quarta-feira, 29 de setembro de 2010

DUELO DE ESPUMA

Arte de Cínthya Verri

O rapaz fugiu do abraço e beijou meu rosto. Lascou um beijo de despedida, proibido.

Estava saindo de uma reunião. Era o clássico encontro de quem desconhece o nome e recebe o cartão de visita.

Ele me ofendeu com sua pele reluzente, macia. Não aparentava nenhum fio de barba. Fiquei meio perplexo. Lisa como carne rosada de bebê. Uma planura de menina.

Levei um choque, convenhamos. Não assimilava como ele mantinha tal pluma loira. Quase pedi a receita, por curiosidade. Talvez tivesse sido efeito de um peeling. Toda gente que passa por um peeling alega que tomou sol. Viver é um concurso de eufemismos, poucos se aceitam.

O cara não deveria usar barbeador, mas pinça. Ou se depilava com cera quente. Algo inacreditável. É óbvio que pensei que era gay, não fui adivinho, difícil é encontrar alguém heterossexual hoje em dia.

Eu nunca tive descanso com a face. É masculina de tantos maus-tratos. Eu me corto, arrebento espinha, crio rebanho de brotoejas, suporto queimaduras. A lâmina é ardilosa. Sofro o terror de estancar uma bolha do pescoço quando estou atrasado. Ponho papel higiênico e sopro para que seque rápido.

Mas não troco minha armadura de espinhos por nenhuma face lisa. Acho que mulher prefere enxergar um macho com filete de sangue na bochecha do que uma porcelana da Dinastia Ming, dá uma dignidade de batalha, é uma abertura para ela perguntar se me cortei. Eu me orgulho quando minha namorada comenta que arranho seu rosto. Sinto-me poderoso, animal, feérico. Zerei o cabelo de propósito para arranhá-la com toda a cabeça.

— Ui, tá picando?

Ela pensa que vou aparar, pois se engana redondamente. Permaneço escova de tanque, as felpas duras e agressivas. Não ponho fora chance de ouvir seu ui. Gemer é o começo da glória.

Heroísmo é chegar ao trabalho com manchas minúsculas e vermelhas na gola branca e engomada. Os colegas vão respeitá-lo pelo expediente inteiro. A luta com o fio do ferro não é justa, não é honesta — abrirá suas artérias na primeira distração. Eu me barbeio para me manter vivo: é a gilete ou eu. Ela não tem piedade.

Despertar desafiando o queixo me põe excitado, fornece adrenalina ao restante das horas. Não acordo com o banho, mas com o fio da navalha pressionando os poros. É uma arte matemática, preparar espuma, separar a bacia de água quente, afiar o instrumento e desenhar de baixo para cima para depois arrematar aos lados. Guerra recompensada pela loção pós-barba. O perfume chega a fazer fumaça. Naquele momento de largar o produto no rosto, entenderá que homem não massageia o couro, dá tapa em si.

Aprendi com meu pai que aprendeu com o avô que aprendeu com o bisavô. Procurar conservar o perfeccionismo de um açougueiro, e ainda retribuir com a gorjeta do riso.

Saio convencido de que sou um samurai, um dos últimos do bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vou comemorar ao abrir a porta e receber o vento friozinho na cara. A primavera provoca um arrepio inominável. A ardência maravilhosa de quem se machuca todo dia para não ter vergonha de suas dores.

Pretendo convidar o rapaz para um duelo. Que escolha o creme.




Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O PEQUENO GOLEIRO

Arte de Yves Tanguy

Eu prometi para o filho levar os colegas do futebol ao cinema. Disse por dizer, mais educação do que esperança. Qual a minha surpresa quando Vicente tocou em meus ombros na semana seguinte:

– Amanhã é o filme!

Tudo bem; coloquei o cocar da indiada. Pensei que seria um colega, foram cinco, que estavam à espera após o jogo no ginásio. Suados, felizes, gritalhões. Logo olhei a carteira para conferir se tinha dinheiro suficiente – o pacote agora incluía pipoca, refrigerante e ingressos quintuplicados.

Atravessar a rua com a turma representou tremor de ponte pênsil, sempre havia alguém distraído da faixa de segurança, flertando com o perigo. Andava aos trancos de polvo, com os braços levantados, não entendia como os avós vigiavam, ao mesmo tempo, 10 filhos. Naquela época, sair de casa correspondia a montar um comício.

Quando entrei no shopping, suspirei, fiz a contagem mental do time e segui adiante. Rezava para terminar a tarefa, tirar os sapatos e segurar o controle remoto em paz. Mas André, ruivo e sardento, no alto de seus 11 anos, travou no início da escada rolante. Enguiçou de verdade, mergulhou num transe de pavor. Busquei segurar sua mão e ele ganhou de imediato o peso de um Rei Momo. Não se mexia, seus dedos estavam gelados, escorregadios. Formava-se uma fila ansiosa atrás da gente e o guri vidrado no corrimão de borracha, nos degraus se abrindo e fechando. Será que ele tomava remédio? Enfrentava crise séria na família? Possuía uma fobia de lojas? Não conhecia bulhufas do temperamento, só que jogava no gol. Quem é goleiro deve ter algum problema, não é muito certo servir voluntariamente de saco de pancadas.

– O que foi?

– O que é isso aqui?

Raciocinei que perdeu a memória, ainda precisava fiscalizar os outros angustiados com o nosso atraso.

– O quê? É uma escada rolante. Não vê?

– Eu nunca vi.

– Quê?

– Nunca visitou um shopping?

– Não. Ela se mexe, como posso colocar o pé?

Aquilo me pegou de jeito. Achava um absurdo um menino de cidade grande não conhecer uma escada rolante. Mudei o comportamento e o analisava com avidez de colecionador, uma espécie rara, rural. Um bicho estranho e assustado, com cinco olhos, três orelhas, duas bocas.

A turma começou a rir de sua inexperiência de vida, não consegui defendê-lo, imerso em igual pasmo. Depois veio uma compaixão pelos pais desnaturados, que o deixavam à margem do mundo. Tomei o pequeno no colo e o carreguei para cima.

Era tarde para interromper a gozação, alvo de dedos apontados, gargalhadas e apelidos. Foi quando André confessou:

– Eu já beijei uma menina na boca.

E todos esqueceram a escada rolante para descobrir mais detalhes.




Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 27/09/2010
Porto Alegre (RS), Edição N.º 16471

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

RIBEIRÃO PRETO

Arte de Vicente


23/09 (quinta-feira) – Ribeirão Preto (SP), 19h
Encontro com os Livros - conversa sobre Canalha!
Local: Praça Central do Shopping Santa Úrsula
(Rua São José, 933 - Higienópolis)
Entrada franca

QUANDO ELA NÃO QUER TRANSAR

Arte de Cínthya Verri



Mulher que alega enxaqueca para não transar não tem classe.

A dor de cabeça é preguiça, ela demonstra que não tem nenhuma motivação em esconder a ausência de apetite, que você não vale nem o esforço de mentir. Não merece uma desculpa convincente.

Zomba de sua tara. Nas entrelinhas, avisa: cai fora, e vira definitivamente ao lado. A relação está com os dias contados. Não é falta de vontade de sexo, é falta total de ânimo para ficar junto, até para dormir junto.

Elegância é quando ela desvia o assunto com histórias tristes. Mulher quando vai para cama e conta tragédias é que ela está decidida a não transar. Ela pôs isso na cabeça desde o café da manhã e não muda de ideia. Porque a mulher acorda sabendo que vai dar ou não. Não duvide da premeditação — ela se conhece mais do que o homem.

Óbvio que identifica os sinais no radar, a mão do parceiro deslizando desde o banheiro, o convite dos beijos, o beijo fica lânguido, molhado, espumoso, qualquer um percebe quando o outro está excitado, não é um mistério. Natural que ela evite discutir o assunto diretamente, tipo “não estou a fim hoje” ou “estou muito cansada”. Será muito desgastante, seu companheiro se sentirá um fracassado, aparecerão espinhas residuais da adolescência. Ou se encherá de autoridade para denunciar o tempo de abstinência. Virá com um relatório, são sete dias e 20 horas no seco!, como alguém que pede um reajuste salarial. Sempre quando confessamos que não desejamos nada naquela noite, temos que explicar durante horas o motivo. Há a tese unânime de que seria mais simples transar do que discutir.

A objetividade é insana no relacionamento. Por que existe um medo tremendo de ser enganado, de não detectar o desamor a tempo, como se fizesse diferença descobrir antes ou depois. A insegurança gera evasivas. Ninguém fala o que realmente quer ou não quer, com receio de melindrar. No brasileiro, a síndrome é doentia, a reputação tropical e quente derreteu nossos miolos. Aqui, não trepar é não amar. Diante da negativa, instala-se a desconfiança: não se interessa mais por mim?

A esposa está indisposta sexualmente quando recorda da avó doente. É um truque repassado de mãe para filha. Tem 100% de aproveitamento. Toda fêmea guarda na manga da camisola sexy uma ancestral doente ou no asilo. Nunca mencionou sua existência durante cinco anos de convivência. De supetão, ela surge, imperiosa, desgrenhada, carente e abandonada. Sua mulher põe dois travesseiros nas costas e senta para confidenciar da culpa por não visitá-la. “Será que ela se lembra de mim? Tão triste e sozinha lá…”

Você está com o volume máximo na calça, cheiroso, malicioso como uma cobra na relva, e ela encerra o entusiasmo dos seus toques com reminiscências da parente adoecida. Se não frear seu ímpeto, irá repreendê-lo:

— Pô, é importante, não está prestando atenção, estou me abrindo…

Fodeu, ou melhor, não fodeu mesmo. Ela não está se abrindo, está se fechando. Use as velas aromáticas para o velório da avó. A sonolência pesará nas pálpebras, começará uma série de bocejos irresistíveis e dormirá primeiro, ainda por cima com a fama de insensível.




Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 21 de setembro de 2010

QUANDO A AMIZADE É UM NEGÓCIO

Arte de Lowry


Casal se separa sem mágoa, admitindo carinho e saudade. Leitora pergunta: Como duas pessoas se gostam mais do que amigos e menos do que amantes?

Consultório Poético lava as cortinas em público.

"Quer algo mais irritante do que alguém educado numa despedida? A vontade é chacoalhar os ossos do vivente. Que seja cínico, nunca educado."

Leia toda a resposta aqui.

SESSÃO DE AUTÓGRAFOS EM POA


Acaba de sair uma nova tiragem do meu livro de crônicas Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil). É a 3ª edição em três meses. Venha comemorar com bate-papo e sessão de autógrafos nesta terça (21/9), às 19h30, na FNAC do Barra Shopping (Av. Diário de Notícias, 300, Cristal Tel.: 51 3396 2014), em Porto Alegre (RS).

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

PÉ DE MEIA

Arte de Cínthya Verri


Remédio não cura depressão, o que nos salva são os sapatos novos.

No caso de tristeza, uma caixinha resolve. No desespero, recomendam-se dois pares para serem usados em sequência. Se possível, no mesmo dia, de tarde e de noite.

Minha mulher estava estressada, ansiava por uma superdose. Saiu da loja com três modelos. A melancolia foi embora. Na manhã seguinte, seu riso era cadarço com brilho nas pontas.

Roupa não melhora um homem, mas pode piorá-lo. O guarda-roupa é meu confidente. Parto da tese de que o armário, depois de guardar tantos gays, é capaz de oferecer os melhores conselhos. Quando cansado, vou arrumar as roupas. Não as bagunçadas e as que ficam atiradas no espaldar da cama e da cadeira. Retiro as pilhas das estantes e dobro tudo de novo. Apenas o trabalho inútil dignifica. Sei pelo cheiro do tecido qual a última vez que coloquei.

O pai também superou um conflito com a ajuda dos cabides. Entrou numa crise de estima pelo sobrepeso. Por mais que emagrecesse, ainda engordava. Não admitia um prato menor e o ponteiro da balança sempre maior. No instante em que comprou suspensório, recuperou o domínio da alegria. Os suspensórios são a armação colorida para quem não usa óculos. Ele esticava o elástico como um estilingue, abatia os pássaros dos ombros. Ainda rangia, eufórico: — Agora tenho um chicote para meu corpo, ele vai me obedecer!

É previsível que largou a dieta, engordou mais vinte quilos para adquirir outros suspensórios. Gostou de engordar. Agora sem culpa e com charme de colecionador.

Eu me divirto que hoje me confundem na rua com um DJ ou um músico. Já fui um mecânico, um executivo fracassado, um metaleiro, um emo. A fixação pelo figurino começou tarde. Em casa, minha mãe empregava termos como carpim e fatiota. Não existia chance de bom gosto.

A estreia como macho talvez tenha sido na primeira comunhão. Inaugurei cinto, sapato preto e terno. Quatro números acima do meu. Meditando com calma diante das fotos, não representava roupa de homem, e sim de velho. Não entendo como não recebi diretamente a extrema-unção.

A irmã Carla buscou me amparar na adolescência. Com a minha cara cravejada de espinhas, desafiou à insanidade da tarefa. Incomodada com as opções, decidiu ceder calça branca, camisa branca e tênis branco. Passei em branco pelas garotas. Como um sujeito que pega emprestado as roupas da irmã apresentará resultado? Nunca.

É razoável supor que tenha me sentido homem ao enfrentar a extravagância, ao pôr um colete preto com lantejoulas, que arrematei num brechó do Bom Fim. Os colegas zombaram de minha masculinidade. Nem a inscrição “God is dead” me poupou das ironias. Morria pela terceira vez.

Confesso que não me vejo homem homem com nenhuma roupa. Muito menos com poncho, que transforma o gaúcho numa gaita de lã.

O que acende a virilidade é absolutamente insignificante. É recolher as meias de Cínthya entre os lençóis. Ao preparar a cama, localizo aquele novelo que escapou dos seus pés, um colchete de seu sono, um parêntese de suas unhas; emociono-me ao saber que ela deve ter procurado durante a noite.

Coloco o novelo sobre o cobertor, com destaque de um travesseiro. No restante das horas, controlo a ansiedade pelo beijo de recompensa.

Eu só dependo de um par de meias para me enxergar inteiro.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

BOLACHA MARIA

Arte de Ernst Ludwig Kirchner


Se você considera insuportável namorado que mexe nos seus seios como bolinha anti-stress, se você acha que é irritante o marido que belisca sua bunda, se você não esconde a raiva quando ele se esfrega com as panelas fumegando, ainda não parou para descobrir que o verdadeiro monstro é outro.

As atitudes acima são infantis, incômodas, de alguém que não leu Freud muito menos saiu da fase oral. É falta de cultura, não representa maldade. Nada que um curso de noivos ou reforço de auto-escola não o ponha no lugar. Não indicam o término do relacionamento. Não podemos afirmar que é a gota d'água, o colírio da raiva, o ponto final depois de tantas reticências apaixonadas.

O que não dá para aturar é homem que aperta a bochecha. Vai dar um beijo e estica com força os dois lados.

Ele ensaia um movimento romântico, você chega a fechar os olhos, supõe que irá segurá-la no ar como num tango e, de repente, vem o ataque ridículo do chocalho dos dedos.

A humilhação é inesquecível. Desmoraliza a delicada camada de creme da manhã. Estupra as covinhas do riso. Desencaixa a raiz do molar com o gesto aparentemente simpático.

De carinhoso, não tem coisa alguma. O que aperta uma bochecha merece castigo. O que aperta duas ao mesmo tempo não tem liminar, resta-lhe o despejo.

É o típico sujeito que assiste reprise de futebol (o que acompanha ao vivo não se enquadra como doente). Não é confiável. Não é flor que se cheire.

Flor que não se cheira é cacto. Você não tem um marido, mas um torturador de berçário. É a maior grosseria que existe na vida conjugal depois de palitar os dentes com garfo.

No momento em que o mastodonte pega sua pele, observe os olhos brilhando de arrogância. Repare que ele fará careta (não há como apertar a bochecha sem cara feia). Acompanhe o quanto se dispõe a testemunhar seu sofrimento. Exerce o sadismo em alto grau, não permite sequer que você vire o pescoço, inibe sua cabeça com determinação.

Pois ele está avisando na lata que sobra pele. Mostra exatamente o excesso, aponta com lápis o mapa do botox. Parece que encaminha amostra para análise do laboratório.

O que ele está dizendo é que você é fofa - podemos apertar a bochecha somente de pessoas fofas. O que ele está dizendo é que você é gorda – podemos apertar a bochecha somente de pessoas gordas. Extrapola qualquer ofensa, qualquer apelido, qualquer número errado de calça e de lingerie. Ele está falando - com todas as letras - que seu rosto é redondo. Como Bolacha Maria. Como um vinil. Como uma almofada.

Para garantir a emancipação feminina, necessitamos criar uma delegacia para atender vítimas de aperto de bochechas.




Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, p. 3, 13/09/2010
Porto Alegre (RS), Edição N.º 16457

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

SETEMBRO


11/09 (sábado) - São Paulo (SP), 14h
Oficina de crônicas
Local: B_arco
(Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 426)
Tel.: (11) 3081-6986
e-mail: contato@obarco.com.br

13/09 (segunda-feira) – Porto Alegre (RS), 12h15
Porto Alegre em Cena
Debate com Paulo José: “Um navio no Espaço ou Ana Cristina César”
Local: Casa de Teatro de Porto Alegre
Rua Garibaldi, 853
Tel.: (51) 3029-9292
e-mail: casadeteatropoa@casadeteatropoa.com.br

14/09 (terça-feira) – Porto Alegre (RS), 9h
Fronteiras do Pensamento - Geração Z
Local: Salão de Atos da UFRGS
Av. Paulo Gama, 110
e-mail: relacionamento@fronteirasdopensamento.com.br

15/09 (terça-feira) – Novo Hamburgo (RS), 10h
Palestra para alunos
Local: Escola João Goulart
(Rua Finlândia, nº 507)

21/09 (terça-feira) – Porto Alegre (RS), 19h30
Lançamento do livro Mulher Perdigueira
Local: FNAC – Barra Shopping
(Av. Diário de Notícias, 300, Cristal)
Tel.: (51) 3396 2014

23/09 (quinta-feira) – Sapucaia do Sul (RS), 9h
Palestra para alunos
Local: Escola Afonso Guerreiro Lima
(Rua Flores da Cunha, 34)


28/09 (terça-feira) – Brasília (DF), 20h
Poesia e Vinho
Local: Espaço Cultural Mosaico
(Asa Norte
SCRN 714/715 Bloco D, Loja 16)
email: espacomosaico@gmail.com


30/09 (quinta-feira) – Rio de Janeiro (RJ), 14h
Seminário “Poesia Brasileira – 1980 – 2010. Processos e Percursos”
Local: PUC-Rio
(Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea)
Tel.: (21) 3527-1445

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

PERFUME DO BOTO

Arte de Cínthya Verri


Sou apaixonado por mistérios como um cachorro pela rodas de carro.

Passeando pelo mercado de Belém, encontrei a verdadeira farmácia popular. Frascos e frascos encordoados para a venda. Garrafadas para derrame, hipertensão, inflamação, diabetes. Adoecia com vontade de testá-las na hora. Um sem-fim de chás curativos, poções miraculosas, receitas infalíveis.

A vendedora lembrava uma cigana.

— Vem aqui, meu bem!

Eu fui, convicto de que ouvir não compromete. Mas compromete, sim.

— Está com problema de conseguir mulher?
— Não, está me achando feio?
— Não, meu bem, a beleza do homem está no cheiro.
— Tô cheirando mal?
— Para de frescura, meu bem…
— O que deseja?
— Dar desejo, meu bem.
— Pode explicar…
— Tenho aqui o perfume do boto. Quer? É um afrodisíaco, nenhuma madame vai resistir.

Comprei para calar sua boca. Até porque meu bem é sempre usado por aquela que deseja o mal. Ela ainda se despediu:

— Meu bem, depois volte para me contar suas aventuras.

Eu não me vi poderoso, mas profundamente idiota, com três potinhos no bolso do jeans, três por R$ 10, um monte de preservativo líquido.

Apressei o passo ao hotel. As ruas estreitas retardavam o raciocínio, notei que atraía atenção como numa micareta. O mulherio controlava minha cintura, mostrava a língua com malícia, lambia o ar, contornando camadas de um sorvete imaginário.

Será que fez efeito antes de usar? Era o volume da calça, o boto já me enfeitiçava, já me tornava superdotado. Meus braços estavam mais leves, coreografados, as coxas socando o tecido.

Analisei o vidrinho: o lago laranja, dentro pendia algo como um camarão. Cheirei, veio uma nuvem de formol e batata frita. Será que as moças gostam disso? De fritada de múmia?

Descrevi a aquisição ao amigo Mauro. Ele largou uma gaitada:

— O óleo é pai d’égua! Feito da genitália do boto.

Mesmo? Como os homens podem se untar com o pau do boto e arrebatar fêmeas? O efeito não é o contrário: não é para chamar gays?

Não irei espalhar pau do boto em meu corpo, nunca. É a própria decadência. Depois ficarei exigente e não terei mais volta: pedirei porra de baleia e pentelhos de tubarão. Não posso ousar. Será triste se colocar uma vez e a namorada adorar e comentar que está comigo pela química.

— Amo seu cheiro, qual o perfume?

O que responder? Que é o Chanel do Norte?

A fragrância exótica prepara o macho para ser um corno manso. A dar sua vida ao boto. A baixar a cabeça e trocar a virilidade da pele ao cheiro de outro saco.

Não aguentarei se engravidar minha mulher. Pensarei eternamente que a criança é filha do boto.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

PSICOSE

Arte de Seymour Chwast


Os conselhos maternos são horríveis. É complicado apagá-los da cabeça. Adoçam a língua como um AAS infantil. Não resolvem a dor, simplesmente acalmam pelo efeito psicológico. São mandamentos que ecoam por todas as fases de nossa vida, sem expirar, com renovação automática de contrato.

Quando uma mãe fala, a respiração muda de frequência para guardar o apelo. A entonação cristaliza a frase. Demoramos a definir o que é conselho do que é ordem do que é simpatia do que é neurose.

Foram muitas advertências dadas pela Maria Elisa, minha mãe: não sente na pedra fria, não apanhe vento, cuidado ao atravessar a rua, retribua uma gentileza, reze ao chegar em casa, a primeira água do dia é benta, não coma melancia para nadar, não ponha mais do que deseja no prato, não tire fotografia de ninguém dormindo. Coisas óbvias e coisas estranhas misturadas, que não questionei, não argumentei, formavam desígnios divinos.

Uma delas é use sempre gasolina aditivada. Ouvi pela primeira vez aos nove anos e nem pensava em dirigir. Retomou o pedido aos 18, no instante em que recebi a carteira de motorista. Conclui que ela repetiria a sentença no intervalo de nove anos. Nem cismei em replicar e entender; atendi, de pronto, à sua reivindicação. Parecia um suspiro de leito de morte, conhecimento secreto de templários, juramento que renderia uma maldição caso desobedecesse.

Durante minha história, não empregava gasolina comum muito menos álcool.

No posto, entregava a chave e dizia com galhardia:

- Gasolina aditivada, por favor, enche o tanque!

Partilhava da aura de que tinha uma informação privilegiada. O combustível faria meu carro correr melhor e evitaria piratarias.

Mas minha namorada Cínthya estragou tudo (a vocação da mulher é contrariar a sogra). Teimou com a obsessão, como uma criança dissecando um pássaro. Argumentava que o preço não valia a pena, bem mais caro, que não havia lógica possuir um veículo flex e desprezar a vantagem.

Eu me apequenei, pois não desfrutava de explicação convincente, somente a de que minha mãe mandou. Seguia o método por três décadas. Em nenhum momento, suspeitei que estava errado. Fiquei brabo, enfurecido, tomei uma reação desproporcional:

- Minha mãe não me enganaria, ela disse e pronto!
- Ok, não me meto mais... E Cínthya chorou.

O único momento em que contrariamos nossa mãe é quando a namorada chora. Arrependido, prometi que iria tentar. Já reagia com a ansiedade de um alcoólatra avisando que não beberia mais gasolina aditivada.

Ela tratou de encerrar o dilema.

- Nada de mentiras, vamos a um posto agora.

O frentista se aproximou, olhava para ele, olhava para Cínthya, o frentista olhou para Cínthya, Cínthya olhou para o frentista, olhei para Cínthya olhando para o frentista olhando para mim.

- O que vai aí, senhor?
- Fala logo Fabrício. Fala... Você consegue.

Escoava da minha memória a mãe empurrando o balanço na praça, me levando ao médico para retirar curativo, me buscando na saída do colégio. Traía a dedicação do passado. Uma sucessão de lembranças virava ressentimento.
Do fundo do estômago resmunguei:

- Por favor, R$ 50 de álcool.

A namorada aplaudiu, cantou Beatles, festejou o empenho. Vidrada em sua alegria, não reparou quando abri a porta correndo e arranquei a bomba do frentista.

- Não mexe na minha mãe!

Não tocamos mais no assunto. Fingimos que apenas atravessei uma crise. Agradeci o silêncio.

Num dia ensolarado, acompanhando a mãe num passeio, descobri que ela nunca utilizou gasolina aditivada. Mas era tarde demais para mudar.




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 135, Número 202
Setembro de 2010

sábado, 4 de setembro de 2010

UMA ODE À MÚSICA BREGA


1) Sandra Rosa Madalena, de Sidney Magal: um Raul Seixas diluído em propaganda de xampu. Quando a pieguice inventa de ser filosofante: 'Queria ser o seu princípio e ser seu fim'. Brega total. Para cantar no engarrafamento de SP.

2) Borbulhas de Amor, de Fagner: campeão do karaokê, talvez pelo beicinho no momento de cantar o refrão do peixe. Para nadar, nadar e morrer na praia.

3) No Hospital, de Amado Batista: legítimo representante do amor dodói, coitadismo em estado puro. Traz a viuvez como prova de que o macho pode ser fiel. Para cantar na fila da Previdência.

4) Pare de Tomar a Pílula, de Odair José: o terror das empregadas é um injustiçado, merecia bem mais crítica. Um grito do varão preguiçoso, que não deseja nem se mexer para colocar camisinha. Para cantar na Vara de Família no momento de acertar a pensão.

5) Garçom, de Reginaldo Rossi: é um hit engraçado, com uma nostalgia ébria dos anos 50. Uma homenagem ao terapeuta mais barato do mundo, que somente cobra 10% para escutar nossas lamúrias. Para cantar ao pedir a conta.

6) Macarena, de Los del Río: é a típica música-enjoada, de brinquedo de criança. Ninguém sabe a letra e vai enrolando. O importante é a coreografia. Foi responsável por mais da metade das broxadas no final dos anos 90. Quase entrou como um extra ocidental do Kama Sutra.

7) Como uma Deusa, de Rosana: é a nossa Celine Dion, é o nosso Titanic. Depois dela, muitas mulheres abandonaram o Olimpo, aceitaram a celulite e desistiram de imitar a Vera Fischer. Para cantar no velório.

8) I Will Survive, de Gloria Gaynor: conhecida como clássica música GLS. Todo homem que se preza deve enfrentar o teste. Se dançar é gay. Se não dançar é gay. Praticamente impossível não rebolar e mexer os braços. Um desabafo escrachado para viver o amor sem nenhuma vergonha.

9) Pelados em Santos, de Mamonas Assassinas: irreverência nunca tem medida certa. Virou hit da torcida do meu time. Não há como ser elegante no estádio. Para cantar levantando o caneco.

10) Purple Rain, do Prince: marcou toda a minha geração. Nas reuniões dançantes, era o golpe derradeiro para beijar o pescoço da menina. Ela ficava tão paralisada com a breguice que não reclamava. Para cantar no asilo.

11) Can’t Stop Loving You, de Van Halen: banda formada no ano em que nasci, coisa boa não é. Canção que nasceu para trilha internacional de novela, dor-de-cotovelo e choro no escuro. Para cantar após descobrir que sua mulher tinha um caso com o porteiro.

12) A Lua me Traiu, de Calypso: essa vale por todas as anteriores e ainda sobra. Para nunca cantar.

Publicado no jornal O Estado de São Paulo
Minha Trilha, Caderno 2
Música, D-6
São Paulo (SP), 04/9/2010

SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?

- O que eu faria com R$ 85 milhões da Mega Sena -

Arte de Jasper Johns

Sempre que entregamos o cartão da Mega Sena, erramos a pergunta. Não deveria ser o que faria com a bolada, mas quem deixaria de ser. Porque não seria mais ninguém. Nada como uma fortuna para aniquilar uma personalidade. O pobre ainda recebe contas, o milionário nem isso. Não teria mais possibilidade de ser santo, um santo depende do sacrifício, um afortunado é apenas filantropo. Não exerceria mais a generosidade, a bondade surgiria como obrigação. Ou dá ou é avarento. Não seria mais pai, mas Papai Noel, materializando com um clique dos dedos qualquer sonho de consumo das crianças. Apagaria a chance de chegar em casa com um chocolate escondido entre os pães, a mortadela e o queijo e ser festejado pelos filhos. Não poderia reclamar que quase bati o carro ou ser consolado pela mulher diante do medo da demissão. Abandonaria o ofício, a graduação, assumiria a condição vitalícia de empresário. Não teria mais amigos, mas empregados. Não teria mais esposa, mas uma sócia. Não poderia puxar conversa, puxaria o talão. Não conheceria mesmo a cor do dinheiro, nunca estaria comigo. Passaria a desconfiar da mãe, do cachorro, numa paranóia constante, certo de que desejam se aproveitar de mim. Perderia o controle da situação. Ao organizar uma pelada, acabaria em campeonato. Ao fazer um churrasco, desbancaria em orgia. Quando destratado por um garçom, compraria o restaurante. Não lutaria por nada, mandaria. Se eu ganhasse R$ 85 milhões, simplesmente não existiria.

Apesar de tudo, não custa tentar. Preenchi meu bilhete.

Publicado no jornal Zero Hora
Geral, p. 32, N° 16448
Porto Alegre (RS), 04/09/2010

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

PARÁ


Sou o convidado da XIV Feira Pan-Amazônica do Livro, no Hangar, em Belém (Pará). Minha palestra acontece no sábado (4/9), às 19h30, no Espaço Machado de Assis, dentro dos Encontros Literários. Informações pelo (91) 3344-0106

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

BONEQUINHA DE POUCO LUXO

Arte de Cínthya Verri


Entrei no banheiro do aeroporto quase de olhos fechados, tateando as paredes após experimentar contenção de camelo.

Escolhi o vaso da ponta esquerda, para não embaraçar os vizinhos. Na real não escolhi nada. Com o ambiente lotado, peguei o primeiro vago.

Na hora em que abri a braguilha, gelei. Não é que não encontrei meu pau. Não é que tive nojo da poça em meus pés, coisa natural em WC masculino.

Enxerguei uma boneca no mictório. Uma Barbie me mirava com sua atitude sorridente de gueixa. Agachada, como que depilando as pernas no chuveiro.

O que fazia ali? Arrisquei puxá-la pela gola, mas faltou coragem. A garota já estava ensopada.

Busquei reprimir o jato, observei ao redor para localizar algum canto alternativo: apenas a pia. Fracassei no exercício de ioga. Respirei cachorrinho, respirei gato, respirei tamanduá, mas o controle escapou e urinei longamente. Tentei em vão não acertar sua cabeleira, não estragar sua pintura, reduzir a artilharia em sua pele branca.

Por um triz não chorei, lembrei dos caprichos de minha filha conduzindo seu carrinho de bebê no pátio. Senti que traí a minha paternidade.

Quem colocou uma boneca no mictório? Quem dobrou a pequena no porta-malas imundo? Quem sequestrou a beldade e a lançou no ralo artístico de Duchamp? Quem apresentaria tal grau de perversão? Especulei ser obra de um misógino recente e amador, um corno vingativo, homem amargurado, arrebentado pela infidelidade de sua mulher. Pegou um dos símbolos femininos para mijar em cima. Rompeu o fair play entre os sexos. Agiu como um psicopata de loja de brinquedos.

A Barbie atendeu aos rituais de um vodu. Não encontrava outra explicação. Um sujeito optou pela magia negra, a exorcizar os enganos e desventuras do casamento. No lugar da farofa e da cachaça, da galinha morta na esquina, da macumba prendada, invadiu um dos santuários masculinos e atirou a virgem no vulcão.

Ele sabia que não existia modo de resgatá-la, a peça sobraria vulnerável diante do pelotão apressado de fuzilamento. Empreendeu um plano diabólico, intencionado a humilhá-la em público e escandalizar os frequentadores dos voos. Ainda era a Barbie com roupa de gala. Seria menos ofensivo se fosse a esportista, acostumada a rapel e esportes radicais.

Aquilo me transtornou, gerou azia e impotência. Talvez escutando Fagner redescobriria que existe algo pior na vida e retomaria a honra.

Eu me culpava por esguichar na Barbie. Uma atrocidade indesculpável para seguir em frente na convivência doméstica. Um trauma sem perdão. Já queria me confessar, alugar um padre, contribuir com entidade beneficente.

Julgava o caso perdido, a mesma dimensão de um acidente aéreo.

Corri, suado, para a sala de embarque. Trocando as pernas, atabalhoado. Sentei próximo da porta, ansioso pelo chamado da companhia, para distrair o ressentimento nas nuvens. Foi quando acompanhei uma senhora recriminando o filho, uma menina miando desesperada de canto, um pai encabulado com a família histérica.

A mãe sacudia o menino:

— Onde você pôs a boneca de sua irmã? Onde?




Crônica publicada no site Vida Breve