segunda-feira, 7 de junho de 2010

1, 2, 3 E JÁ!

Arte de Peter Blake


Admiro a espontaneidade dos filhos.

Eles fazem 1 e 2, especialmente o 2, em qualquer lugar: numa loja, no restaurante, no avião, no ônibus. O estômago apontou e não tomam frescura, procuram o banheiro próximo e voltam com rosto alegre e recomposto. Não comentam nada, mas pressinto o despojamento e a vida longe de sacrifícios e renúncias, de medo e boicote. Não castigam o corpo, muito menos maltratam o ciclo por pudor.

Eu não, demorei muito para falar do assunto. Ainda mais para fazer o assunto fora de casa.

Atravessei três décadas evitando cocô em locais públicos. Não ria, por favor, é sério. Temia de vergonha, tremia que alguém visse ou comentasse o fedor, que fosse denunciado numa festa ou que um desconhecido pensasse que estive ali somente para minhas necessidades. Claro que estava no banheiro para necessidades, mas a loucura consistia em acreditar que as pessoas reparavam em mim. Experimentava viagens cansativas e aguentava uma semana de prisão de ventre, até regressar aos azulejos azuis e terapêuticos do meu toalete. Relaxava apenas em meu toalete, a porta chaveada com duas voltas.

Não mudava de opinião, ainda que ameaçado pelo número 3, ainda que atravessando o Oceano Atlântico, suava frio e permanecia com a coerência educada. Na volta, já estava irritado, ilegível para conversa, tamanho o desespero e o bloqueio.

Não era problema de limpeza, da tampa seca, do pavor de micróbios, pois não sou famoso para ser Michael Jackson, celebridade é que coleciona fobias de contaminação e usa máscara e cuecas descartáveis; guardava receio da fofoca.

Há três anos que me libertei do condicionamento e abri exceção para cagar (ai, disse!) em hotéis. Tranquei-me no quarto por cinco horas lendo as revistas de programação de tevê. Quando atingi a grade dos canais abertos, o milagre aconteceu. Passei por fases de transição, óbvio, e consegui me acostumar com a ideia de que inclusive o papa compra e usa papel higiênico. Agora não corro riscos, todo ponto é normal e viável. Nasci para o mundo recentemente.

Mantive a repressão por trauma. Os pais e manos gostavam de debochar do cheiro, existia uma diversão sádica acentuada pela falta de espaço. Sentia-me vigiado na infância, acovardado pelas dores de barriga.

Família grande com um único banheiro rendia disputas e golpes baixos. Nas contas domésticas, masturbar recebia o crédito de pecado, já ir aos pés respondia a um crime. Não havia ética e Piaget que aliviasse a barra. Três irmãos não geram pressão, e sim terrorismo. Começavam com pancadas na porta para que terminasse rápido, logo mexiam o trinco como num filme de terror, em seguida gritavam para quem se encontrava na sala. Suportava o escândalo duas vezes por dia. O relógio biológico não tinha paz, funcionava pela corda da descarga. Apertava várias vezes fingindo o fim para ganhar alguns minutos de prorrogação.

Complicada também a chacota da saída, os comentários maldosos como "está podre", "morreu e não foi enterrado", "é a Borregar" (fábrica de celulose poluente da época), "olha o esgoto", "não dá para receber visitas". Virava um programa de debate esportivo na hora do almoço e da janta.

Eu me constrangia de humanidade, e me tolhia como modo de pedir desculpa.

Nunca brinquei com meus filhos sobre o tema, muito menos cometi alguma piada indiscreta. Sei o quanto custa e o quanto que tira a fome.

Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 199
Junho de 2010

15 comentários:

HUGOSALUM disse...

HAHAHAHAHA...ÓTIMOOOOOOOOO CONCORDO COM TUDO9, MAS AINDA NAO CONSEGUI ME LIBERTAR DESTA NEURA..SE ESTOU FORA SÃO DIAS SEM IR AO WC... E QUANDO NAO TEM COMO ESCAPAR AINDA TENHO A NEURA DE (OLHA O TRUQUE) DE COLOCAR UMAS 3 FOLHAS DE PAPEL NO FUNDO DO VASO PARA QUE QUANDO A "OBRA" CAIA NÃO FAÇA BARULHO...Quanta neura, preciso ser criança e simplesmente CAGAR!!!

Maria Tereza disse...

"Não ria, por favor, é sério." - Como não rir, Fabrício? O assunto em si e o jeito que vc escreve, dá vontade de rir do começo ao fim! Por mais q vc tenha sofrido a vida toda com o assunto. rsrsrs... ÓTIMO TEXTO! E relaxa pq todo mundo faz número 2! =)

Rodrigo Braga disse...

Ótimo!!! Parabéns! Estou conhecendo o blog agora. Parabéns pelo trabalho e pelo livro lindo: meu filho, minha filha.

Ana disse...

Muito bom!! Nao passei por tanto terror mas tem muita coisa que reconheco bem...hehehehe. Ainda bem que meus filhos nao passaram por isso. Blz!!

Cgurgel disse...

admiro mesmo vc. poeta, mirador. um coração que pulsa e encanta.
Cgurgel

Anônimo disse...

Mestre Fabro,

Teu sucesso não é à toa: um dos teus grandes diferenciais reside em conciliar carisma, sensibilidade, autenticidade, espontaneidade, lucidez, humildade, etc., sem falar em inteligência.
Parabéns!

Rubens/POA

Anônimo disse...

O milagre aconteceu quando atingiu a grade de programação da TV aberta - qual será o motivo?

Simples: obra atrai obra, Carpinejar!

Abraço

Vera disse...

Somos todos iguais - nome de novela, da tv tupi... (sou desse tempo)...
eu me lembrei que quando comecei frequentar o apartamento de veraneio dos meus sogros, em Bertioga/SP, todo dia íamos à pé, até o SESC de lá, cerca de 4 km (tudo bem, era pela praia, tinha sol, a paisagem é linda), mas é muito chão pra poder usar um banheiro... mas era assim. Rezávamos pra não chover e todo mundo querer fazer o mesmo passeio diário! estava ouvindo aqui a divisão da culpa... muito bom!

Anônimo disse...

Segurar o número 2 sempre faz mal! Dane-se quem tiver por perto! rssssssss

Parabéns mais uma vez e sempre!

Camila disse...

Olá, Carpinejar!
Os seus textos são carregados de um humor tão bem humorado, por assim dizer, que se torna sutil, embora eu tenha quase certeza que a sutileza não seria um epíteto adequado.
Assisti às suas oficinas no Festival da Mantiqueira e só então passei a conhecer o seu ofício. Venho finalmente parabenizar o blog e todo o conteúdo presente nele.
Abraços

Camila Veilchen Oliveira

alicexavier@bol.com.br disse...

Tudo que sempre tive vontade de dizer e nunca consegui (falta coragem, essa sua espontaneidade sincera e admirável!) Passei por tudo isso e até hoje, se estiver em local público, nunca pergunto "onde é o banheiro?". Eu sempre acho que o outro está pensando no que eu vou fazer, hahahah.
Bjo pra você, muita paz!

Marga Dambrowski disse...

Não acredito! Poeta também faz?

Um beijo e muitas gargalhadas!

Anônimo disse...

Uma coisa que deveria ser normal, afinal todo mundo faz não é? Até um poeta, até a Sandy!
Mas as pessoas comentam sim..Eu também só a pouco tempo consegui fazer o numero 2 em outros locais que não o lar. E olhe que um dia estava eu lá num banheiro, fazendo number 2 e saiu um barulho - normal né?- e uma menina desatou a rir. Em outros tempos ficaria roxa de vergonha, sei lá, nem pensaria em sair do banheiro. Mas consegui, ué, banheiro não é pra isso? Deixer de ligar para o que os outros pensam..Mas que eles pensam, eles pensam....

Samantha F. disse...

Na faculdade ñ teve jeito, passava dias inteiros no campus, aulas de manhã e à noite, morava em outra cidade, tinha q ficar direto... mas mesmo assim, escolhia os banheiros em locais ermos e se fosse "descoberta" (se alguém resolvesse usar o bendito banheiro) eu ficava horas a mais lá dentro para "despistar"... minha família sempre foi terrorista, tive 2 irmãos homens e uma irmã, tenho um milhão de trauminhas desse tipo... hahaha...
Adoro seus textos, obrigada por compartilhar c a gente no blog!
Bjão

Adriane disse...

Ahahaha. Ri demais e adoreeei!
Felizmente eu cago em qualquer lugar, mas sempre (eu disse SEMPRE) levo comigo um caixinha de fósforos. É tiro e queda. Risco um no início e um no final. Saio do banheiro de cara lavada. AHAHAHA

Abraços!