sexta-feira, 11 de junho de 2010

NÃO SOU MAIS UM RAMAL

Arte de Marcel Duchamp


Comprei telefone fixo para diminuir a conta do celular. Um aparelho aristocrático, com gancho, disco e fio crespo. Preto lustrado, um sapato de baile.

A decisão veio de um pouco de nostalgia, um pouco de economia. A cada três meses sofro recaídas retrô. De vez em quando sou anos 70, outras vezes anos 80, algumas vezes anos 60, dificilmente me encontro em minha época.

Minha mãe é que apoiou a medida, jurou que estava amadurecendo, tomando juízo. Ela é uma senhora elegante de cabelos grisalhos que confia na lista telefônica mais do que no Google. Orgulha-se em conferir seu nome naquela letra de Bíblia. Ainda umedece os dedos no momento de virar as páginas e trata os vizinhos pelo sobrenome. Na minha infância, ficava brava quando dava o número residencial para um colega. Talvez hoje não tenha tanta importância oferecer o telefone particular, mas já teve o apelo de reverência, de senha bancária. Só se alcançava para quem merecia toda a confiança.

O caso é que recebi o extrato depois de um mês: R$ 10. Na certa, paguei o reles envio postal.

Não pense que foi resultado de oferta formidável, com 30 dias grátis para seduzir a namorada ou uma promoção durante os jogos da Copa. Eu simplesmente não consegui usar o aparelho. Mesmo quando estava em casa. Sua existência me revoltou como as fitas VHS. Isso que experimentei a época em que a dignidade profissional era medida pelo ramal próprio. Um ramal somente para si. Essencial quanto o cartão de visita.

Um ramal respondia a independência, traduzia reconhecimento profissional, significava uma mesa própria na repartição, com direito a três porta-retratos. Depois de um ramal, eu podia casar e ter filhos. Havia sempre uma telefonista para mediar as urgências e enganar os chatos.

Falava com eco de montanha:

– Quem é? Tudo bem, pode passar para meu ramal!

Sinto que extraviei a vocação de funcionário público. Perdi a paciência de raiz. A serenidade de árvore.

Não suporto olhar para um ponto fixo, que já estou chorando. Não há como sentar mais de 20 minutos, que já estou dormindo.

Tentei empregar o aparelho, realmente me esforcei para gastá-lo. No primeiro contato, animado com as fofocas, saí a passear pela sala. Toda a escrivaninha veio junto. Puxei o fio e arrebentei a tomada, causando um estrago na pintura.

Irrita-me o desperdício dos horários, o alcance limitado da ação. Parece que voltei a jogar caçador na escola, que estou preso num canil. Bem que o veterinário me avisou que vira-lata tem alergia à coleira.

Não sei mais ficar parado. A facilidade de falar estragou a beleza da imobilidade. A imaginação enfraquece o fôlego na quarta frase, e logo se apoia nos olhos.

Na hora de sentar, sobe uma angústia, uma sensação de atraso eterno, uma melancolia de desastres. Preciso controlar e-mails, arrumar o quarto, organizar os papéis, sei lá, aproveitar o tempo enquanto converso.

Minha voz não tem mais endereço. Virei um sem-teto no timbre. O celular me corrompeu.

Publicado no jornal Zero Hora, Edição N° 16363
Editoria Geral, P.2, Porto Alegre (RS), 11/06/2010

22 comentários:

Taís Pereira Lisbôa disse...

AMEI!!!!!!!!!!!

Fernanda Marra disse...

Cara, você é genial mesmo! Como consegue? Não sobra nada, que delícia de crônica!

Marcus Vinicius Batista disse...

Crônica genial. Gostaria de sugerir um blog. Posso? www.conversasedistracoes.blogspot.com Não é tão bom quanto o seu, mas quebra um gaaalho. Abraço!!!

Anônimo disse...

Para recuperar a dignidade telefônica, torne-se um "sem telefone". Tão elegante quanto inútil. Pior: elegantemente inútil! (risos)

Há quem não queira mesmo dignidade. São aqueles, cujo toque do celular é o "créu", o "rebolation" ou qualquer coisa menos digna, se isto for fisicamente possível.

Para compensar indignidades, coma queijo ou batata frita e ouça boa música, sabendo que "boa", no caso, é um adjetivo muito subjetivo.

Gostei muito da postagem!

Abraço

Anônimo disse...

Fala Fabricio, po cara vi sua entrevista uma vez no Progama do Jô, achei muito legal, anotei o endereço do blog e td, mas guardei e não lembrava onde. Só fui achar hoje dentro de um livro meu rs... não lembrava de jeito nenhum o endereço. Muito foda aquela entrevista. To ficando igual a tu, careca kkk.. é a vida, né? Somos feios mas estamos na moda rs... Abs.

Leandro Lima disse...

Vero, Fabro! Estou assim também.

Lia Araújo disse...

Oi Fabricio, de novo... fiquei super feliz nesse momento... olhando aqui o site de noticias local, vi que vc virá ao Acre dia 25 desse mês. Nossa... fiquei super feliz, encontrará uma fã de muito tempo!

Bjão
Até dia 25!

Cristiane disse...

Parabéns pelas belas crônicas e por suas ótimas e geniais entrevistas. Você está sempre superando as expectativas...sempre tem algo instigante para nos fazer pensar! A.D.O.R.O. Carpinejar!!!

Adriana Lima disse...

Tem coisas que não dá pra voltar atrás, adoro ficar livre... resolver muitas coisas ao mesmo tempo. Legal a postagem uma abraço ;)

Dalva M. Ferreira disse...

Muito típico do teu tempo, meu caro. (precisa elogiar? acho que não...)

Anônimo disse...

Você carpinejou* nesta postagem.

*escreveu lindamente bem!

Parabéns

Anônimo disse...

É vero, a crônica "sou adepto à novas teconologias" e a foto futurista conceberam uma bela combinação, Fabrício!

Abraço de uma fã sua de curta data... que, aliás, acompanha sua rotina cultural por intermédio desse blog e da tv. Falando em tv, fiquei "penosa" ao ver a não sensibilidade da Astrid no programinha dela. E percebi o teu desapontamento... Anyway, isso só serviu pra reafirmar a minha opinião acerca dessas apresentadoras moderninhas: só demonstram sensibilidade às futilidades (não param de falar no SPFW). O mais desconfortante é o fato dela (a Astrid) não olhar para os convidados - e sim para as câmeras, enquanto fala com eles. Pero... ela é "consagrada" pela mídia... Enfim, deixemos para lá.

Parabéns... até!

Lara. disse...

Realmente, o telefone fixo virou uma espécie de artigo vintage, um certificado de estabilidade e residência, um aparelho subalterno caso percamos o carregador do celular. Não muito mais que isso. Interessante demais essa tua observação de algo quase que irrelevante. Beijos!

Anônimo disse...

Oi.
Esta eh a terceira vez que tento postar este comentario. Se não conseguir, eh sinal que nao deveria ler. Como nao sei se irá ler caso seja possível minnha tentativa.
Seria piegas te dizer que sou tua fã; como seria mais piegas dizer que sigo teu blog; como seria a cafonice master da pieguice dizer que me inspira. Mas, mesmo assim, lá vai: tu me inspirou a escrever isso: Quando uma coisa incomoda bastante, tipo a música do elefante incomoda muita gente, só temos duas alternativas: matar o elefante ou sair de perto dele. Como não posso matá-lo, reservo-me o direito de não gastar meu tempo ao lado de vocês (há mais de um elefante).
• Sim, eu gosto de fitas no cabelo, e, sinceramente, não vejo nada demais nisso. Gosto especialmente das vermelhas e, sim, vou continuar usando, apesar dos elefantes dizerem que não são “discretas” e rirem cada vez que apareço com uma.
• Não, não vejo nada demais em usar um bolerinho que um dia foi uma camiseta. Se os elefantes não usam, paciência.
• Sim, eu gosto de preto, e ela continuará sendo minha cor favorita.
• Não, não vejo nada tão “estranho” no meu esmalte verde...melhor do que aquele que tem cor de .... “nada”.
• Sim, continuarei usando meus anéis grandes, eles não são delicados mas são lindos.
• Não, eu não considero meus tênis sujos como tênis feios; são apenas sujos.
• Sim, gosto de salto, mas os coloco quando quero.
• Não, não vou tirar minhas mechas loiras do cabelo só porque você não gosta.
• Sim, continuarei te dando bom-dia, apesar de você me olhar como se eu fosse um E.T....só não vá me enchendo muito a paciência não.
• Não, eu não quero aparecer, só quero me vestir do jeito que eu quiser, e, como tenho a felicidade de viver num país livre, acho que tenho esse direito.
• Sim, eu gosto de pérolas, sempre gostei e usei, antes delas virarem “hit”.
• Não, eu não acho bonito, definitivamente, quando riem do que eu visto...os elefantes se vestem pior e nem por isso eu dou risada.
• Sim, respeito é bom e eu gosto.
• Não, eu não vou gastar mais meus dedos nem meu tempo com os elefantes.

Bom. delete, leia, ou esqueça. Mas lembres-se: em algum lugar nesse mundo há alguém que se inspira em você e sonha não ser tão piegas a ponto de ser lida em um comentário.
Dani Saldanha.
www.daniisaldanha.wordpress.com

Anônimo disse...

Texto gostoso de ler. Parabéns.
Já havia lido algumas crônicas na revista Crescer e em outros lugares mas uma amiga me apresentou o blog e desde então passo por aqui para me deliciar nessas palavras ora sinceras, ora irônicas, ora cômicas....Ora, ora ...signos a decifrar, símbolos a compreender, um imenso código que vc escreve e é descrito ao acaso das horas.

Marga Dambrowski disse...

Hum, já pensou num telefone sem fio? :)

Dona ervilha disse...

Vindo de ti, não se orgulhar mais de não ter um ramal só poderia ter virado nisso. :)

Jeane Bordignon disse...

"A facilidade de falar estragou a beleza da imobilidade."
Nossa, que frase... por coisas assim é que te admiro, sou tua fã. Quando crescer quero escrever que nem tu, viu? kkkkkk
Bjs

Maria Valéria disse...

Olá Fabrício,

fui te prestigiar na sessão de autógrafos de Mulher Perdigueira (fiquei na fila, mas não deu para esperar pois ficaria muito tarde) e repetir o que já havia dito em Passo Fundo, no Encontro de Escritores, em 2007: que escreves muito bem, tem frases suas que são de sacudir qualquer um pela profundidade e que tens escrita única/particular.

Daiany Maia disse...

Fabrício,

Se não bastasse o que já foi dito, o telefone fixo passa uma rasteira na gente. É só ele tocar pra que eu atenda com voz de telefonista falando meu nome e dando bom dia, um horror.

Mas gosto de tudo que é antigo: máquina de escrever, telefone e vitrola. Um charme.

=*

Jeferson Cardoso disse...

Meu gosto por velharias é algo que também me ocupa e preocupa. Sonho em reformar uma casa antiga mais do que construir uma nova, sonho em compras aqueles móveis coloniais maciços, tais quais os que existem em algumas casas que frequento durante o meu trabalho, sonho em fazer fotografias iguais as que vejo penduradas nas paredes; aquelas em que o sujeito ostenta um ‘baita bigodão nervoso’. O telefone, particularmente, é algo que já providenciei. Tenho um à manivela. Adaptei um chip, um suporte de alça e rodinhas nele e, o carrego sempre que posso. É meio grande, desajeitado, chama um pouco a atenção, sendo assim, uso apenas aos domingos e feriados.

Abraço Fabrício, e saudações de um Ituveravense impregnado de cultura Ribeirão Pretana!

Anônimo disse...

Postagens sempre geniais.
"Ela é uma senhora elegante de cabelos grisalhos que confia na lista telefônica mais do que no Google."