segunda-feira, 29 de novembro de 2010

É DEZEMBRO!

Arte de Cínthya Verri (estou fantasiado de Wolverine)


30/11 (terça-feira) – São Leopoldo (RS), 21h
25ª Feira do Livro de São Leopoldo - Sou patrono
Sarau
Local: Satolep
(Av. Independência 1213A)

01/12 (quarta-feira) – Novo Hamburgo (RS), 9h
28ª Feira do Livro de Novo Hamburgo
Palestra
Local: Praça 20 de Setembro

01/12 (quarta-feira) – São Leopoldo (RS), 19h
25ª Feira do Livro de São Leopoldo - Patrono

Arrastão Dia Mundial de Luta contra Aids
Local: saída da Av. Independência em frente a Câmara Municipal

03/12 (sexta-feira) – São Leopoldo (RS), 19h
25ª Feira do Livro de São Leopoldo - Patrono
Homenagem ao patrono com Maria Carpi e Cínthya Verri
Local: Praça 20 de setembro
(Rua Osvaldo Aranha, 934)

03/12 (sexta-feira) – São Leopoldo (RS), 21h
25ª Feira do Livro de São Leopoldo - Patrono
Noite Corsária com Renato Godá (foto), Fabrício Carpinejar e Banda A-4
Local:
Satolep
(Av. Independência 1213A - Centro)

05/12 (domingo) – São Paulo (SP), 15h30
Inauguração Biblioteca SESC – Unidade Belenzinho
De Repente Literário com Fabrício Carpinejar e Marcelino Freire
Local:
Sesc Belenzinho
(Av. Álvaro Ramos, 991)

11/12 (sábado) – Sorocaba (SP), 19h
Palestra “Rubem Braga e Luis Fernando Verissimo: as duas revoluções modernas da crônica brasileira”
Local: Oficina Cultural Grande Otelo
(Praça Frei Baraúna, s/nº, Sorocaba/SP)
e-mail: oficina.grandeotelo@gmail.com

15/12 (quarta-feira) – São Leopoldo (RS), 19h30
Bate-Papo Jornalístico e Posse da nova diretoria regional do Sindicato dos Jornalistas do Vale dos Sinos
Local: Café Marins
(Rua Marquês do Herval, 232)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

CUIDADO COM O QUE ELA SONHA

Arte de Cínthya Verri


Brinco com a minha mulher de que, na hora do sexo, ela pede para acender a luz e sou eu que insisto para apagar.

Homem feio tem pudor. Vá que ela descubra com quem dorme.

O humor nos salva das grandes brigas. Só não consigo me livrar das pequenas, da ressaca de algumas manhãs. Tem dias que ela se levanta me xingando, me espancando com o edredon. Não entendo o que fiz. Vou apanhando antes de qualquer palavra. Acho que cometi uma barbaridade, tipo ter alucinado com outra ou trocar seu nome. Será que vacilei em voz alta? Eu nem me defendo, pensando que ela está certa mesmo. Quando não tenho culpa, pego emprestada a mais próxima de mim. Ou do estoque da infância, sempre cheio.

Mulher é vulnerável, suscetível, vive em estado de floração, se vê injustiçada por delicadezas que nem noto. Nunca fui bom no jogo dos sete erros. Basta uma expressão deslocada e ela chora compulsivamente, dizendo que não merecia tanta desconsideração. O grave é que desconheço a maior parte dos motivos do choro, preciso primeiro enxugar as lágrimas, acalmá-la e isso exige mais de quarenta minutos.

Ela estava uma fera comigo. Após ser sovado como uma broa, pulou da cama com a arrogância que apenas a tristeza dá. Não me encarava, virava o rosto. Segui atrás, ela bateu a porta do banheiro na minha cara e fiquei conversando pelo trinco.

— O que foi, amor?
— Me deixa em paz…

Já cogitava uma grosseria feita de noite. Mas me lembro que ficamos abraçados, gostosos, cheirando os olhos. Não havia lógica. Recapitulei o jantar com os amigos, arrecadei minhas principais participações, criei um balanço das contas linguísticas das últimas 24 horas. Nada que provocasse sua mágoa. Às vezes ela zoa, arma charme e vem com soquinhos nos meus braços comentando que não sabe o motivo de estar me batendo, mas que eu devo saber. Não era o caso. Parecia grave.

— Amor, me conta o que está acontecendo?
— Não quero, se eu conto você vai se defender…

Demorou o banho, o café, a saída apressada ao trabalho para descobrir a verdade. Fiquei tenso em vão, limpei o elepê de Cauby Peixoto para escutar de madrugada, preparei discursos inúteis de despedida.

— Pode desabafar agora?
— É que sonhei que estava me traindo. Tudo horrível.
— Mas não posso me responsabilizar por aquilo que sonha.
— Não tem ideia do que aprontou, por quê? Por quê?
— Estamos ótimos, é um sonho, não aconteceu.
— Aconteceu sim, da próxima vez peço para me cornear em seus sonhos, não nos meus.

A vida é injusta. Não tenho como apagar a luz dentro dos pesadelos dela.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

VAI SE DEPILAR HOJE?

Arte de Allen Jones


Não se pode ser bagaceiro sem antes ter intimidade. Não dá para sair falando como se estivesse no quarto; primeiro deve-se atravessar a sala, o corredor, a cozinha.

Safadeza é merecimento. Os atravessadores não merecem o céu da boca. Os apressados não terão a recompensa divina. Os ansiosos desperdiçarão sua chance de Éden. Sou favorável à lentidão, por isso nunca frequentei praia de nudismo. Tampouco sou adepto de swing ou de qualquer prática que banalize a sensualidade.

Vamos direto à ação não funciona comigo. Conversa que é a ação, desprezá-la indica apatia e conformismo.

Aparecer pelado de repente é broxante. Não queimo etapas: desvestir as palavras para depois se despir, encontrar o sim dentro do não, achar o amor definitivo dentro de um talvez.

Partilhar a memória só é possível para quem reparte a imaginação. Reprimido não é o que não confessa seu passado, é o que não consegue expor suas fantasias.

Entendo a decepção da esposa quando ela volta do banheiro e seu marido já a espera pronto na cama. Direto. Apartado de preliminar e provocações. É pior ainda quando ele nem está excitado.

Tão mais prazeroso quando um tira a roupa do outro e se roça e se enreda de sinais. Não dependemos de música-ambiente, desde que sejamos envolvidos pela respiração de nossa companhia. Respirar perto e acelerado prepara o gemido.

Gosto quando a mulher está sem calcinha, mas que não surja nua de assalto. Como materialização do túnel do tempo. Que seja um pouco difícil para me sentir importante. Quero deixá-la à vontade para criar vontade.

A sugestão feminina é uma dádiva. Aquela que diz de cara que está molhada e úmida veio de um filme pornô. Nem sequer leu o roteiro.

Assanhamento pressupõe a malícia de declarar a intenção não entregando o sentido de bandeja. Admiro as mulheres que insinuam, sempre criativas, não facilitando os lençóis. Testam a inteligência do seu parceiro.

Por exemplo, sei que minha namorada está a fim quando avisa, despretensiosamente (isso é importante!), que foi no salão. Quando indisposta, lamentará que não teve tempo.

“Eu vou me depilar hoje” é a senha. Desnecessário o convite literal. Cresço de alegria. A verdadeira terapeuta sexual é a depiladora, é a que resolve as brigas e as discussões. Eu amo todas as depiladoras do mundo pela alegria noturna que oferecem aos homens. São as madrinhas morais de nossa imoralidade.

Sexo pede respeito. Sem respeito, como iremos perdê-lo no decorrer do enlace?




Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 22/11/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16527

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

AMOR É ALERGIA

Arte de Cínthya Verri


Vários leitores me perguntam quem é a cadela que está na contracapa do meu livro Mulher perdigueira.

É Cora, animalzinho branco de minha namorada. Tão estapafúrdia que fica engraçada. Eu me identifico. Sou um desajeitado que se esconde na irreverência.

Cínthya comprou como se fosse um maltês. Desejava um cão manso, comportado, obediente. Procurou um criador registrado no Kennel Club. Pagou R$ 600,00. Assim que recebeu a encomenda, uma veterinária alertou da trapaça, não havia pedigree naquela desengonçada figura. Enfurecida, a namorada sustou o pagamento. O vendedor foi atrás, convenceu que se tratava de um tipo especial de maltês, Cínthya ingenuamente caiu na conversa e liberou o cheque.

Cora nada tem de quieta e disciplinada. Uma vira-lata imprevisível. Muda de estação a cada três horas.

Sua aparência é circense. Tem duas orelhas assimétricas. Uma permanece deitada enquanto a outra está pelo avesso. No começo, tentava ajeitar a aba, mas logo comprovei a inutilidade do esforço. Para acentuar a comédia, é vesga, vive observando seu nariz, pensa que o focinho é mais um osso a ser enterrado.

Ela é o cão mais carente que conheci. Treme quando vamos sair ao trabalho. Forja um ataque epiléptico. Impressionante como inventa febres — pena que não tinha seu dom na infância para escapar das provas finais.

Cora depende do recolhimento de apartamento: três dias na rua e morre. Cheia de fragilidades, rações especiais e remédios ultramodernos. Adoece depois de interagir e brincar com cães na praça e na residência de amigos. Visitou sua quinta clínica em um ano e não encontramos uma poção miraculosa que resolvesse as pendências de pele. Ela tem mais xampu do que sua própria dona.

No bairro, tornou-se famosa pelos rompantes antissociais. Morde os calcanhares das pessoas na rua e salta em motoqueiros. Ela não caminha, nos arrasta, a exemplo de farejador de drogas da polícia. Buscamos adestrá-la, porém regride com a mesma facilidade em que avança. Passear com ela significa se incomodar com metade da vizinhança.

Cora é um babuíno, um gato, um hamster, um coelho, raramente é um cachorro. Às vezes é um travesseiro. Durante o dia, pesca roupas sujas da cesta da lavanderia para dormir em cima. Sente prazer em sestear no cheiro de Cínthya.

Não podia ser mais problemática: uma calamidade, capaz das mais altas histerias, de trepar com a cama, de estraçalhar óculos, de pular a escada, de latir para plantas. Ao mesmo tempo, é um bebê de bolso. Levá-la no colo é receber a fincada suave e generosa de suas unhas, pedindo para nunca ser abandonada. Tomada de felicidade, morde o rabo. Arrebatada pela tristeza, geme gregoriano.

Sofre por antecedência. Ao quebrar algo, refugia-se debaixo do sofá. Enxergá-la ali é descobrir que aprontou. Nem precisamos localizar as provas. Entende tudo rápido, assim como esquece tudo rápido.

Tem complexo de Gulliver. Foge de borboletas. De baratas. De moscas. Já a testemunhei correndo de formiga. Menor o bicho, maior é seu medo. Por contraste, não guarda nenhuma noção do perigo e enfrenta cavalos, vacas e pit bulls.

Cora já engoliu veneno de rato. Sobreviveu. Já engoliu botões de camisa, ímãs de geladeira e teclas de computador. Sobreviveu. Confunde todo rosto que se aproxima com porta de geladeira. Senta e espera um farelo com as roldanas dos dentes. Uma mendiga especializada em estragar um jantar romântico.

Tenho incompatibilidade com Cora. Nossa relação é impossível. Um amor alérgico. Seus pelos provocam o diabo da rinite. Uma tosse seca, irritante, interminável.

Cínthya diz que o mal-estar é culpa do cigarro, faz vista grossa e cria condições para a invasão da pestinha em nossa cama. Procuro dissuadir a entrada, tranco a passagem do corredor; Cora acha um jeito de aparecer. Acordo com longos fios grisalhos pela camisa.

Quanto pior o cachorro, mais nos apaixonamos.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

VÁ SE LIXAR!

Foto de Cínthya Verri

Ele está sempre inventando moda: o escritor gaúcho FABRÍCIO CARPINEJAR abandonou o formato tradicional do cartão de visita e se apresenta agora com uma novidade que certamente vai agradar o mulherio. À guisa de apresentação, o poeta e cronista oferece cinco lixinhas de unhas destacáveis em uma embalagem de caixa de fósforos personalizada (foto acima).

O suvenir valoriza uma das marcas do escritor, que são as unhas da mão esquerda meticulosamente pintadas. O autor de Canalha! e Mulher Perdigueira jura que está criando uma nova moda masculina – e até o boleiro português Cristiano Ronaldo anda aderindo aos esmaltes...

Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, Contracapa
Porto Alegre (RS), 15/11/2010, Edição N°. 16520

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

CAINDO NA PEQUENA ÁREA

Arte de Cínthya Verri


Assim como atacante simula um pênalti, o casal cava brigas.

Grande parte das discussões de relacionamento não acontece por uma justificativa clara e evidente, é pressa, desejo de resultados imediatos.

O divórcio tem motivo, a briga não. É aleatória, e invade inclusive os momentos felizes. O atacante poderia fazer gol e comemorar com a torcida, mas preferiu se jogar na área e contar com a cumplicidade do juiz. A esposa poderia beijá-lo, mas decidiu teimar com a aproximação de uma colega de trabalho e tecer perguntas constrangedoras.

Não existe briga legítima. Todas são forçadas, artificiais e teatrais. É um ranço à toa, uma provocação passageira, uma vontade de incomodar que escapou do controle. Há o equívoco de se pensar em criticar algo e logo mudar de assunto, ferir e esconder a arma, como se a palavra não fosse bumerangue e não viesse de volta, com muito mais força, cortar nossa cabeça. Planejamos a briga, o que não prevemos são as consequências. Entrar numa discussão é fácil, o orgulho não nos deixa sair.

A mulher tem algumas cartadas implacáveis para puxar seu parceiro ao ringue. Mesmo quando ele não quer e programou assistir seu futebol tranquilamente.

Eu já sofri com o blefe. Fui um zagueiro que não atingiu a centroavante e ela simulou agressão.

Estava quieto, pensativo, aguardando a rodada do Brasileiro, e minha namorada começa a antecipar a lista de tarefas da semana. Eu respondo educadamente, não entro em detalhes. Nada nos magoou durante o dia. Ela repete um ponto, replica de novo. Não que eu não tenha respondido, é que a resposta não a agradou. Tento reagir diferente, com outras palavras. Tudo sob controle, vocábulos neutros, os times entraram em campo.

Na hora do apito, como não encontrou qualquer argumento para discutir, ela vem com a tese de que a minha voz está diferente. Que voz de homem não fica diferente assistindo sua equipe?

Eu me ferrei, ninguém se salva dessa abordagem. Em vão, busco dissuadi-la da ideia, não reparo que é uma ideia fixa, indicando uma obsessão incontornável.

— Não, minha voz está a mesma.

— Não me engana, sei que aconteceu alguma coisa, o que foi?

— Nada, estou ótimo, te amo.

Apliquei o “te amo” para espantar as desavenças, um “te amo” preventivo. Faltou experiência no ramo, sempre que mencionamos um “te amo” solto do assunto é que virá guerra, é visto como um ato falho ou um sentimento de culpa.

— Eu conheço, sua voz está diferente.

— Não está, não está…

— Está sim! Está sim!

Ela aparecia com o velho papo de que me conhecia melhor do que eu, o que é irritante. Meu timbre permanecia igual, até que não aguento mais a insistência e passo a gritar.

— Que merda…

— Viu?

— Viu o quê?

— Está brabo, acertei, sua voz estava diferente. Vai agora me dizer a verdade?

Não me pergunte qual foi o placar do jogo.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

QUANDO O HOMEM FINGIR O ORGASMO

Arte de Francis Bacon

As mulheres queimaram a calcinha, o sutiã e as pantufas. Os homens incineraram as ceroulas e os pijamas listrados. Não há mais nenhuma revolução sexual. Depois do anticoncepcional e do Viagra, a impressão é que os tabus foram superados e não desponta recorde a ser quebrado no horizonte.

Você se engana. A mais complicada mudança de costumes ainda não aconteceu: o fingimento masculino do orgasmo. Aguardo uma pílula que amplie o nosso repertório.

Seria nossa libertação das garras e caprichos das lobas e lolitas. Se a mulher saiu da cozinha, o homem não abandonou o quarto. Está algemado na cama de seu corpo. Da forma atual, seremos sempre dependentes. Não há como se safar. Manteremos a pose de sexo frágil da relação, submissos e súditos. É uma injustiça ultrajante, nos privaram do benefício de falsear, testar gemidos, recorrer a playback, enganar a plateia. É tudo real, honesto e verdadeiro. Uma sinceridade imperdoável. Entregamos na hora se amamos ou não, se estamos felizes ou não; dispensável o interrogatório.

Nenhuma namorada busca conferir o orgasmo do seu parceiro. Não merecemos nem a pergunta. Não desfrutamos do mistério, da hesitação, do enamoramento entre o claro e o escuro. Não conhecemos a dúvida, filhos da certeza por toda a eternidade. O grito e o tremor nos entregam. A ausência de chance de mentir no sexo faz com que a gente tente descontar fora dali, contando vantagens na profissão.

O homem pode enganar pulando da cena com a camisinha intacta. Mas não gera a mesma graça. No sexo tântrico, corre o boato de que é possível gozar sem ejacular, porém nenhuma esposa é santa para acreditar nesta história, dirá apenas que broxamos e pedirá na lata para confessar o nome da outra.

O progresso carnal virá com o fingimento do macho. É o que falta para a civilização confirmar a igualdade. É o último degrau. Distanciado de truques e evasivas, terá que ser encarando a vítima. Como no teatro da crueldade: simular olho no olho, boca na boca, ouvido a ouvido. Reservaremos um dia na semana para aula de canto, exercitaremos o pompoarismo das cordas vocais. Ela ficará indecisa se agradou, louca para questionar e nos bater com o travesseiro, prestes a nos sacudir pelo veredito. E não falaremos nada, observaremos o teto com ares de abóbora e dormiremos de conchinha.

Assim a mulher saberá finalmente o quanto sofremos até hoje para descobrir se ela gozou.





Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 8/11/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16513

ELOGIO DE VERISSIMO






Publicado no jornal Zero Hora
p. 2, 8/11/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16513

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

MÃO GRANDE

Arte de Paul Cézanne

Não tenho definido quando passei a usar desodorante. E meus pais viram que suava e fedia. Qual foi a marca? Não tenho certeza de quando usei a primeira vez a gilete no rosto, após surgir o bigode falhado que não era de vitamina. 11, 12 anos? Não conservo a convicção de tempo quando troquei sabonetes e loções infantis pelo xampu e o box virou uma farmácia. Ou quando comprei minhas roupas e não encontrava mais espaço nas prateleiras. Ou quando surgiram os pêlos pubianos e me envergonhei de cuidados. Ou quando comecei a trancar a porta do banheiro, do quarto, da frente. Ou quando me interessei por uma menina.

Não anotei metade dos acontecimentos da minha transição, não contei com álbum de fotografias e legendas que servissem de corrimão para a memória. Nunca confiei que teria uma biografia, já era complicado ter uma vida.

Entrei na fase adulta com a paternidade. Foi quando deixei de gritar. Italiano, gringo, passional, acostumado a chamar as pessoas da residência pelo berro, não importando a distância, conheci o sussurro. A conversa sussurrada. Algo inédito para meu biotipo agressivo. De modo nenhum, na adolescência, falava baixo para não acordar os irmãos, desejava mesmo é chamar atenção e levantar a família. Não gostava de tomar café da manhã sozinho.

Ao nascer a Mariana e Vicente, realmente me aquietei. Eu me despedi do desespero. A sensação é que a altura da voz é agora a do sangue. Não imponho o timbre, não ergo as vogais, descobri o quanto o sono deles é sagrado. Antes derrubava xícaras, batia o armário, pisava fundo. Agora sei furtar minha casa com competência. Roubo pertences de um aposento a outro com enorme talento. Pego as roupas sem estardalhaço, prendendo a respiração. Acredito que flutuo pelo chão, meu par sujo de meias são minhas asas. Escovo os dentes economizando o chapinhar da torneira, sento-me na sala com a escolta silenciosa da luz. Permaneço horas a fio com o ouvido de pé, como se controlasse todos os ruídos do telhado. O assoalho somente passa a existir depois dos filhos.

Maturidade é assistir com gosto um filme mudo, não pensar mais que o silêncio é um defeito. Se minha mulher desperta, nossa risada é feita de sopros e assobios, não é tão diferente do canto dos sabiás nos fios telefônicos. Somos pássaros ciscando as chamadas e os interurbanos. Não deixamos de fazer nada, mas sempre com imponderável discrição. Mexemos nas panelas e montamos o almoço pousando os pratos na mesa. Não há atrito entre os garfos. Não há um rasgo de metal no dia. As crianças acordam pelo cheiro da comida.

Despertamos os filhos no final de semana pelo olfato. É o nosso único barulho.



Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 135, Número 204
Novembro de 2010

PERDIGUEIRO NA FEIRA DE POA

Rodrigo Rocha

Acho que nasci dentro da Feira do Livro de Porto Alegre. Meu pai me levava desde pequeno pelas bancas. Minha mãe me erguia para espiar os espetáculos. Há um sabor especial em autografar na Praça da Alfândega. Como um batismo que nunca termina.

Neste sábado (6/11), às 19h30, estarei assinando Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil, 2010) aos amigos e leitores. No Pavilhão Central. Mais do que dedicatória, prometo dedicação.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

SONHO DE VALSA

"Ama-se para não esquecer. O que mais desejamos é que alguém nos guarde, nos ajude a lembrar. Pense em cenas que passaram juntos, devolva lembranças linha a linha, para sinalizar que tudo o que vive com ela é decisivo. Revele que conhece sua namorada nos gostos mais simples. Ao dizer que tem saudade do cheiro dos seus cabelos, seja específico, diga qual o xampu que ela usa. Intimidade é conhecer detalhes."

Sou jurado de concurso do Sonho de Valsa. Dou conselhos aos apaixonados para seduzir desde o café da manhã. Quem formular a melhor dica receberá uma viagem de uma semana com acompanhante a Paris (França). Os temas são quinzenais, o primeiro é sobre filmes de amor. Participe da promoção. Aqui.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

VARREDORES

Arte de Cínthya Verri

Desço a rua Lageado, em Porto Alegre, as árvores ainda montam sua feira de frutas, a luz vem filtrada pelos galhos, o cheiro é de grama voada, a igreja São Sebastião é meu ponto visual para chegar à Protásio Alves, quase tudo igual a minha infância, menos as pessoas guardadas.

Há um recolhimento de madrugada em pleno sol. Não há mais ninguém varrendo a rua de manhã. A casa somente ficava limpa se a rua era varrida. A rua representava parte da residência. Uma extensão do pátio. Um corredor ansioso ao mundo. Antes das grades e das cercas eletrônicas, do pavor do assalto, a frente funcionava como sala de visitas. Recebia-se namorada nos cantos, o vendedor de enciclopédias e as representantes da Avon no jardim, os mendigos familiares e as campanhas de agasalho na escada. Os únicos riscos que apareciam no chão vinham do jogo da amarelinha e dos carrinhos de rolimã.

Não adiantava nada arrumar os aposentos, ajeitar a cama, lavar a louça, espanar os móveis, se não limpasse a calçada. Como usar roupa bonita com sapato sujo.

A maior parte dos vizinhos saía para se cumprimentar com sua vassoura de palha. Certo o encontro às 8 horas para reunir as folhas. Certo o falatório entre as braçadas firmes e ágeis. Os motoristas que passavam não interrompiam as fofocas. Achava lírico. Assim como os guris jogavam futebol de uma garagem a outra, os moradores conversavam de um portão a outro. Existia uma ordem imutável: o pássaro no fio, o gato na janela, o cachorro espiando no pátio e o varredor de cabeça baixa cuidando de seus domínios, disciplinado, nunca avançando no terreno alheio, amontoando os ciscos e gravetos num pequeno monte a São João.

Parece lenda, mas usávamos a rua como um cinto que apertava o muro, um cinto para a casa não cair no desleixo de um terreno baldio. As aparências se mantinham já na entrada. Quando as crianças iam para escola, os pais comentavam quais as vias mais transparentes de vento. Abria-se um pedágio informal da palavra, um controle asseado, uma vigilância dos serviços alheios. Calçada suja sinalizava doença ou divórcio. Minha mãe já entrava em polvorosa: “Coitado de Fulana, faz quatro dias que não recolhe as folhas. O que será que aconteceu?”

Desço a rua Lageado. Disputando corrida comigo, um vazamento desde o início da lomba, uma torrente de água branca e espumosa serpeando as pedras. Muito mais rápida do que meus passos. Não anseio soltar um barquinho de papel para ancorar no esgoto. Não é engraçado, é infinitamente triste. A água, como a rua, não tem mais olhos — não há quem se importe.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

XIXI DE PORTA ABERTA

Arte de Torres García


Duas gurias trocavam confidências na janela do bar Ocidente. Pensei que estivessem falando eslavo, alemão, russo, não definia a língua. Do mundaréu de chiados, saltavam palavras como saudade, vingança, grosseria, que me abrasileiravam de novo. Era mesmo português, mas modo queda livre.

Fui notando que mulheres conversam assim, com o triplo da velocidade de um papo masculino. São como feirantes vendendo os abacaxis e os morangos dos relacionamentos. Emendam cenas, comentam o passado, atalham o futuro, zoam e se confortam em seguida. Evidente que a explicação para o excessivo conteúdo em poucos minutos é que estavam com a conversa atrasada. Não vale, mulher já nasceu com conversa atrasada.

É impraticável acompanhar ainda que seja o próprio idioma. Tonteei somente de olhar.

O que me leva a crer que – pela comparação – toda esposa se comunica com o marido como se ele fosse um retardado. Lenta, maternal, didática. Chega a apontar para facilitar o entendimento. Apenas aumenta a rapidez do raciocínio na briga, daí não adianta, ninguém escuta mais.

O que me leva a comprovar a aptidão da fêmea para iniciar diferentes assuntos e não terminar nenhum. Mulher acumula inícios. O homem tem dificuldade de começar, por isso é absolutamente linear e monotemático. Quando seu macho fala de futebol, vai falar de futebol até o fim. Perca a fé de que ele possa mudar o tema e o canal.

O que me leva a entender o hábito bem irritante da mulher de fazer xixi de porta aberta. Ela não pretende interromper a conversa. Nunca. De forma nenhuma. Pra quê? É a sua diversão, com ou sem motivo. Xixi é irrelevante perto da possibilidade de esmiuçar dilemas de seu dia e fofocar sobre o trabalho.

Tanto que há um silêncio mortal no banheiro público masculino e um alarido descomunal no feminino.

Minha namorada entra no toalete de nossa casa e continua papeando. Dispensa licença. Nos primeiros momentos, ficava mudo, esperando que ela terminasse. Mas ela gritava: – Não tá me ouvindo? E me obrigava a responder, apesar do barulho da descarga e da torneira.

Como qualquer barbudo, eu fracasso na adoção de sua mania. Tenho problema de conversar enquanto tento acertar o alvo, operação que desprende concentração e domínio total das forças. Naquela hora, não presto para oferecer conselhos, ser simpático, muito menos dizer “eu te amo”. O alívio do esguicho altera a dicção, vem um gemido do fundo do pulmão. Falta tecnologia mesmo no corpo.

O que me leva a concluir que não tem jeito; sou burro como uma porta fechada.





Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 1º/11/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16506