleiro de Guaporé, abriria a garrafa para homenagear o fim da série.

Diria em meu ouvido, que chegou a hora, que viajei parelho a Brizola, que ganhei sapiência de estrada.

– Chuta as pedras, meu neto, o chão implica com quem não anda.

Testemunhei situações inesquecíveis. Dona de casa em Nova Bréscia preparava uma canja e, de repente, entrou galinha pelas janelas, pelo teto, pela porta. Ela saiu correndo, com forte sotaque italiano, gritando em nossa direção:

– Chuva de galinha, meu Deus do Céu, chuva de galinha!

Tinha mais penas do que folhas nas árvores, mais do que qualquer guerra de travesseiros entre os meus irmãos. Bichos presos no telhado, nas forquilhas dos galhos, nos capôs dos carros.

Ela demorou a entender que não era o Juízo Final, mas um caminhão que derrapou na curva e derrubou os caixotes com os frangos sobre sua residência.

Sempre acabo rindo antes de terminar de contar a lembrança. Conto para me ouvir rir.

Descobri o chimarrão mais rápido do mundo, descobri um adolescente com o maior pé do Brasil em Santo Ângelo, descobri o barqueiro de Itaqui, descobri o empalhador de cachorros de Carazinho, descobri o macaquinho sapeca de Iraí, uma coleção de fuscas em Joia, a pedra lunar de Bagé, o ambulante de Victor Graeff que pagou a universidade de seis filhos vendendo rapaduras.

Houve igualmente travessias amorosas. Depois de 30 anos, abracei de novo minha babá Neide em São Valentim do Sul. Também por curiosidade, reconstitui a infância de minha mulher em Constantina. E ainda enfrentei desafios: suportar o banho gelado e invernoso na praia de Quintão, apesar da asma, e subir os 39 metros do Farol de Mostardas, apesar da vertigem.

Andei de cavalo, de hipopótamo, de colheitadeira, de caminhão de boia fria. Rolei fenos, percorri cavernas com tochas, larguei muita gente sem entender meus óculos de mosca.

A saudade me corrompe.

A saudade me estraga.

A saudade me perturba.

Carrego o mapa com os pontos azuis das cidades visitadas de Beleza Interior. É minha relíquia. Dobro o mapa como um jeans fiel, uma camisa predileta, uma bandeira.

Sou um outro autor, um outro escritor, um outro jornalista. Fui convertido ao bairrismo.

Encontrei onde mora a Felicidade.

ONDE MORA A FELICIDADE

Aos 106 anos, Felicidade mora sozinha, paga as contas e ainda tem tempo para sonhar e se reinventar. Fotos Tadeu Vilani.

A Felicidade mora na Rua João Goulart, em Santana do Livramento, cidade de 83 mil habitantes, a 487 quilômetros de Porto Alegre, na fronteira com o Uruguai.

Ela tem um rostinho de violeta, de vaso miúdo, o andar curvado e a bondade brilhosa de pele. Calça sapatos pretos com meia calça e seus cabelos grisalhos são espetados.

– Fiquei magrinha, mirrada, terminou o sangue, a carne, sou só osso e olho.

Felicidade Camargo Machado completou 106 anos. Reside sozinha, paga as próprias contas com o dinheirinho da viuvez, varre o pátio, prepara sua comida e não precisa de mais ninguém.

– Quando casei, não podia sair. Ou tinha que cuidar dos filhos ou do marido. Hoje saio de qualquer jeito: não fico mais presa por homem nenhum.

Felicidade não sabe ler nem escrever, mas é de uma sabedoria aforística, como se fosse uma página perdida do Evangelho.

– Já tive tempo de aprender tudo, desaprender tudo e agora estou aprendendo de novo.

Felicidade é a única sobrevivente dos 15 irmãos.

– Semente solitária, a última para fechar plantação.

Felicidade é um anjo que sobreviveu ao inferno. Seu marido Ernesto foi pego em flagrante com mulher casada e assassinado pelo homem traído.

– Perdi o jeito de rir de tanto sofrimento. Vou rir por engano.

Felicidade diz que os pássaros deram para entrar pela janela da sala.

– Até pareço flor com mel.

Felicidade estragou a certidão de nascimento, guarda pedaços colados com manteiga numa tabuinha.

Felicidade passou a vida inteira trabalhando como lavadeira. Atendia 10 famílias na cidade. Suas mãos espumam.

– O tanque de pedra é meu conselheiro.

Ela detesta máquina de lavar, nunca teve, nunca terá. Alimenta manhas de seu ofício. Conserva todas as barras amarelas de sabão no mesmo pote, no aproveitamento total das sobras.

– Quando acaba o fim, posso inventar novo fim com as paredes do sabão no vidro.

Felicidade é do tempo que se lavava roupas no rio. E andava com trouxas na cabeça.

– Gosto de trabalhar à moda de céu aberto. Já andei pelas campanhas sem fim do pago. No Rio Grande tudo é mais fácil de existir.

Felicidade tem forças sigilosas nas veias. Soca, duro, as camisas, esfrega, bate o pano com violência. É uma boxeadora dos botões.

– A limpidez vem do movimento da água.

Felicidade é poeta e nunca leu um livro de poemas.

– Poema é cachorro lambendo meu joelho esfolado.

Felicidade preserva o melhor do dia para ir ao supermercado e conversar com as balconistas. Os estranhos ensinaram a se cuidar mais do que seus familiares.

– As gurias são minhas colegas de escola.

Felicidade existe? Às vezes acho que estou delirando e ela é sonho avulso de uma criança ou uma adolescente extraviada em alguma velhice.

Felicidade mora dentro de uma casa de madeira que fica dentro de uma casa de alvenaria. Ao invés da tradicional reforma, construiu uma casa no interior da outra. A porta antiga da frente abre para o quarto.

– Assim que somos: a infância dentro do adulto.

Felicidade acorda ao meio-dia e se acende de madrugada. Limpa os móveis ouvindo Roberto Carlos. Prefere banho de bacião e o luxo de despejar canecas de água quente no corpo. Aprecia um churrasquinho com bolacha maria e café preto.

Felicidade é esquisita de bonita. Não lembra as pessoas. E não sofre com isso.

– Sorte delas que lembro de mim para poder conversar.

Felicidade põe pinturinha nas mãos para assistir à novela e acenar aos artistas da tela.

Felicidade passeia com sua bolsa de croché pela Praça Internacional.

Felicidade é.

– Estou feliz para ser feliz um dia.





Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 4 e 5/12/2011
Porto Alegre, Edição N° 16933
Conheça a sedutora Felicidade

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

RÁDIO GAÚCHA


Prometo irreverência no café da manhã. Passo a fazer comentários na Rádio Gaúcha (600 AM e 93.7 FM) todas as terças, sextas e sábados, às 7h20, dentro do programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola. Minha estréia é dia 10.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

TENHO UMA FILHA DE 18 ANOS

Foto de Cínthya Verri

Mariana completou 18 anos ontem. Ela diz pai pai... sempre duas vezes, acho engraçado, não é apenas pai!, mas pai pai..., um chamado reticente, com eco de montanha, a me procurar pela casa. Talvez dobre a paternidade para recuperar os dias e os anos que não esteve comigo. Moramos juntos desde 2010. Já sofremos a distância, o medo de ser esquecido. Agora dividimos o mesmo telhado de estrelas para comemorar sua maioridade.

Tenho uma filha adulta. Uma filha crescida. Sinto-me importante, não me vejo envelhecido.

Mariana é altamente vaidosa de suas palavras. Exatamente como eu.

Lê devagar para não perder nenhuma frase. Não suporta uma palavra sem significado. Carrega minidicionário na bolsa. Nunca ri disso, acha que o escritor é um turista da própria língua, não tem vergonha de perguntar o óbvio e colecionar sons.

Mariana é uma tímida esbaforida. Exatamente como eu.

Aquela figura atrapalhada que tenta não chamar atenção e acaba atraindo o dobro do apelo. Entrará de fininho em sala de aula, atrasada, e derrubará metade dos livros. A turma inteira vai girar o rosto em sua direção.

Mariana é ansiosa. Exatamente como eu.

Para esperar um torpedo de namoro, inventa o inferno. Para esperar uma reconciliação, come uma caixa de bombons. Para ganhar um abraço, briga e grita como um bicho. O que mais desagrada na história do mundo é a paciência. Tem uma pressa para ser feliz. O amor é para ontem, hoje é tarde.

Mariana é distraída. Exatamente como eu.

Não que tenha problema de atenção, é o contrário, um excesso de escuta, acompanha duas ou três conversas simultaneamente e pretende participar de todas.

Mariana é debochada. Exatamente como eu.

Cria conflitos para sair do tédio. Faz piadas solitárias, provoca as pessoas a tomar partido, polemiza por prazer e testa os limites dos outros. Poucos entendem sua rápida mudança de posicionamento: desagrada com fúria e logo avisa que era brincadeira.

Mariana tem meus olhos tristes e caídos, minha paixão por dormir tarde, meu receio dos armários abertos, minha curiosidade pelas geladeiras dos amigos, minha superstição com escadas, minha inclinação por roupas coloridas e extravagantes.

Mas sou mais pai quando minha filha não se parece comigo. Quando ela não me repete. Quando ela é ela e mais ninguém.

Mariana, por exemplo, perdoa com facilidade a vida, bem diferente de mim, que não desculpei o tempo que não fiquei perto dela.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 27/12/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16929

sábado, 24 de dezembro de 2011

O MELHOR ASSADOR DO RIO GRANDE

Como Dom Pedro I, mas às margens do Rio Pelotas, Chico ergue sua obra-prima: a costela em espeto de pau. Foto de Tadeu Vilani.

Honrando o fio do bigode grisalho, Chico Fialho faz coisas que ninguém espera.

Descarna um boi inteiro e estende o animal em varal a céu aberto como obra de arte. O bicho desventrado é um quadro expressionista na moldura do pampa.

Sua manta de charque impressiona todo açougueiro: o lanho preciso, cirúrgico, de quem conhece cada encaixe do osso do rebanho.

Francisco Fialho, 79 anos, natural de Vacaria, tornou-se uma lenda de Lagoa Vermelha, cidade de 28 mil habitantes, a 314 quilômetros de Porto Alegre.

Já assou para 4 mil pessoas, abriu mais de 6 mil cabeças de gado, já foi tricampeão da Festa Nacional do Churrasco, montou uma das mais saborosas linguiças campeiras da região.

– Churrasco ou morte! – grita o paladino, vestido a caráter, em cima do cavalo, imitando Dom Pedro I, com a mudança de cenário do Rio Ipiranga para o Rio Pelotas.

De boina, estojo de 40 facas e botas de couro, Chico é o sonho de casamento da salada de maionese. Dispensa ajuda para reger a fumaça da chaminé.

Nos anos 50, ao lado de Celso Teles, criou o corte alongado da carne, retangular, que abrasa de modo uniforme. Uma invenção tão importante quanto a térmica para o chimarrão.

– É uma oposição ao churrasco tradicional de pedaços, onde a carne fica solta e irregular. Espetamos maminha e alcatra tudo junto – explica Fialho.

Ele fecha o corpo do assado igual a um chef selando o filé. Quatro centímetros de espessura, sem abrir durante o cozimento, para gerar o transbordante suco somente na hora de comer. A incisão na costela é vertical, de cima para baixo, em vez do costume horizontal das churrascarias.

Chico tem rituais quase religiosos. Ele usa exclusivamente lenha e espeto de pau (o de ferro aquece a carne por dentro mais do que deveria), e recusa conservantes (“Quero picanha com idade honesta. Como eu, que não pinto o cabelo”).

Sua mais veemente loucura é conversar com o fogo. Escuta o crepitar tal nuances de uma voz.

– O fogo manda e eu obedeço. Diferencio os estalos, eles me avisam do andamento dos espetos. Vi fogo pedir socorro e churrasqueiro nem acudir.

A temperatura dos tijolos, bem como sua cor, também revela a qualidade da churrascada.

Uma de suas regras é não beber. Considera a embriaguez do assador o principal motivo do sabor emborrachado da refeição.

– Não tomo bira naquele momento, não existe como servir dois senhores ao mesmo tempo.

Chico é sério, compenetrado, profissional, desaparece na boca das brasas. Ele controla a altura do fogo com pá de terra.

– A terra é minha parceira, amansa a labareda e não agride como a água ou o vento – diz.

Sábio em seu ofício, recomenda um decálogo para prevenir tragédias gustativas:

1) Não abane o carvão com papel, é uma demonstração clara de desespero.
2) Evite avental, fogo não gosta de babá.
3) Não tente atalhos, afobar o serviço, atender ao atraso de uma visita. Chama é como mulher. Quanto mais apressa, mais ela se atrapalha para sair.
4) Churrasco é igual a paella. Pontual, não se disfarça madureza.
5) A carne deve começar a assar pelo lado do osso, não pela gordura. A gordura é o grande final artístico, responsável pelo acabamento.
6) Não vire a carne de um lado para o outro, churrasqueira não é pebolim.
7) Não é melhor salgar demais do que não salgar. Os dois jeitos estragam o churrasco.
8) Com pedaço excessivamente grosso, a carne ficará crua.
9) Bem passado e malpassado acontecem ao mesmo tempo quando o churrasco dá certo.
10) O silêncio de quem come é sinal de satisfação. Só o gemido supera a quietude.

O único mandamento que ele admite quebrar é o décimo. Chico ama elogio escandaloso.

– O churrasqueiro é sempre o mais carente da família, e que a bajulação siga de preferência pela semana, até o próximo churrasco.



Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 30, 24 e 25/12/2011
Porto Alegre, Edição N° 16927
Conheça as táticas do assador

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

LER E AMAR

A Revista UMA, edição de dezembro, elaborou um especial de 40 livros para ler e amar durante as férias. Borralheiro (Bertrand Brasil, 256 páginas) está entre eles.


Publicado pela Revista UMA
Edição 127, Dezembro de 2011
Ps. 148-153

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

APCA

Arte de Rodrigo Rosa

A Associação Paulista dos Críticos de Arte premiou meu livro "Filhote de Cruz Credo" (Girafinha), que aborda o bullying na escola, escolhido a melhor obra infanto-juvenil de 2011.

Cinquenta e cinco criticos definiram os destaques do ano em Arquitetura, Artes Visuais, Cinema, Dança, Literatura, Música Popular, Música Erudita, Rádio, Teatro, Teatro Infantil e Televisão. A cerimônia de entrega do troféu acontecerá em 13 de março de 2012, às 20h, no Teatro Sesc Pinheiros, em São Paulo.

LITERATURA

Romance: “Mano, A Noite Está Velha” (Planeta), de Wilson Bueno
Ensaio/Crítica: Coleção “História do Brasil Nação -1808-2010”, organização de Lilia Moritz Schwarcz (Objetiva)
Infanto-Juvenil: “Filhote de Cruz Credo”, de Fabrício Carpinejar (Girafinha)
Poesia: “O Metro Nenhum”, de Francisco Alvim (Companhia das Letras)
Contos: O Livro de Praga, de Sérgio Sant'Anna
Tradução: ”Guerra e Paz”, de Tolstói, por Rubens Figueiredo (Cosac Naify)
Prêmio Especial: Reedição de “História da Literatura Ocidental”, de Otto Maria Carpeaux (Leya/Cultura)

LENÇO DE PANO

Arte de Magritte

Minha infância já foi inteiramente de pano: as fraldas, os cueiros, os guardanapos, tudo se sujava e se lavava. Nada era descartável.

O uniforme escolar incluía um lenço branco, guardado no bolso do abrigo.

Mesmo quando a merendeira se transformou numa mochila de três quilos de cadernos e livros, permanecia transportando o paninho branco para prevenir espirros e coriza (o Kleenex custava caro, e seu uso se restringia a consultórios médicos).

O lenço representava um item obrigatório durante o dia. Formava um sinal de educação assim como repartir os cabelos ao meio com brilhantina e nunca cansar de dizer “por favor”, “com licença” e “obrigado”.

Antes de sair, a mãe me lembrava de levar o lenço mais do que o casaco. O objeto dividia a gaveta com as cuecas e as meias. Sem ele, ficaria nu socialmente.

Dobrei muita gripe em seus quadrados, livrei-me de vários constrangimentos em seus vincos.

Lenço não se emprestava a irmão ou ao colega. Poderia ser oferecido num ato de gentileza e socorro, mas nunca emprestado. Havia nele uma exclusividade de escova de dente. Participava do enxoval de amadurecimento, ao lado da toalha de banho e de rosto. Para não ser extraviado, trazia as iniciais do dono.

O simpático adereço com rendas nas bordas atravessava todas as idades. Atendia, ao mesmo tempo, à higiene das crianças e à aparência dos adultos. Dos fundilhos da calça subia o andar da roupa e se instalava no bolso do paletó como sinônimo de elegância.

Um autêntico cavalheiro não andaria na rua sem o buquê de linho na lapela. Ajudava a secar o suor do rosto, e consistia numa potente arma de sedução: sacado na hora H para conter as lágrimas das mulheres e evitar o borrão da pintura. Bastava ceder o lenço, que a dama suspirava. Em contrapartida, a mulher conservava um lenço de reserva na bolsa para limpar o sangramento masculino da boca, quando o sujeito se engalfinhava com concorrentes por amor a uma musa.

Fui procurar um lenço movido por nostalgia, para dar aos meus filhos. Devassei as lojas e feiras de artesanato e não achei o produto. Tinha que explicar ainda. Explicar nos envelhece.

– Tem lenço?
– Lenço?
– De pano, de nariz, de enxugar a testa?
– Ah, sim, isso é muito antigo, não tem não.

Não se vendem mais lenços em Porto Alegre.

Não verei de novo aquela cena portuária das pessoas se despedindo com as pequenas bandeiras brancas.

Lenço nos ensinava a acenar. Era o professor da despedida. O professor de nossa saudade.

Adeus, lenço!




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 20/12/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16923

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

FLORESCENDO NA PELE




Três leitores escreveram meus versos na pele: Daniela (costas), de Curitiba, Vagner (peito), de Pelotas, e Carol (pé), de Porto Alegre. Todos tatuaram a frase "Não me deixe viver o que posso, que me seja permitido desaprender os limites".

domingo, 18 de dezembro de 2011

SEMIDEUSES CONTRA HOMENS

Rolo Compressor acordou cedo para Santos e Barcelona.

Desculpa, não era futebol de salão, e sim handebol, vôlei, basquete. Os ilusionistas grenás calçaram as mãos com chuteiras. Fica uma só certeza: havia dois esportes diferentes praticados, ao mesmo tempo, hoje no gramado de Yokohama.

sábado, 17 de dezembro de 2011

UMA PEDRA DE US$ 10 MILHÕES

O advogado Fernando Dias foi convidado a escolher um presente da fazenda do amigo e ex-presidente Emílio Médici: escolheu a pedra emoldurada, um afago do presidente Nixon. Fotos de Tadeu Vilani.

Uma pequena pedra de 1,14 gramas e um pouco menos de 1 cm é o maior patrimônio cultural de Bagé, reduto de 112 mil habitantes, a 373 quilômetros da capital gaúcha.

A pedra negra e esponjosa, semelhante a um carvão, acondicionada num protetor de acrílico, é um dos 78 fragmentos da Lua existentes no mundo, o que ficou do legado das 378 amostras das duas únicas expedições americanas, feitas pela Apolo 11 e Apolo 17.

Vale cerca de US$ 10 milhões no mercado negro de colecionadores e aficcionados.

Com paradeiro trocado semanalmente e sob proteção de severa escolta policial, o raro material é um diamante nos sapatos de Lia Maria Herzer Quintana, 50 anos, reitora da Universidade da Região da Campanha e guardiã intelectual do Museu Dom Diogo de Souza. Ela dormia melhor na condição de professora do curso de Arquitetura. Assim que assumiu a Urcamp em dezembro, sofre de insônia cogitando planos criativos para resguardar o tesouro dado pelo presidente Richard Nixon, dos Estados Unidos, em 1973, como ação diplomática para sensibilizar chefes de Estados.

Quem recebeu a pedra e doou para a cidade foi o presidente Emílio Garrastazu Médici. Na época, o valor da peça era simbólico, já que se projetava a intensificação do acesso à Lua e excursões turísticas num futuro próximo. Mas Júlio Verne saiu de moda, os Estados Unidos frearam a corrida espacial e a mera relíquia tornou-se hoje uma diva cósmica.

Exposta no Museu Dom Diogo de Souza de 1973 a 1999, a pedra não despertava interesse. Nunca teve um histórico de atração, vaiada mais do que aplaudida, localizada antes na parede de um dos corredores menos concorridos do casarão colonial da Rua Emílio Guilayn.

– As crianças achavam a bolita sem graça, acabava sendo a grande decepção das escolas – lembra a professora Isabel Leaes, 51 anos.


O objeto permaneceu obscuro durante três décadas, anônimo, encravado numa bandeja de madeira. Com tranquilidade, traças devoravam o veludo verde das costas do retábulo.

A discrição se aproximava do abandono. Houve um roubo no prédio em 1984, e os ladrões nem se interessaram pela sua insólita presença; privilegiaram o saque de artefatos da Guerra do Paraguai.

– A mentalidade mudou e retiramos de exposição em 2000, quando um negociante da Flórida obteve uma pedra igual à nossa ilegalmente de Honduras e tentava revender por US$ 5 milhões – explica a reitora. – Desde lá, ela não voltou à vitrine por questão de segurança.

– Retiramos rapidamente vestígios e a ficha da pedra, para não ser rastreada – desabafa a funcionária Maria Luísa Pegas, 53 anos.

O retorno triunfal aos olhos do público será em março de 2012, no encerramento da comemoração de dois séculos de Bagé. O museu está montando uma exposição especial e mostrará o mapa do vale lunar de Taurus-Litrow, onde a pedrinha foi retirada pelos astronautas Eugene Cernan e Harrison Schmitt, na última missão da Apolo, em 19 de dezembro de 1972.

– A intenção é triplicar a visitação ao museu, atualmente na faixa de 6 mil pessoas ao ano – revela a diretora Carmem Barros, 51 anos.


O advogado Fernando Sérgio Lobato Dias, 65 anos, é o pivô da chegada da rocha – de curioso número 70.017 – ao município. Amigo de Médici, visitava o conterrâneo bajeense em sua fazenda em Dom Pedrito.

– Ele me apresentou sua coleção particular e perguntou se me interessava por algo. Eu me vidrei no talismã e ele fez questão que levasse como cortesia. Entreguei o material ao historiador Tarcísio Taborda, que saberia cuidar do contexto de sua exibição para comunidade – esclarece Fernando.

– Não imaginava que ela atingiria uma cotação astronômica, poderia ter levado uma camiseta de futebol ou qualquer outra coisa. São casualidades inexplicáveis.

Bagé é uma cidade de sorte. Uma cidade virada para a lua.






Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 34, 17/12/2011
Porto Alegre, Edição N° 16920
Conheça o cobiçado fragmento lunar em vídeo

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

CABELO, BARBA E CHAPINHA


Neymar não fez somente barba e cabelo, mas chapinha no 7 do Kashiwa. Ele não posa diante do oponente, age, todo drible é um passe, um passe para si mesmo.

Acompanhe considerações sobre o primeiro jogo santista no Mundial.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

GUIA MICHINELÃO DE HOTEL

Arte de Richard Estes

Sobram críticos dispostos a definir se um hotel merece cinco ou quatro estrelas. Nunca faltaram voluntários ao luxo. Qualquer um quer fazer parte da equipe secreta do Guia Quatro Rodas.

Por outro lado, já não é fácil conhecer um palpiteiro para nos prevenir dos piores cafofos, dos muquifos sem nenhuma constelação, com neon do letreiro falhando e eletrocutando insetos.

Para evitar roubadas, formulei o primeiro Guia Michinelão do país.

Não espere nada da estrutura hoteleira se o recepcionista entrega o controle da TV com a chave do quarto. Não espere nada mesmo se ele entrega também as toalhas de banho. Não espere nada sinceramente se ele entrega junto um rolo de papel higiênico. Isso é acampamento.

Não espere nada do quarto se não consegue efetuar ligação para a recepção. Não espere nada mesmo se não observa um telefone no local. Não espere nada sinceramente se apitar um interfone na parede. Isso é cortiço.

Não espere nada se a porta depende de uma manha para girar a chave. Não espere nada mesmo se as lâmpadas estão queimadas. Não espere nada sinceramente se o frigobar aparece vazio e desligado. Isso é a casa da sogra.

Não espere nada se não há ar-condicionado. Não espere nada mesmo se não há ventilador. Não espere nada sinceramente se não há janela. Isso é presídio.

Não espere nada se a TV não disponibiliza pay per view. Não espere nada mesmo se a TV possui só canais abertos. Não espere nada sinceramente se a TV apenas transmite o circuito interno do prédio. Isso é zeladoria.

Não espere nada do banheiro que tem uma cortina de plástico floreada no box. Não espere nada mesmo se não vê nenhum desnível do piso demarcando as áreas da privada, do chuveiro e da pia. Não espere nada sinceramente se tem um rodo atrás da porta. Isso é serviço militar.

Não espere nada quando entrar no quarto e o lixo transborda de sujeira. Não espere nada mesmo quando deitar e comer mechas loiras do travesseiro. Não espere nada sinceramente se você é careca. Isso é trabalho comunitário.

Não espere nada quando o hotel oferece prostitutas na recepção. Não espere nada mesmo quando o hotel oferece prostitutas no corredor. Não espere nada sinceramente quando chegar ao quarto e encontrar uma prostituta na cama, com o valor do programa incluso na diária. Isso é bordel.

Não espere nada quando não achar cardápio no quarto. Não espere nada mesmo se não achar a lista telefônica. Não espere nada sinceramente se não achar a Bíblia na gaveta.

Todo hotel tem Bíblia. Desculpe informar, mas você está no inferno.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 13/12/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16916

sábado, 10 de dezembro de 2011

FRANKENSTEIN CAMPEIRO

De sua casa, ornamentada com uma escultura de Mano Lima, Chapéu Preto não perde o mundo de vista. Foto Nauro Júnior.

Chapéu Preto teve que desmontar toda sua escultura de cinco metros e 1,2 mil quilos. As pernas estão na varanda, o tronco repousa no terraço, a cabeça e os braços esperam a ressurreição num canto cinza do pátio.

A obra terminou esquartejada e condenada ao esquecimento. Foi censurada na Expointer do ano passado e nenhum administrador de parque ou praça se interessou em adquiri-la. Mesmo de graça.

– 832 dias de trabalho postos fora e 836 fios de cabelos do meu Frankenstein que não serão vistos – contabiliza o artista, que marca cada dia de um trabalho novo com um risco na parede, à maneira de um presidiário.

O motivo do boicote é moralista. A figura masculina surge superdotada, com o membro protuberante à mostra. Os educadores caracterizaram a criação como uma afronta aos bons modos, os políticos reconheceram como atentado violento ao pudor.

– Imagina se estivesse excitada. Seria muito maior.

O homem feito de sucata homenageia Trançudo, sedutor folclórico da região da campanha do início do século 20. A lenda aponta que ele contava com um órgão de 32 cm.

– Não tenho culpa se o aparelho de David de Michelangelo é pequeno – não se conforma Chapéu Preto, pseudônimo de Derli Viera da Silva, 61 anos, um dos principais expoentes da arte primitiva no Brasil.

Derli transformou sua casa num ninho de metal, sonho de qualquer ferragem. Guarda 14 malas de ferramentas e trincheiras de quinquilharias pelos corredores. Sua oficina de fundição funciona a todo vapor de segunda a domingo, uma locomotiva de faíscas e metal derretido.

– Gosto de ser louco, não de ser burro.

Ele trabalha sem parar, mas não é recompensado. Vive na pobreza, com o salário mínimo de aposentado.

– Eu me levanto, nunca me acordei – descreve sua rotina incansável juntando sucata e elaborando ciborgues campeiros das 4h30min às 22h30min.

Um fornido saco de arroz congelado costuma ser a refeição do mês, tanto no almoço quanto na janta. Arranca duas colheradas e põe a comida de volta na geladeira.

– Sou 100% de ferro na alma. Não adoeço, enferrujo.

Apesar de completar cinco décadas de escultura, os pedidos e encomendas são milagrosos. Alguns clientes esquecem de buscar e pagar as mercadorias.

Aceita tarefas ínfimas para salvar o orçamento. Entalha mesas e portas, se for o caso. Faz brinquedos e troféus de futebol em emergências.

– Os maiores artistas morreram na miséria, acho que não posso enriquecer.

Mesmo atolado de preocupações, a esperança de Chapéu Preto é alegre. Um cumprimento do vizinho e ele já reaquece o otimismo. Não há quem não o conheça em Alegrete, cidade de 78 mil habitantes, a 487 km da capital. É um ponto turístico do distrito de Caverá. A fachada residencial chama atenção. Traz uma estátua de cinco metros, que reproduz o gaiteiro Mano Lima. O cenário exótico ainda recebe móbiles, rodas de carreta e placas com declarações de amor à querência.

Loquaz, cantante, nunca tira o chapéu, desde que se apaixonou por Santos Dumont, o pai da aviação, e desejou imitar seu acessório sem abas. Bigodudo, grisalho, olhos triangulares e sobrancelhas graves, usa de propósito um avental de couro e calças rasgadas. Para agir como um mendigo diante da inspiração.

– Não me visto bem, não é algo que me agrada. Aquele que muito se arruma não sabe nem amarrar um arame – diz.

Sua história é mais triste do que se imagina. Atrás da irreverência, esconde feridas fundas, que não cicatrizam com o sol e o tempo. Sua esposa Joana Maria, 51 anos, sofre de depressão e mora no asilo. O mesmo acontece com sua filha Katiusca, 36 anos , internada numa clínica.

– Minha solidão é de Jó. Leia a Bíblia para me entender – desafia.

A infância ainda foi mais dura. Sua mãe Irene morreu de parto, o pai Aristides não suportou a perda, envenenou os três irmãos – Alcides, 2 anos, Alcione, 3 anos e Delmar, 4 anos – com Tatuzinho e se matou em seguida.

– Não morri porque corri para longe. Meu coração corre até hoje dali.

Órfão aos 7 anos, recorreu à arte para se distrair dos pensamentos turvos. Não economiza sua postura crítica. Como um bom filho da República Federativa do Alegrete, provoca a Capital:

– Laçador a pé não existe. Cadê o cavalo do laçador?

Nem o poeta Mario Quintana escapou de sua ironia. Ficou chateado com o ilustre conterrâneo, quando ele comentou que nasceu em Alegrete por acidente.

– A declaração me magoou como a morte de um segundo pai.

Ele foi atrás do Quintana na Feira do Livro de Porto Alegre, em 1981. Encontrou o escritor sentado na Praça da Alfândega, debaixo dos jacarandás, e despejou uma maldição em versos, demonstrando que também era poeta:

– Escrever é coisa fácil/ e confortável demais. /Difícil é esculpir defunto/ sem os restos mortais.

O autor da Rua dos Cataventos não entendeu a ameaça e fugiu de volta para a redação do Correio do Povo.

– Admirar é desafiar – explica a traquinagem.

A aspiração de Chapéu Preto é construir um gaúcho gigantesco com cuia na mão em Torres, às margens do Rio Mampituba, um personagem maior do que o Padre Cícero de Juazeiro do Norte (CE), maior do que a Usina do Gasômetro, que possa ser vista do céu pelos aviões, planadores e, de preferência, pelo anjo Malaquias.





Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 31, 10/12/2011
Porto Alegre, Edição N° 16913
Conheça o ateliê maluco de Chapéu Preto

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

SACRIFÍCIO DO BEZERRO DE OURO


"Não se pode dormir com o inimigo imaginário - uma regra básica da ética amorosa."

Ele terminou a relação para ficar com colega de faculdade, logo aquela que a ex-namorada tinha mais ciúmes. Depois quis voltar.

Consultório Poético mede as palavras. E elas são duras.

Confira meu retorno aos palpites. Aqui.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

IRRESISTÍVEL

Arte de Man Ray

Três imagens perturbam seriamente os homens.

1ª – A calcinha nos tornozelos.
2ª – A alça do sutiã deslizando pelos ombros.
3ª – O turbante na cabeça na saída do banho.

Formam a santíssima trindade de um relacionamento. Podem vir, depois, TPM, DR, sogra, que a gente aguenta. São paisagens domésticas, lindas, que indicam o quanto nos aproximamos do universo feminino. Se atingirmos a trinca com uma única mulher, nossos olhos estarão grávidos e casaremos. Aceitaremos casar.

A primeira cena sempre foi um fetiche dos amantes, momento derradeiro do sim. Tristes os casais que não se tiram a roupa, tristes os casais que se despem sozinhos e chegam prontos ao ato. Sexo promissor é strip pôquer, combinando desafio, provocação e malícia. Você tira a blusa dela, ela tira sua camisa, você tira a saia dela, ela tira sua calça. Já começam a relação se ajudando – um indício de cuidado e amor no futuro.

Quando uma mulher deixa, então, você baixar a calcinha, demonstra um absoluto voto de confiança. O melhor é quando a peça fica presa nos joelhos e ela levanta um pé de cada vez, como quem pula corda, para se desembaraçar por completo das vestes. Não há como resistir, trata-se de uma dança que culminará em longo abraço.

A segunda cena é sutil e não menos agradável. É coisa de café da manhã. Ela está com uma roupa leve, camisetão branco, muito diferente da produção da noite passada. Não sabe mais escolher como gosta dela; talvez perdeu a censura, talvez ela superou as expectativas. Descobriu que não há como pensar e sonhar ao mesmo tempo; e desiste de pensar. A deusa pega iogurte e sucrilhos. Você não é mais humano, mas uma câmera registrando os mínimos movimentos. Cliquecliqueclique. Na hora de sentar, o fio do sutiã escapa e o ombro dela brilha como a Pedra do Arpoador. O caimento da alça gera uma surpreendente declaração de fidelidade masculina. Assim como ela arrumaria sua gola torta, você cai na cilada e levanta a alça. Ela percebe que nada mais escapa de seu olhar. Você se importa muito com ela. Você é agora ela.

A última cena é a mais sublime. Ela não tem vergonha de sua avaliação, acostumou-se com sua companhia, permite que assista aos bastidores do espelho. Sua paixão sai do banho com uma toalha presa nos seios e uma enrolada nos cabelos recém-lavados.

Apesar de abobado pela intimidade, preste atenção na perfeição do nó da toalha da cabeça. É o cadarço que nenhum marmanjo aprendeu a amarrar, que nenhum escoteiro decorou, é o que fará uma mulher prender você a vida inteira.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 06/12/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16909

ABANDONO DE CÃES SERÁ ALVO DE CAMPANHA

Prefeitura e concessionária mobilizam-se contra o descarte de animais de estimação em rodovias

LEO GERCHMANN
leo.gerchmann@zerohora.com.br

Integrante de ONG de proteção a animais, Nair adotou cão resgatado pela nora em rodovia de Canoas. Foto de Mauro Vieira

Leia (ou releia), abaixo, passagem de um texto escrito pelo cronista Fabrício Carpinejar em sua coluna de Zero Hora, na edição do dia 29 de novembro.

“Repare na insensibilidade: o dono mente ao seu cachorro que irão passear, para desová-lo no corredor da morte. Calcule o terror do bichinho quando não entende o castigo, e corre uivando, desesperado, atrás de um carro que nunca será mais o seu.”

A repercussão da crônica “Parem de matar cachorros!”, em que Carpinejar fala sobre o ato cruel de descartar animais de estimação à margem de rodovias, surpreendeu o colunista. Além da reprodução nas redes sociais, Carpinejar recebeu, no dia da publicação, mais de 50 mensagens de leitores elogiando o texto e/ou relatando situações similares.

O abandono de animais é um dos casos de maus-tratos citados no artigo 32 da Lei Federal 9.605/98, e pode levar o infrator à detenção de até um ano e multa. A possível punição, no entanto, não coíbe o crescimento da prática nesta época do ano.

Por isso, a Secretaria Especial dos Direitos Animais da prefeitura de Porto Alegre e a Concepa iniciam no dia 7 de janeiro, no pedágio de Gravataí, uma campanha de conscientização contra o abandono de animais. Segundo a concessionária, 32% dos atropelamentos de cães na Freeway ocorrem no trecho Gravataí-Porto Alegre.

– O alerta será importante. Os abandonos ocorrem com mais frequência no verão, quando as pessoas vão para o Litoral – diz a veterinária Márcia Generasca.

A organização da campanha recém se iniciou. É certo que o prefeito José Fortunati e a primeira-dama, Regina Becker, entusiastas da defesa dos animais, estarão no local. Devem ser promovidas atrações como a doação de ração e distribuição de folders.

Presente nas BRs, a Polícia Rodoviária Federal enumera casos de abandono. Os patrulheiros testemunham desde gente que joga o animal pela janela do carro para fugir rapidamente até papeleiros que deixam os bichos durante a madrugada e lhes dão as costas, saindo em marcha batida para não serem identificados ou parados.

Certa vez, os próprios paramédicos da Concepa adotaram uma cachorrinha e a batizaram de Zilda. Confeccionaram até uma roupinha de paramédica para ela. Até que, em um assalto ao pedágio, a mascote foi baleada e morreu. Tempos depois, adotaram outro cão, o Risco Zero. Acostumadas ao trabalho na estrada, são pessoas que conhecem bem o destino trágico dos cãezinhos abandonados à selvageria das estradas.

PRÁTICA CRUEL

O abandono de animais na estrada é comum, mas a reação de quem se comove com a prática é rápida. Na quinta-feira passada, bastou um comentário do apresentador Antonio Carlos Macedo, do programa matutino Gaúcha Hoje, da Rádio Gaúcha, para mobilizar um resgate.

Macedo comentou pesaroso o fato de um cãozinho estar abandonado na rodovia Novo Hamburgo-Porto Alegre (BR-116), em Canoas. A auditora Tatiana Feidel, 25 anos, ouviu o apelo e enfrentou a fúria de outros motoristas ao parar seu carro, por volta das 7h, e salvar o bicho nas imediações da Estação Fátima, do trensurb.

– Avistei o cão junto ao muro. Para ele ter chegado ali, só se pulou o muro ou alguém o jogou. Fui xingada pelos outros motoristas – conta Tatiana, que estava indo para o trabalho.

O cão foi doado para a sogra de Tatiana, Nair Schorn, 49 anos, que já toma conta de outros 25. Aparentando entre 10 e 12 anos, o mascote recebeu um nome bem sugestivo.

– O BR está bem e vai ficando aqui comigo – diz Nair, que integra uma ONG de proteção aos animais.

Nas férias

NO HOTEL
Confira dicas para que o seu animal fique bem cuidado nas férias de verão.
- Certifique-se que o local tem veterinário
- Deve exigir vacina dos hóspedes e ter controle parasitário
- Veja se há espaço para o animal se exercitar
- Devem ser deixados os alimentos aos quais o animal está acostumado
- Deixar com os animais os próprio potes de comida, panos e brinquedos

EM CASA
- Fechar portas e janelas
- Ter confiança na pessoa que cuidará do animal
- Orientar que o cuidador mantenha as rotinas de alimentação e passeios
- Deixar telefone de veterinário com o cuidador

NA CASA DE OUTRA PESSOA
- Saber se os donos da casa gostam e são cuidadosos com animais, bem como seus filhos
- Saber se o animal vai aceitar bem a casa onde ficará
- Saber se há outros animais e se eles são receptivos ao hóspede

LEVAR JUNTO
- O animal tem de estar vacinado
- Providenciar malas de transporte para carga viva ou cintos de segurança especiais
- Ter à mão tranquilizantes e medicamentos contra vômitos
- Saber se a casa onde o animal ficará tem espaço adequado
- Manter a rotina do animal
- Dar vermífugo no retorno, especialmente se as férias foram na praia

Fonte: Fonte: Márcia Generasca, veterinária

Publicado no jornal Zero Hora
Geral, p. 28, 06/12/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16909

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

POR QUE CONVERSAR COM O ADOLESCENTE?


- O palco para o adolescente é estar próximo.
- Quem está no palco está longe.
- A melhor forma de fazer amizade é a gafe.
- A melhor forma de ser esquecido é tentando ser agradável.
- Não respeita a bajulação. Admira a gozação.
- Deixa eu dormir mais um pouco é a frase predileta durante a semana.
- Para que dormir? é a queixa predileta do final de semana.
- Ele não tem nenhuma paciência para mentir, nem para contar a verdade.
- Está ansioso por algo que pode acontecer de diferente, mas não cansa de repetir o que deu certo.
- Tem esperança no amor, e tem mais esperança no ódio.
- Fica editando as conversas que já foram feitas.
- Sempre pensa que perdeu um amigo por algo que foi dito. Só que ninguém nunca lembra a palavra.
- Não olha nos olhos do espelho. É feio encarar o passado.
- Não quer lembranças, mas fotos, provas de que existe.
- A internet é a verdadeira televisão. A televisão é a falsa internet.
- Adora concordar para discordar, e discordar para concordar.
- Toda a confissão é feita a partir do outro.
- Curte constranger para se defender, tem horror às perguntas pessoais.
- Chora mais fungando.
- É atento quando as pessoas não se entendem.
- Cochila com o entendimento.
- Rejeita quem mexe em seus cabelos. Parece que limpa as mãos.
- Ele se afirma falando alto.
- Ele se nega cochichando.
- Não aceita imposição, fica indeciso quando precisa escolher.
- Prefere lugares conhecidos, mas procura novidades.
- Escreve na redação aquilo que gostaria de ser para os pais.
- Escreve no Orkut e Facebook aquilo que gostaria de ser para os amigos.
- Não escreve aquilo que realmente é - seria muito foda.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Fronteiras do Pensamento
Domingo, 04/12/2011, ps. 10-11

domingo, 4 de dezembro de 2011

A FORÇA DE UM CALCANHAR

- Nunca parei para pensar, posso fazer isso jogando - disse Sócrates.

E ri da iluminação trivial.

Nossa homenagem ao ídolo corintiano, ex-capitão da Seleção Brasileira, que morreu aos 57 anos, na madrugada de domingo (4/12).

sábado, 3 de dezembro de 2011

O PROFETA DAS PEDRAS

Aos 71 anos, o escultor Bez Batti se define como “um geólogo dos sonhos”. Fotos de Jean Scharwz

Ele conversa, escuta, lê os pensamentos das rochas. É imensamente apaixonado a ponto de dormir com um seixo nos pés e outro nas mãos.

João Bez Batti, 71 anos, nasceu escultor. E pretende morrer pedra.

Sua rotina é esculpir basalto no ateliê em Bento Gonçalves, cidade de 100 mil habitantes, situada a 113 quilômetros de Porto Alegre.

– Meu pai ralhava: joga a pedra fora, meu filho. E eu queria levar para casa, cuidar, dar família.

A pedra foi seu boneco, seu travesseiro, sua namorada, seu amigo imaginário, sua pandorga, sua estrada, seu caderno, seu lápis, seu pião, seu analista.

– Eu me achava esquisito, sofri muito com o preconceito por guardar entulhos no quarto. Não tive berço, mas carrinho de mão.

Penúltimo dos cinco irmãos, o pai transbordava seriedade e castigo. Não admitia seus devaneios de artista, onde enxergava figuras escondidas nas nuvens e nos móveis.

– Acho que vim tarde demais, quando meu pai já era infeliz. Não trocou 10 palavras comigo a vida inteira.

O coração paterno era também de pedra. Não é por nada que carregou seu nome. Pai de pedra, filho de pedra.

– O som é a radiografia da pedra. Pela batida, sei se tem fissura e localizo as falhas por dentro.

A intimidade não é exagero lírico. Até seu cachorro Guadalupe não apanha galhos e madeiras como os demais cães. O pastor alemão transporta tijolos com a boca.

Bez Batti foi um suicida ao contrário. Furtava o revólver da família para servir de inspiração. Tentava imitar as curvas da coronha.

– Peguei em armas para defender minha criatividade.

O que salvou um dos principais criadores brasileiros foi o Rio Taquari, o qual caracteriza como seu primeiro professor.

– O rio lecionou para mim. Caminhar nos cascalhos é tatear as formas. Descobri que a pedra é uma imensa pálpebra, tem olhos soterrados, precisamos de paciência de água. A pedra só se abre para quem ela confia.


Poeta ao natural, Bez Batti não cuida de contas, nem mesmo da finança ou da venda de seu catálogo. Permanece enfurnado em tempo integral nas distrações. Ou está talhando prováveis obras no escritório, armado medievalmente de avental, botas e máscara de couro, ou brinca com seu gato Nino ou visita o cemitério municipal, seu museu preferido, em que admira bustos, anjos e estátuas.

Transfere a responsabilidade do mundo prático para sua esposa de quatro décadas, Maria Shirley, 69, advogada e professora aposentada, com quem partilha dois filhos (Diego, 34, e Melissa, 36) e dois netos (Maria, 12, e Nathan, 6).

Ele desconhece o valor das próprias esculturas. A peça pequena custa R$ 2,5 mil, a média vale R$ 5 mil e a grande gira em torno de R$ 30 mil.

– Todo dia meu marido volta para sua infância. E espero ele de noite, torcendo para que se transforme em adulto – confessa Shirley.

Atualmente, Bez está confeccionando uma nova série “Autorretrato aprisionado”. Procura imprimir uma feição que seja uma blasfêmia, transtornada e raivosa como a de Brutus de Michelangelo.

– Quero fazer algo que nunca foi visto. Ouço o conselho das pedras porque elas viram mais do que eu e me avisam se estou copiando algo ou inventando.

Para atingir o objetivo, pesquisa matéria-prima pelo Rio Grande do Sul. Vem batizando o basalto: preto (Bento Gonçalves), sanguíneo (Caxias do Sul) e cacau (Vacaria).

– Sou um geólogo dos sonhos.

Os vizinhos não diferenciam o que é pedra da paisagem do que é coleção. São mais de 10 mil fragmentos recolhidos desde a primeira série.

– Não descarto nada. A pedra é inimitável.

Livre, selvagem, curioso, Bez Batti rejeita encomendas, é contra a ditadura temática.

– Não farei um garrafão de vinho por morar em Bento. Crio o que falta, não reproduzo o que existe.

Seus trabalhos costumam demorar 10 anos. Inicialmente, ele desenha, em seguida identifica o material adequado e, por fim, lapida.

– O mais difícil é definir o momento de parar o ponteiro, quando a escultura está pronta. Depois de passar do ponto, não tem como corrigir. Rocha não tem rascunho. Uma lasca errada e sacrificamos o trabalho.

Seu maior desejo é apanhar um rosto antes de chegar ao ventre feminino. Como um profeta, antecipar o nascimento de alguém.

– A pedra gera minhas crianças.

E ainda dizem que os homens não ficam grávidos.





Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 34, 3/12/2011
Porto Alegre, Edição N° 16898
Conheça o espaço onírico de Bez Batti

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

MÁRTIR

Fred é um Heleno de Freitas das Laranjeiras. Executou uma metamorfose lendária. É uma garça que virou pelicano. Não existe bola ou peixe perdido. Marcou oito gols em três partidas na reta final do Brasileiro. Era para ser apenas competente, foi extraordinário.

Nosso texto na íntegra em Rolo Compressor.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

PAREM DE MATAR CACHORROS!

(ou a memória é um retrovisor que não tem como arrancar)

Arte de Hans Hofmann

Na BR-116, é certo que encontrarei engarrafamento e cachorro morto. A cada animalzinho estirado na mureta, tapo os olhos de meu filho Vicente – não é uma boa recordação para se levar à escola logo de manhã.

Mas fui notando que teria que deixá-lo vendado o trajeto inteiro. No intervalo de 10 quilômetros, avistava um novo corpo já despossuído de alma e Deus, inchado e anônimo, sem a gentileza de cruz e o amparo da coleira.

Cachorro atropelado na Grande Porto Alegre é tão frequente quanto as capivaras abatidas na BR-471.

Procurava desvendar como o cão atingiu o miolo da estrada. Na minha idealização, o bicho esquecera o caminho de volta e não contara com sorte ao cruzar a mão dupla. Por uma série de tristes casualidades, fora jogado na loucura assassina de um autorama.

Não me passava maldade pela cabeça. Sei o quanto um cachorro costuma cheirar caminhos e se distrair com facilidade.

Até que descobri que existe um nazismo canino. Cachorros são abandonados na rodovia pelos próprios donos. Aquilo que vejo todo o dia não representa acidentes, é, sim, resultado de uma matança deliberada.

Famílias compram ou recebem de presente um cãozinho, acham que é barbada cuidar, enfrentam uma semana de experiência, gastam demais com ração e higiene, e decidem sacrificar o hóspede. Sem tempo a perder, desaparecem com as provas de uma existência. E ainda raciocinam que não é um assassinato, que Palmira Gobbi é apenas o nome de uma avenida. Fingem acreditar que não cometeram mal nenhum, largaram o pequeno à mera provação do destino.

O motivo é sempre gratuito. Matam o cão para prevenir incômodos. Ou porque ele adoeceu ou envelheceu. Ou porque o remédio e o veterinário são caros ou porque o abrigo é longe e não podem se atrasar para o trabalho.

Que mundo é este? Pela janela, eliminam uma vida com a leviandade de alguém que arremessa longe uma bagana de cigarro, uma embalagem de picolé, um saco de salgadinho. Absolutamente crentes na impunidade.

Quem faz isso não merece perdão. Não merece explicação. Não merece defesa. É um crime premeditado. A mais implacável execução que conheço, antecedida de lenta tortura emocional.

Repare na insensibilidade: o dono mente ao seu cachorro que irão passear, para desová-lo no corredor da morte. Calcule o terror do bichinho quando não entende o castigo, e corre uivando, desesperado, atrás de um carro que nunca será mais o seu.

Cansei de esconder os olhos de meu filho.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 29/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16902

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CONFESSIONÁRIO

Colaboro com matéria sobre a importância dos segredos em nossa vida. Apareceu no Teledomingo da RBSTV, exibido na noite de domingo (27/11/2011).

sábado, 26 de novembro de 2011

MOTORISTA DE TODAS AS SAUDADES

Fã de música sertaneja, a versátil Elisete tem a missão de levar para casa os boêmios que frequentam baile na praia de Quintão, no Litoral Norte. Foto de Emílio Pedroso.

Elisete Varani Mattos, 53 anos, acabou de fazer escova. O cabelo loiro, curto, não tem nenhum fio fora da moldura do rosto. Os lábios estão pintados e nem parece que ela faxinava naquele momento.

Ela trabalha com o que aparecer pela frente. Durante a semana, é pedreira, é zeladora, é manicure, é caminhoneira. Quase impossível prever como os moradores a encontrarão na rua: de bermuda, conduzindo carrinho em construção, ou de boné, liderando fretes. Ela se autodenomina Serviços Gerais de Quintão, balneário de Palmares do Sul, cidade de 11 mil habitantes, a 78 quilômetros de Porto Alegre.

– Nunca digo que não sei, aceito para depois aprender, não tenho escolha – afirma.

Nos últimos três meses, assumiu uma nova função que aumentou sua popularidade no litoral norte do Estado: a de motorista do Clube da Saudade, baile que acontece domingo, das 19h à 1h, no salão da esquina das ruas Esparta e Alegrete.

Separada há duas décadas, mãe de três filhos (Isaías, 29 anos, Everton, 27 anos, e Letícia, 14 anos) e vó de uma neta (Isabela, dois anos), a fã de música sertaneja aceitou a missão de levar os boêmios para suas casas num antigo ônibus de linha. É uma viagem por semana, que permite que os outros bebam sem problema algum. Elisete recebe R$ 100 por mês e carrega 30 pessoas no final da festa, numa cansativa baldeação pelas praias vizinhas.

– Já me sustentei como motorista de caminhão, o pé na estrada é herança de meu pai José Renato. Ele realizava longas viagens pelo interior do Estado em seu Mercedes-Benz cinza. Quando regressava, era sempre feriadão para nossa família de 11 irmãos. O maravilhoso de ir é ter motivo para voltar: a saudade me mantém viva.

O ônibus é velho, a poltrona de couro preto tem o estofado rasgado, o motor tosse e enguiça, mas nada é obstáculo para seu capricho obstinado. Ela não desanima com a feiúra da lataria, nem com a pouca grana – o que é torto tem direito de ser simpático.

Assim como não perde a pose nas atividades braçais, enfeita seu ônibus para receber os passageiros noturnos. Colocou fitas rosa e lilás em todos os bancos. O corredor do veículo lembra a decoração de um casamento.

– Falta apenas um marido, as guirlandas e o órgão tocando “tan na na nan”.

O banco da motorista é um autêntico altar, com ursinhos balançando no retrovisor.

– É uma carruagem do amor! – explica.

Para quem não achou sua cara-metade no bailão, que reúne 200 clientes ao preço de R$ 8 (ingresso masculino) e R$ 5 (feminino), tem uma repescagem no retorno.

– Muitos casais se formam ao sentar lado a lado no transporte, quando haviam abandonado a esperança de se dar bem. Relaxados, conversam melhor, não querem impressionar e se apaixonam.

Sem aparelho de som, ela não se nega a cantar no trajeto. Interrompe o silêncio da madrugada com animado karaokê.

– Ah... Sou também metida a mecânica e cantora, tudo a ver – ela ri.

A amizade cura ressaca. A motorista é a confidente predileta dos clientes, o pronto-socorro das desilusões. Oferece dicas, orienta relacionamentos, conforta os clientes com exemplos de suas desventuras amorosas.

– Do mesmo modo em que os bebês dormem facilmente no carro, meus bebês grandes se acalmam com o sacolejo da minha voz e das pedras irregulares.

Se a noite é uma criança, Elisete é a babá das estrelas e das dunas de Quintão. Põe os baladeiros a dormir com segurança.





Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 26/11/2011
Porto Alegre, Edição N° 16898
Conheça um pouco da praia de Quintão em vídeos