quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O FIM DA INVENCIBILIDADE

Arte de Cínthya Verri


Cínthya deitou com uma máscara de vitamina C. Em posição de coma. Armei de cismar que ela não me dava atenção. Era uma provocação que cresceu em insistência e migrou para o insulto. Avisei que se tratava de uma brincadeira, sempre uso essa manha quando ultrapassei o limite. Outra tática para me isentar da grosseria é alegar que lhe falta senso de humor. A convivência de dois anos anulou a força do meu repertório.

Eu erro e não me retrato. Ela me pinta de demônio e não suporto. Logo acho que estraguei sua confiança e que deixou de me admirar. E, curiosamente, fico ofendido com a minha ofensa.

O ímpeto é fazer as malas e desistir. O desencanto aumenta diante da lembrança do final de semana harmonioso — estávamos ternos, não colocávamos sequer os abraços para lavar.

Não consigo reconhecer a falha, e o fato de quebrar a sequência de vitórias. Quem fere é mais orgulhoso do que aquele que é ferido.

Como não reprimi a risadinha do canto da boca, o iodo da malícia? Como entrei naquela tranqueira? Por que falava barbaridades e depois repetia as sentenças editadas, transmitindo a impressão que minha mulher entendeu errado? Ou por que pedia desculpa e descontava a responsabilidade nas próximas frases, até que o perdão tivesse perdido o sentido? Avançava duas casas no entendimento e recuava mais cinco com “não disse isso”.

Já cansado, desabafei para Cínthya:

— No momento em que a gente acerta o ponto, desmanchamos o equilíbrio.

Ela me jogou os dados dos olhos:

— Nenhum casal acerta o ponto, a arte é ficar próximo dele.

Aquilo me acalmou, mantinha uma fantasia romântica: ou era uma felicidade imutável ou não era. A derrota naquela noite significava o fim da invencibilidade, não o fim do relacionamento.

Toda vida eterna é provisória. A tranquilidade é cheia de alternâncias. Serão semanas de infindável paciência, de alegria intacta, e algumas horas de ressentimento e azar. Nada vai mudar. Até o mar tem dias de ressaca. Não podemos aumentar a exigência a cada questionamento, formular paranoias e teorias de conspiração, esperar desmascarar nossa companhia. No fundo, ninguém se ama o suficiente para ser amado.

É aceitar o desvio e retornar para perto do ponto. Aproximar-se com a igual gana do início, esforçar-se novamente para conquistar a empatia da solidão. E nunca ter controle sobre o resultado.

Dormi também com uma máscara. Foi a penitência que ela escolheu. Precisava hidratar a pele e os hábitos. E ser um pouco ridículo para não me levar a sério.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

ARROZ DE MARINHEIRO

Arte de Miró


Alguns desenham caveiras, outros corações.

Nos momentos de distração, rabisco estrelas em meus caderninhos. Preencho os cantos das páginas, é automático, paro um pouco e já estou fazendo a série de pontas. No saguão do aeroporto. No escritório. No quarto. A caneta é um telescópio insaciável.

Minhas estrelas são primárias, infantis, rabiscos de criança. Não é possível localizar as Três Marias na constelação de sinais. Não amadureci o traço. É engraçado, não havia me detido para investigar da onde vinha a mania.

E lembrei. No segundo ano, invejava os melhores da classe. Escreviam redações impecáveis, não sofriam qualquer crítica e reparo. Recebiam um "ótimo" com estrelinhas - três em sequência no alto da folha com direito a parabéns da professora Ione.

Formavam a fileira da frente da classe, com aquela pose prepotente de fotografia da primeira comunhão. Ganhavam beijos e paparicos da tia, buscavam o apagador e o giz na secretaria e funcionavam como coro grego quando alguém não sabia responder uma pergunta no quadro-negro.

Eu ansiava pela cotação máxima, dada apenas para quem não cometia nenhum errinho, nenhuma vírgula fora do lugar, nenhuma expressão com grafia trocada. Tinha que ser dez mesmo. Não havia exceção.

Raro para a turma, impossível para mim com problemas de dicção. Tropeçava ao capturar os vocábulos pelo som. As palavras tortas vinham pelos ouvidos e as certas dormiam no dicionário. O ch ou o x e o s ou ç me pregavam peças.

Não me faltava imaginação, acho que sobrava, a dificuldade é que rasgava a roupa ao atravessar o arame farpado da gramática. Tinha boas ideias para driblar a absoluta ausência de aventura. Ao falar das férias, descrevi um delicioso veraneio em cima do telhado de casa. Soou estranho diante das tradicionais experiências nas praias do sul de grande parte dos alunos.

Minhas notas não subiam de 6. Não arrecadava exclamações. Um magro e regular 6 em tinta azul. Os irmãos Rodrigo e Carla zoavam do meu histórico. Suas provas estavam todas carimbadas de louvores, lembravam a legião de estados na bandeira do Brasil. Eu me via como arroz de marinheiro da família, que terminava rejeitado da panela.

Cansado da humilhação, larguei a televisão e o futebol, passei a limpo os cadernos, comecei a ler um livro por semana. Estudei como um desvairado, consultando as enciclopédias nas horas vagas. A professora reparou na mudança de comportamento, no maior envolvimento em sala. Questionou até se não gostaria de sentar mais na frente.

Mas a ampulheta esvaziou outubro, novembro, dezembro, e nada de atingir 10; estava desesperado.

Na despedida do ano letivo, a professora devolve a última redação do ano. Entrega o exercício chamando estudante por estudante. Ela me estende a folha, vejo que meu conceito é 8. Baixo a cabeça. Com o dedo indicador, Ione levanta meu queixo.

- Olha aqui!

Era um 8 com três estrelinhas.

O esforço sempre foi minha inteligência.



Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 205
Dezembro de 2010

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

BOA NOITE, CINDERELA

Arte de Cínthya Verri


Dormir é um negócio sério na vida adulta. Na infância é um castigo. Na adolescência é uma escolha.

Na maturidade compreende-se finalmente a gravidade de repor oito horas de sono para não arcar com os efeitos colaterais no trabalho.

Minha mulher respeita o expediente noturno com afinco. Sua cômoda é um santuário, não dá para mexer na ordem: os livrinhos, o abajur e um copo d’água.

Ela dorme bonita e acorda com a delicadeza de um cílio no rosto. Não é remela, é cílio, sempre há um cílio caído, uma pétala das pálpebras, que trato de retirar com alegria.

“Só um minutinho”, e ela oferece o rosto. Já conhece meu gesto.

Seu sono é pesado, mas tem uma coreografia delicada de quem frequentou aulas de piano ou balé. O interessante é o jeito que ela segura o lençol, dobra as pernas, ronrona devagar e me agarra como se estivesse regressando de longa viagem ou chegando naquele momento de uma bebedeira. Suas palavras desconexas são o tempero da noite.

Descubro que apagou quando faz beicinho. Mais do que esticar as pernas. Mais do que deixar uma pergunta no vácuo.

Seu beicinho parece pedir um beijo proibido.

O grande atestado de beleza feminina é o descanso. Há tanta rainha de bateria e porta-bandeira que dorme feio, com pose de suicida. Estatelada na cama, com uma poça de baba no travesseiro. Afora algumas espécies que roncam como se fosse um avô asmático ou um motor de ônibus escolar.

No concurso de miss, deveria ser criada uma etapa eliminatória, onde uma câmera flagra o sono das concorrentes no hotel. Muitos países entrariam em desespero para achar sua representante. Há um ingrediente erótico e de insuperável estética no repouso. Cinderela e Branca de Neve não perdem patavina da formosura. Estão maquiadas, tranquilas. Pena que não se movimentam como Cínthya.

Respeitar o sono de sua esposa ou namorada é uma arte. Demoramos para aprender. Mas que seja antes do que enfrentar sua insônia.

Quando uma mulher acorda de repente de madrugada e fracassa ao retomar o sonho, ela é capaz de cutucá-lo mesmo enxergando que você tosquiou todos os carneirinhos e relaxa no mais remoto feno:

- Ei, amor, você também está acordado? Vamos conversar?




Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

DO LAR

Arte de Eduardo Paolozzi


As mulheres caíram numa cilada masculina.

É um suicídio governar o país, o estado, o município. Bronca mais peluda do que as costas de Tony Ramos.

Cansamos. Foi um erro de cálculo. A autoridade desmagnetiza o prazer. É um encalhe de problemas, sempre tem um funcionário que pretende tirar vantagem, um escândalo, uma secretária gostosa no caminho, um relatório a entregar, além do excesso de reuniões que não permitem escapadinhas. Não há como arrumar amantes na posição de chefe, logo vira assédio sexual.

Não deu certo com a gente. O Imposto de Renda nos venceu. O enfarte nos venceu. Não queremos perder cabelos e passar a aposentadoria pagando implante.

Duro demais enfrentar 12 horas no expediente, suportar a fogueira de vaidades, não sobra folga para mais nada. Se eu fosse vocês não pegava essa geringonça.

O que pretendemos é ser do lar. Não conhecemos nenhuma dona de casa que foi processada, é mais seguro. Já temos prática em lavar carro, aprontar o quarto é moleza.

O que nos atrai neste milênio é preparar o jantar consultando um livro de receitas. Testar trituradores de camelôs.

Não nos importamos em receber mesada, podem deixar em cima da mesinha antes de sair. Não esqueçam o dinheiro do gás.

Produziremos três pratos quando vocês chegarem. Prometemos um doce toda semana, um pudim ou ambrosia, como queiram. Mas, por favor, só avisem quando vierem com amigas para jantar, que tudo seja planejado, horrível dar vexame às visitas.

Controlaremos a validade dos produtos na geladeira. Necas de se afligir com o supermercado, não iremos sobrecarregá-las com frivolidades domésticas.

Nossa missão será garantir a tranquilidade de vocês, chefas de família. Vamos encher a banheira com sais e espuma. Quando voltarem do trabalho, pegaremos maleta e bolsa e perguntaremos com a voz descansada:

– Como foi o dia, meu bem?

De noite, estaremos disponíveis ao ato sexual, relaxados. Compraremos óleos e cuecas fetichistas, talvez fantasia de policial ou de torneiro mecânico. Depois de encaminhar as crianças, colocaremos velas pelo corredor, Madona no CD e mostraremos, à meia-luz, os novos passos de pole dance.

Não descuidaremos da aparência. Fugiremos para shoppings à cata de uniformes esportivos. Diariamente, faremos um desfile dos times ingleses, dos italianos, dos espanhóis, dos franceses.

O que nos interessa mesmo é assistir ao futebol na televisão. Sempre há um jogo a qualquer hora, não existia isso antes. Qualquer horário, acreditem.

Agora mesmo, por exemplo, acompanho o Campeonato Alemão, Schalke versus Bayern, enquanto organizo a coleção de sapatos de minha esposa.

Os homens não querem mais o poder. Descobriram que a submissão é a força.




Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 20/12/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16555

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ADMIRÁVEIS CHUTEIRAS



O homem procura uma chuteira em cada sapato que compra. Algo que possa se defender com os pés, que aguente o tranco e levante sua altura.

"Ele somente aprende a caminhar com chuteiras. Antes era menino. Assim como a mulher somente aprende a caminhar com salto, antes era menina."

Acompanhe nossa tese no Rolo Compressor.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

É DAS CRIANÇAS O REINO DOS CÉUS

Arte de Cínthya Verri


Eu vi o umbigo de Cínthya brilhando na praia, com o rescaldo do protetor. Era lindo. O círculo perfeito, como uma laranja oferecendo seus gomos lânguidos, como um ouvido e seu brinco perolado, como uma concha cintilante de espuma. O cálice de ouro da Herbelle que o pai não permitia usar.

Fiquei com vontade de recitar o Cântico dos Cânticos. E beber caipirinha de vodka no umbigo. Embriagar-me; um Salomão do litoral gaúcho.

Aproximei meu braço vagarosamente em sua direção, com o dorso inofensivo da mão, descendo dos seios até a cintura.

Quando entrava em suas cobiçadas bordas, ela soltou um grito. Por pouco, não recebi uma bofetada para alegria da indiscrição praiana. Foi um beliscão. O beliscão é uma agressão infantil, um tapa introspectivo.

“Nunca mais toque aqui!”, ela advertiu. “Nunca mais ou acabou nossa relação.”

Eu me assustei, cavei um buraco na areia para me esconder como uma tatuíra. Nem discuti, muito menos argumentei. Sondei que fosse um trauma. Ela agiu com uma tal sanha que pareceu que tinha cometido o mais grave pecado matrimonial. Algo óbvio, unânime, básico, tipo roubar ou matar. Talvez fosse uma nota de rodapé dos dez mandamentos.

Como não me ensinaram isso na educação sexual na escola, bem que a professora poderia ter me avisado no momento em que colocou uma camisinha numa banana catarina? Como não me alertaram no curso de noivos? Como o padre não me disse, antes do sim definitivo: não coloque o dedo no umbigo dela e será feliz!

A mulher não admite marmanjo manuseando seu umbigo. É molestá-la, pior do que passar a mão em sua bunda ou assoviar barbaridades na rua. É uma afronta ao narcisismo, passível de divórcio. Entra na categoria de abuso, de assédio moral.

O umbigo é o ponto de hibernação da feminilidade. É como mexer em sua bolsa, em sua nécessaire, em seu estojo de pintura.

Cabe ao esposo ser um voyeur, chupar os dedos, admirar de longe.

O reino dos céus do umbigo da mulher é restrito aos filhos.

Diante da curiosidade dos pequenos, ela facilita o acesso. Para o marido, o umbigo é pântano com jacarés esfomeados. Para o filho, é uma piscina natural, uma duna para descer de prancha.

Acolhe a pureza e a ingenuidade de sua criança. Deixa o moleque brincar, espiar, instalar uma plataforma de petróleo. Não espantará o rebento com ameaças. Explicará a origem do mundo com serenidade amorosa.

A concavidade demarca um elo exclusivo da maternidade. O filho continua preso ao cordão umbilical. Por todos os tempos. Já o homem, mesmo que seja seu homem, é um tarado com segundas intenções.



Crônica publicada no site Vida Breve

ORAÇÃO FÚNEBRE


Nem o mais criativo secador gremista imaginaria que o Inter perderia para o Mazembe.

Quem muito se guarda acaba não encontrando seu futebol. Rolo Compressor faz o inventário da derrota na semifinal do Mundial.

Faltou garra aos colorados. Faltou sangue-frio. Aliás, é preciso muita garra para ser sangue-frio.

Nosso obituário de Abu Dhabi.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

AÇORIANOS

Eu e Cínthya no anúncio dos vencedores do 17º Prêmio Açorianos de Literatura


Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil) recebeu o Prêmio Açorianos de melhor livro de crônicas. A entrega do troféu foi na segunda (13/12), no Teatro Renascença, em Porto Alegre (RS).

A premiação da Secretaria Municipal de Cultura é uma das mais importantes do estado.

Além disso, o livro acaba de entrar em sua 4ª edição em seis meses desde seu lançamento.

O QUE É O AMOR?

Participo do júri do concurso Sonho de Valsa de melhor dica romântica. Meu filho Vicente gravou o depoimento.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

CAFÉ SEM AÇÚCAR

Arte de Van Dongen


Consultório Poético retorna com sua franqueza sem rodeios.

Jovem namora homem casado e pergunta se ele pode abandonar a esposa.

Nem consultei a borra de café:

"O que preciso avisar é que todo relacionamento é uma decisão. Ou ele já tomou ou não tomou partido, entende? Começar é optar. Não é algo que vem com tempo. Seu namoro sugere que ele está experimentando uma nova rotina para ganhar coragem. Não acredito nesta postura - é conversa para não mudar. Muitos homens usam o período inicial de total confiança para neutralizar seus deveres e cuidados."

Leia todo palpite aqui.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

COMO O HOMEM E A MULHER FALAM QUE BATERAM O CARRO

Arte de James Ensor

- Amor?

- O quê, como está o passeio, gostando?

- Sim, os amigos estão gostando bastante...

- O que foi? Tua voz está estranha.

- É que eu passei pelo Parcão, tomei chimarrão com Cássio e Helena no lago, está um dia ensolarado, lindo mesmo, muitas crianças brincando, uma alegria de árvore balançando, pena que não veio, conversávamos sobre a importância do bigode na construção de ditadores. Sem bigode, o homem deixa de ser tirano, não concorda?

- Concordo, há exceções barbudas, mas a barba não deixa de ser um falso bigode... Mas qual o problema?

- E também descobri que cachorro tem olhar de mendigo e gato de voluntário de uma ONG.

- Hahaha, só você para pensar isso.

- Entramos de volta ao carro e tomamos a Hilário Ribeiro, a Luciana de Abreu, eu tentei colocar Vitor Ramil no CD novo, não achava o buraco e queria manter o interesse deles pela cidade, falava e tentava encaixar o CD e segurar o volante, não podemos desperdiçar nenhum momento, nunca sabemos ao certo quando o casal de Sampa poderá voltar, né? Pena que não veio.

- O que houve?

- Eu me distraí um pouco e lembrava o Puppi Baggio, o restaurante que nos conhecemos, aquele em que pediu a garrafa mais cara da adega para me impressionar. Depois que o garçom abriu e tu provou os R$ 500 de sua conta, eu contei que não bebia.

- Hahaha, é verdade, a gente somente passa a amar quando os sonhos improvisam e mudam os planos.

- É isso que eu desejava falar, amor.

- O quê?

- Eu bati o carro!

* * *

Mulher nunca é objetiva, raciocinou Francisco, escutando o longo blábláblá ao telefone daquela senhora.

Manuela ligou para o marido e dizia coisas que não tinha conexão com o tenso momento, que poderiam ser postas de lado.

E Francisco estava louco para retornar ao Bom Fim, mas estava parado no meio da rua porque aquela mulher bateu de leve na traseira de seu Gol.

Como todo homem, odiava esse escândalo de parar o trânsito, as buzinadas, a curiosidade mórbida dos passantes. A vontade era gritar: - Não fui eu, pare de olhar! Porque todo homem teme que seja culpado por um acidente, parece que fere sua masculinidade, destrói sua reputação.

Ele pegou o celular, já estava atrasado para o encontro com Cris.

- Cris?

- Sim, tá chegando?

- Não, bati o carro. Vou resolver aqui e depois te conto.

Não sei o que é pior, a preliminar feminina para dizer que bateu o carro ou o jeitão direto e seco masculino que não explica mais nada e abandona o familiar com o coração na mão. Com o tutututu da chamada desligada.

(Textos gigantes de minha autoria foram espalhados por diferentes pontos de Porto Alegre e depois reunidos no livro "Conto a Céu Aberto" - Fiateci/Rossi)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

FICHA LIMPA

Arte de Cínthya Verri



Mafioso tem ética, bandido tem ética, não há como fugir do código de conduta na intimidade.

Divido o homem em duas linhagens: os que respeitam nossa mulher e os que desprezam os laços.
Os primeiros estão destinados a perdurar a vida inteira, os segundos são salafrários, capazes de vender a mãe e a irmã numa única tacada. Nem o inferno aceita: produto intelectual de segunda.

Amigo é que nem ressaca; só saberemos se a conversa é original no dia seguinte. Amigo que é amigo não vai soltar cantada nenhuma na sua frente, sequer elogiar em excesso sua companhia. Não fará piadas de duplo sentido. Só mencionará o conjunto da obra. Qualquer coisa é o casal pra cá, o casal pra lá. Será educado, contido, elegante. Guardará qualquer comentário indiscreto para as cinzas.

Porque é fácil jogar contra o próprio time. Afinal, ele conhece seus defeitos, falhas e fraquezas como ninguém.

Bem intencionado, não irá criar indisposição e intriga, muito menos tentará ser mais amigo dela do que de você. Cuidado com quem troca de lado na confidência.

É questão de probidade amorosa. Não empregar o desabafo dos parceiros a seu favor. Jamais receber benefícios dos segredos.

Aprendi o mandamento, aos onze anos, na Escola Imperatriz Leopoldina, quando falei para Rodrigo que estava a fim de Rita e ele roubou as poesias de meu caderno para conquistá-la. Namoraram por plágio.

Nunca me envolvi com mulher de amigo. Pode ser ex, flerte, casinho, amante. Assim que se aproximou de um camarada, a atração morreu. Namorada de amigo meu não é homem, eu é que deixo de ser. Sou castrato, sou transexual, uso saia, mas ela está cortada definitivamente da lista, do futuro, da libido. Armo exercícios imbatíveis de prevenção, fantasio a figura graciosa de buço, com o sovaco peludo, sem o dente da frente. Sempre surte efeito, não corro risco. Não será o trago e a carência que me farão mudar de ideia. Mesmo que a menina se esfregue em mim, seminua ou vestida de tenista. Mesmo que deite de quatro numa mesa de sinuca, como na capa de Playboy de minha infância. Rebato os ataques com a astúcia de Santo Antão. Não cometo esse pecado, tão hediondo quanto incesto; toda tentação exige o mínimo de moralidade.

Quando se quebra a palavra não existe modo de recuperar o caráter. Igual a cavalo: depois de uma fratura, não corre mais. Nem adianta alegar que “aconteceu” ou que não teve como controlar (desculpa ainda mais calhorda, ao transferir a culpa e se isentar do ato).

Por isso, até hoje, tenho tão poucos amigos.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

PELOS SUSTOS DE TERNURA QUE SEMPRE ME DÁ



Branquinha!

Depois de dois anos é que confessou que gostava de Fafá de Belém. Pensou que eu não aguentaria. Você tem dessas. Acha que não será amada como se amou. Acha que pode resolver tudo sozinha. Já ouvi gritando num desentendimento: "Não tem problema, cuido de mim, tô acostumada". Se fico preocupado, diz que é uma forma de culpá-la. Não deseja incomodar. Odeia depender do amor de um homem, que é muito pior do que depender de um homem. Odeia me amar porque contrario tudo o que esperava da independência de um casal. Talvez se perceba abençoada por uma maldição. Eu me assusto sempre, você que não prevê. Susto de ternura. A ternura me excita. Adoro quando come e transforma todo alimento em molho dos outros. Adoro quando escolhe uma calça e põe a pilha delas no chão, para não esquecer qual usou. Adoro que chama seus melhores amigos de amado/amada e seus pacientes de flor. É uma floricultura ao telefone. Adoro quando me dá uma série de beijinhos pelo rosto, como se me banhasse de sopro. Adoro que deixa as portas abertas do armário da cozinha para me lembrar do que falta comprar no mercado. Adoro que adormece de repente e acorde, elétrica, procurando recuperar a excitação noturna. Adoro que pode dirigir a cidade inteira de ré, segurando minha mão: seu retrovisor. O que também não confessei é que gosto de Fafá de Belém.


Publicado na Revista Cláudia
Dezembro 2010, P. 116
Nº. 12, Ano 49

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

PARA QUE SERVEM OS HOMENS

Arte de Richard Estes


Meu pai saiu de casa quando tinha sete anos. E entrei em pânico.

Atormentado de coração. Porque a mãe só reclamava que não havia mais ninguém em casa para matar baratas.

Não lamentou o fim do casamento de três décadas, a despedida brusca, e sim o término da proteção contra o esgoto.

Pensava que o pai era um inseticida. Logo contraí saudade de seus olhos brilhantes de naftalina.

Assumiria a tarefa masculina da residência. Algo muito precoce, recém havia me acostumado a usar calça comprida. O mesmo que sustentar a família antes de entrar para a escola.

O duelo prometia. Na minha infância, as baratas experimentaram uma fase transgênica, de helicóptero. Balofas, imensas, crespas e voadoras. Acho que encontravam comida com excessiva facilidade (não varríamos bem o chão?), a questão é que pareciam ratazanas escuras nas costas de morcegos. Saltavam de um lado para outro. Planavam longamente. Com suas antenas delirantes, representavam a televisão 29 polegadas da época.

Eu não podia confessar que sentia nojo. Na primeira vez que ouvi o grito da mãe, ela me entregou seu chinelo havaiana azul 36 e me lançou ao batismo: “Mata rápido!”. Não contei com preparação psicológica nem fiz estágio com formigas.

O animal estava escondido na máquina de lavar. Persegui sua sombra, respirando pela boca. Meus cílios também se mexiam como patas.

O negócio é que não bati o chinelo com firmeza no piso, arremessei longe e a barata desapareceu na favela dos cascos de refrigerante.

A mãe não escondeu a decepção. Fechamos a cozinha por um dia, almoçamos e jantamos fora, tudo minha culpa. Deixei de crescer três centímetros devido àquela manhã de fracasso.

Já adulto, mato baratas sem piedade. Lamento que não recuperei o atrasado, seria mais vistoso com 1m80cm.

Talvez tenha adquirido o respeito de minha mulher. Ela também esperneia e solta gritinhos. Não compreendo porque ela sempre sobe no colchão quando vê uma barata. Seu susto brinca de cama elástica. Vou lá e resolvo a pendência com rapidez. Virei um justiceiro implacável e de sangue frio. Esmago a baranga e limpo com papel higiênico.

Gostaria que Cínthya matasse baratas em nome das mulheres do mundo. Mas sei que não posso confiar em mulheres que matam baratas. Fiquei satisfeito quando ela pegou uma mosca com as mãos. E comprimiu os dedos com a pupila tremendamente malévola. Foi uma atitude ninja, de reflexo judoca.

Na verdade, aquilo me deu mais medo do que de minha mãe. Ela me humilhou, eu que mal conseguia apanhar mosquitos. Não pretendo medir minha altura de novo.




Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 06/12/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16541

NO GLOBO



Publicado no jornal O Globo
Segundo Caderno, p. 5
Domingo (5/12/2010), Rio de Janeiro

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

CACHORRO MAGRO

Arte de Cínthya Verri


Minha mãe costumava afirmar que o gato gosta da casa mais do que do dono. O dono pode ir embora, o gato permanece. Nunca tive gato para confirmar o provérbio. Mas sou totalmente cachorro. Não importa tanto a casa, mas a dona. Vou onde a dona estiver. A dona é minha casa. Farejo, sigo atrás, abano os olhos, preparado para as sentinelas mais longas na calçada e para as insônias mais ébrias dos bares.

Já tive duas residências, tantas, eu me separei e nenhuma ficou comigo, não é despojamento, é escolha, não posso ter tudo. Renunciei apesar de adorar o trânsito suave dos aposentos, o escritório repleto de luminárias, os penduricalhos das viagens, a decoração excêntrica, as poltronas de leitura e de cochilo, a biblioteca imponente.

Abandonei todos os cantos apesar de minha inclinação caseira. Apesar de ser feliz com um paninho e um lustra-móveis; o lustra-móveis é um dos meus cheiros prediletos, retirar o pó e girar os dedos pela mesa e encostos imprimindo um cuidado demorado, próprio de toca-discos. O dedo tremendo a agulha da unha; nas faixas da pele, algumas canções de Elvis Presley.

Vejo que não dependo de um teto, até as estrelas são hospedaria. Preciso de uma esposa que me distraia de mim. Por ela, sou um cachorro magro, sempre com fome. Um pouco obsessivo, muito ciumento, mas leal. Não me canso de chegar.

Sei como ninguém fazer uma mulher alegre e sei como ninguém fazer uma mulher triste. Talvez não saiba dar paz a uma mulher.

O temperamento canino me rende confusões. Quando amo, nunca encerro um relacionamento, ameaço o fim para logo resolver a conversa e as diferenças. É como um blefe, um ultimato, derradeiro recurso de oratória. Bem prepotente, tipo ou concorda comigo ou me perde.

O impasse é que Cínthya — prática e objetiva — leva a sério cada palavra, não passa pela sua cabeça que é uma metáfora. Não concorda com a malícia do desespero. Tem razão: eu me encho de espuma e de raiva, complicado discernir o que é improviso do que é roteiro. Eu acabei o namoro várias vezes, e ela infelizmente acreditou. Não era para acreditar. Seu papel era de resistir, de mostrar minha tolice.

Se arrumava a mala, ela me ajudava. Se pulava do carro, ela acelerava. Um saco, não tinha graça. Sem plateia, desisti da estratégia arriscada. Hoje termino comigo antes de terminar com ela.

E parei para refletir de onde arrumei a mania. Notei que na infância nunca partia ou entrava pela porta da frente. Reservava a campainha para as visitas. Meu caminho se desenrolava pelo portão do lado. Ia à escola, discreto, a partir do quintal, impregnado do perfume das laranjeiras nas golas brancas. A minha volta também acontecia pela cozinha, na véspera do almoço, para direto mexer nas panelas e descobrir qual seria a comida.

Na briga, é assim mesmo, não existe a porta da frente, apenas a porta dos fundos, que desemboca no pátio. Meu adeus é uma falsa despedida, um aceno confuso. O pátio ainda é casa apesar de sugerir que fui para longe. Seria a avenida da própria casa. Um corredor por fora do quarto.

Na verdade continuo no terreno. Como um cachorro, espero ser chamado de volta.



Crônica publicada no site Vida Breve