quarta-feira, 30 de junho de 2010

OLGA DE VOLTA

Arte de Cínthya Verri

Não empresto livro, não existe quem devolva. A generosidade é uma alucinação. Eu agora compro um novo exemplar e dou de presente. Já apanhei da minha ansiedade. Desisti de cobrar, e ouvir a desculpa mais esfarrapada.

Renunciei a metade da biblioteca alcançando obras a colegas — tamanha a euforia com o que li. Não captei a mecânica da maldição: sempre que passo adiante uma obra, o amigo some e desaparece. A gente falava toda semana, de repente ele muda de paradeiro, telefone, personalidade.

Emprestar um livro é o início do desaparecimento. É o suicídio do Orkut.

Ele ganha o livro, eu perco o amigo. Foi assim com Francisco e Esculpir o tempo, de Tarkovski, com Renato e Gramática expositiva do chão, de Manoel de Barros, e com Paula e Alguma poesia, de Drummond, entre centenas de relações extintas.

E não emprestamos algo de que não gostamos, é de nossa preferência, de nossa estima. Não duvido que seja uma primeira edição, numerada e com autógrafos. Por isso, dói o remorso.

O livro emprestado nunca será lido — é aquele que legaremos para depois porque não há pressa. Compraremos outros durante o período, que assumirão a preferência na fila da cabeceira. É impressionante o quanto boicotamos sua presença. Torturamos de espera e de silêncio. De propósito, para testemunhar a saudade de seu dono. É como o amor não-correspondido de uma conhecida. Sabemos que ela nos ama, mas fingimos que é uma novidade. Fazemos de conta que não reparamos nos sinais.

Talvez o livro emprestado seja a vingança a todas as multas recebidas nas bibliotecas das escolas e da universidade. Uma desforra adolescente ao azedume dos bibliotecários de avental. Um trauma pelos cinco dias obrigatórios de leitura. Pelo bolso de datas na última página. Pela mesada consumida nos atrasos reincidentes.

O pai, por exemplo, colocava carimbo na folha de rosto para garantir a reintegração de posse dos seus latifúndios de papel. Não adiantava nada: o movimento do sem-livro invadia suas estantes e não ressarcia os hectares de ar. Tampouco assinar o nome no verso da capa criava compaixão — apenas aumentava a vontade de não devolver.

Minha crença foi rompida neste mês. Ainda estou me recuperando. Quisera apagar da memória o que aconteceu e continuar desesperançado. É mais complicado ser otimista. Fui autografar Mulher Perdigueira em São Paulo. Na recepção, encontrei Inês. Não lembrei quem era Inês de supetão, fui me lembrando aos poucos, frame a frame, gesto a gesto. Os cabelos cacheados me ampararam — a sorte é que ela não inventou de pôr chapinha. Inês? Inês! Colega da faculdade! Seus olhos de mel puxaram a ferroada. Ela me entregou um envelope pardo. Dentro, Olga, de Fernando Morais.

— Toma, é seu!
— Meu?
— Sim, você me emprestou na cadeira de Jornalismo.
— Está brincando?
— E me disse na época: “Getúlio deportou Olga para a Alemanha nazista, portanto tem a obrigação de trazê-la de volta”.

Mergulhei numa vertigem retrospectiva, numa prévia de coma. Passaram vinte anos que cedi para um trabalho numa atividade de rádio. Ela não esqueceu: pelo contrário, carregou seu peso com a expectativa de me rever. Morou no Rio de Janeiro, em Salvador, casou, descasou, e não se desvencilhou do pacote. Quando viajava, levava junto, aguardando um encontro acidental.

Ela me devolveu — mais do que um volume — o cuidado com a amizade.

Pena que não recordava de quem eu tinha tomado emprestado esse livro.



Crônica publicada no site Vida Breve

24 comentários:

Anônimo disse...

Tomara que cultivemos memória RAM para os livros que emprestamos e ROM para os que tomamos emprestado. Assim, a amizade terá garantia que nunca expirará.

Gostei demais da postagem!

Abraço

Luana Gabriela disse...

Fabrício, achei o texto demais. Eu escrevo meu nome e ano em que comprei o livro ma folha de rosto. Tenho 3 emprestados...mas espero reavê-los...( o nome disso? Fé) hahaha


Bjos

Ps: Esse livro eu li emprestado de alguém também, mas devolvi e conservei a amizade.

Unknown disse...

Olá,
A parte prática: não empresto livros. Também não os guardo. Vão todos para a biblioteca da escola da minha irmã e quando recomendo a leitura, recomendo também a escola.
A parte poética: guardei 2 livros que me foram emprestados e demorei alguns anos para devolver. Um pouco para ter alguém por perto, outro tanto para ter a oportunidade de devolver. Inconscientemente decidi devolver os livros quando acreditei estar pronta para colocar o dono deles no passado.
Abraços,
Cláudia

O Neto do Herculano disse...

Quero tantos de volta...

Cris Barros disse...

Um oi sorridente pra começar... começar de verdade.Há dias que afogada em uma certa angústia, buscava pela rede algo com que eu pudésse dissolver os "nós" da garganta, procurei primeiro um remédio antigo, daqueles que sempre dão certo, mas que por infelicidade, e neste caso a felicidade também, não estava lá. No entanto, existia um comprimido tímido que dizia:" indiferença: não merecer uma respota. Desprezo: não merecer nem a pergunta." Carpinejar.
Curiosa e totalmente leiga,ao som de Toada/ Boca Livre, danei-me a pesquisar, imaginando que se tratava-se de um filósofo defunto ou coisa assim, mas a cada frase descoberta, a cada eu-lírico reflexo encontrado( LIVROS EMPRESTADOS...AÍ QUE DOR DE CABEÇA!)eu me convecia que este Carpinejar era é mais real que minhas angústias, que talvez meus sonhos também, pois e não é que ele conhece a famosa tática do amor não-correspondido..."Sabemos que ela nos ama, mas fingimos que é uma novidade. Fazemos de conta que não reparamos nos sinais". Senti então a necessidade de perguntar à ele se assim como de repente a tortura e o silêncio do livro emprestado por saber que jamais será lido, pode um dia retorna e fazer cair por terra e quebrar todas as regras, será que aquele que não corresponde o nosso amor poderá também fazer excessão e encher um coração de alegria, por saber que mesmo depois de tanto tempo e de tantos caminhos percorridos o "amor emprestado" sempre andou juntou procurando o dono para um dia devolvê-lo?
Se acaso poderes responder com a sabedoria dos poetas,peço gentilmente que me encontre nesse cantinho: cristiani.barros21@hotmail.com

Sorrisos,
Cris

Giovana disse...

Tomei a decisão de não mais emprestar meus livros no ano de 2008. Dava aulas na faculdade de Jornalismo e emprestei dois livros a um aluno. Pior que emprestar livros a amigos é confiar que um aluno vá devolver. Depois disso faço como você: compro novo e dou de presente ou indico o sebo virtual, onde se compra edições muito bem conservadas por preços acessíveis.

juliana disse...

Eu tb não empresto meus livros para ninguém, é como se estivessemos emprestando um pedaço de nós e que nunca mais veremos.
Bjos Fabro.

livia disse...

To com 3 da mesma pessoa já faz 3 anos! E posso dizer que a culpa em estar com eles e não devolvê-los diminui a cada ano que passa...mas ainda penso .... será que ela ainda lembra deles? ... e sigo reconfortada pensando que ela pensa neles e em mim!

Anônimo disse...

Fabro, sou Bibliotecária. Se o prazo passa, cobro mesmo! *rs*. Não sossego até ter todos de volta em minha humilde coleção. : )

Beijos,

Tati.

Ana SSK disse...

Ah! Muito bom isso!!!!

ana disse...

Uso isso como critério de avaliação para uma futura amizade. Se uma pessoa não devolve um livro emprestado (meu ou de outra pessoa) não está preparada para uma grande amizade, então, me afasto. Não devolver um livro demonstra que a pessoa tem muito pouco a nos oferecer. Abraços

Glicia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Glicia disse...

Tenho dois livros emprestados atualmente, e por estarem com uma amiga muito especial, se ela não devolver será como um presente por me dar o prazer de sua amizade
Os que realmente eu tenho ciúme, não empresto.
Tenho uma pequena coleção de Cd's, e não empresto nenhum.
Até os que ouço no meu carro, são cópias dos originais que estão em casa.
Conservei uma amizade, pedi um livro emprestado no início do ano e dois meses depois, entreguei a dona!
Usei, abusei e devolvi...
Beijos.

Daniel Leão disse...

agora me doeu bem fundo no coração... comecei a olhar nas minhas estantes quantos livros emprestados, ficados, escondidos...
afe...
será que não tenho fé ?

líria porto disse...

na mosca! por isso, entre outros, guardo numa caixa de sapatos teu autografado! risos
besos

Eliana Guedes disse...

baaah não tenho ideia de quantos emprestei e quantos não devolvi. mas agora veio uma nuvem desfilar capas que amei, livros que devorei. beijo beijo

fernando morais disse...

olá, fabrício:
é uma honra ter sido personagem involuntário desse reencontro bibliográfico. abraços para vocÊ e para o pai. ah, e também para a sábia inês, que devolve livros e não usa chapinha.
abraço do leitor e admirador
fernando morais

Anônimo disse...

eu não deixo meus amigos saberem que tenho o livro...é melhor do que negar ou comprar para presentear...

Ramiro Conceição disse...

..."não emprestamos algo de que não gostamos..."
Por isso que só empresto poemas...


A HISTÓRIA DE LÚCIFER
by Ramiro Conceição

No passado… Lúcifer foi batizado
d’Estrela da Manhã – a última irmã
antecedente do Esplendor dum dia.
Durante eras foi uma alegre alegria…
Mas, aos poucos, sorrateiramente,
uma inveja do Esplendor virou nascente
e, a cada dia, a Estrela da Manhã não ria…
Contudo, o Mistério, que Verá, Vê e Via,
Sabendo que o rancor é a semente da dor,
Fez de lúcifer, Vênus; que é menor e menos
do que o Sol – o esplendor do nosso Amor.

Camila Costa disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkk Amei o texto, está tão verídico quanto fabuloso! Essa semana mesmo devolvi um livro porque ja estava com ele ha bastante tempo e só li metade ! Impressionante.

Estou sempre por aqui, acompanhando o blog.
Sou fã :)

Augusto Dias disse...

Muito, muito, muito bom!!!
Passei sem querer e que tropeço ótimo.
Obrigado por compartilhar, tudo de bom!!!

Darko disse...

Ahã...o "amigo" ficou famoso, vou passar lá para devolver o livro - 20 anos depois.
Tá...tá...entendi o valor da amizade.

KATIACOSTA disse...

Bibliotecária de platão, cobro mesmo eehehhe
Adorei...
Vou colocar livros teus na biblioteca

thahy disse...

O desfecho foi fantástico!
Hoje um colega do colégio que não vejo desde '99 me adicionou no facebook... Lembrei imediatamente do Saramago que emprestei... Será que ele lembra? Devo pedir de volta? Puxar o assunto como quem não quer nada?...

Questões existenciais que me atormentam num sábado de manhã...