quinta-feira, 29 de abril de 2010

NÃO É PESSOAL


Jovem lamenta o fim de seu relacionamento. Mas é uma despedida carregada de apelo. Não se perdoa por desejar o retorno do namorado, após a traição dele com sua amiga.

"Pensa que a infidelidade é algo contra você. Guarda a convicção de que ele fez de propósito, para humilhá-la."

Consultório Poético discorda do senso comum e esclarece que a infidelidade pode ser o mais impessoal dos erros.

A gritaria é por aqui!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

COZINHA MEDITERRÂNEA

Arte de Tereza Yamashita

Deliramos que a faxineira não tem fome e que deve esperar. É uma bagagem escravagista extraviada em nossa cozinha.

Não valorizamos sua refeição, fingimos que ela não existe. Revela um ranço amoroso, como se a criatura fosse um bicho, uma verdura, um aspirador de pó. Imagino que seja uma maneira velada de reclamar do valor que pagamos e das passagens oferecidas uma vez por semana. A avareza despontará nos itens mais básicos. Coisa de homem que não economiza para comprar um carro último modelo e reclama do preço do papel higiênico.

Concluímos que a faxina já está cara e que ela agora se vire sozinha, só o que faltava se preocupar com seu estômago.

Costumamos pensar que qualquer coisa serve, que ela pode se contentar com a comida requentada de dois dias atrás. Ainda forjamos um falso despojamento, dizendo para apanhar o que quiser da geladeira, mesmo sabendo que está vazia.

O que não pretendemos é nos incomodar com o assunto.

E toda faxineira percebe a exclusão. Come depois, quietinha, escondida, soprando o feijão quente como um anjo nos ouvidos de um suicida.

Desconfio que a indiferença represente um castigo porque ela conheceu nossa sujeira. Uma espécie de raiva involuntária, para logo se livrar do relatório doméstico e do que enxergou dos nossos hábitos. Inventamos uma discriminação muda, que não gera abaixo-assinado, processo e protestos.

O desconforto com as faxineiras aumenta quando me encontro com Paulo Scott, dono de uma maneira peculiar de lidar com a figura. Na realidade, um tratamento insuportável. Quisera ser igual. Cultivo raiva enciumada.

O cabra não está interessado na divisão de classes, nunca leu Marx e Engels para sua horta. Espera ansiosamente quarta-feira, o dia da limpeza, que apenas não é fatídico para ele.

Não foge da vassoura tampouco se irrita com as cadeiras viradas e os tapetes estendidos. Nada atrapalha suas vontades marinhas e disposição de rede. Segue sua rotina, com o ânimo exaltado. Alheio à confusão, prepara tábuas, afia facas, põe o avental e se entrega ao chiado das bocas do fogão, após peregrinar pela feira do peixe de manhã cedo.

Cria um ambiente afrodisíaco, mediterrâneo. Com flores, candelabros e bandejas, arma a volúpia de restaurante na sala de estar — um esforço imaginário parecido com aquele das crianças, que anoitecem o sol ao levantar uma cabana de almofadas e esticar o cobertor entre as mesas.

O romantismo acanalhado e o excessivo preparativo indicam que receberá a namorada, num golpe fatal da sedução. Mas não há namorada. Aquilo tudo é para sua faxineira.

Tudo.

(Antes que conclua bobagem, meu amigo não cursa gastronomia e testa cobaias, sequer odeia a solidão e comer desacompanhado. Muito menos guarda segundas intenções com Nausira, que tem a idade de sua mãe).

Ele grita às 13 horas em ponto:
— Posso servir?

Ela interrompe o serviço, lava as mãos e senta com o guardanapo de pano nos joelhos.

Vem sendo um ano inteiro de pratos especiais: sardinhas assadas à moda portuguesa, preparadas com alho, pimenta e azeite e o indispensável limão espremido, ou risoto de salmão com alcaparras, acompanhada de Salada Caprese e de um vinho branco.

O único pecado é que sobram para Nausira a louça empilhada e a imensa sujeira na pia e no chão. A generosidade sempre tem um pretexto.




Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 26 de abril de 2010

PELO BEM DE SUA MEMÓRIA

Arte de John Piper


Se um familiar ou um amigo morre, não vou elogiá-lo.

Não me peça para fazer discurso ou poema. Não me peça nada. Nem que eu resista e que não sofra. Sou imprevisível. Toda perda é imprevisível, apesar do pessimismo ensaiado. Posso ser forte e insensível, posso ser fraco e derramado. Meu temperamento terá mais a ver com o morto do que comigo. Não irei combinar as meias com os sapatos e não lembrarei a camisa no dia seguinte.

Cansa-me enterros pela encenação. Quem é contido ao pé do túmulo não viveu com o morto. Inventou o morto. A saudade inventa. Cria afinidades e lembranças para ganhar importância de testemunha, para alardear uma cumplicidade única e inseparável.

Já tive amigos que falavam que redescobriram o pai ou a mãe. Mas não se descobre ninguém depois de morto, descobre-se o que não é mais, o que não será. Há gente que nunca vai admitir, mas se tranquiliza com o fim de um parente. Esperava com ardência, torcia, ruminava em segredo.

Na hora da reza, pressente um contentamento. Por detrás dos pêsames e das palavras poucas, corre um alívio. Ao lançar o punhado de terra, percebe que a vida recomeça com a partida do fardo. Festeja por dentro a distância. Agora está leve perante a ausência de futuras explicações. Está alegre e não confessa. Não suportava mais a convivência, porém nunca anunciou o fracasso dos laços.

Seria muito mais honesto se separar em vida do que pela morte, afastar-se do pai ou da mãe enquanto é tempo, por motivos claros e conscientes do que manter o ódio silencioso enferrujando os pregos do caixão. A morte não cura desavenças. A morte salva a aparência de quem fica. Homenageamos o finado para mostrar que somos um bom filho, um bom marido, um bom amigo.

Procuramos a reverência para não ferir nossa imagem. Completamos a maquiagem mortuária com nossas sombras. Preservamos um pudor incompreensível. Somente um serial killer é praguejado, e ainda com educação.

Não se ofende o morto de modo nenhum, nem que tenha nos maltratado até a exaustão. Guardamos um respeito ecumênico, não afirmando aquilo que no fundo pretendíamos: ele não prestava e foi tarde.

Não é por pena, não é por medo de assombração, é por oportunismo. Usamos a morte do outro para nos melhorar. É quase como roubar uma loja aproveitando a depredação.

Verei muita gente chorando no velório porque velório é para chorar. Não significa que sentem muito.

É tão desumano mentir na despedida.

O luto mesmo destrinchará os piores insultos, reclamará pavorosamente das mesquinharias, da ausência de gentileza e de compreensão nos últimos meses.

O abandonado mesmo é capaz de rasgar a camisa do morto, arrancar o sapato, cuspir no rosto, morder as mãos frias para arrancar os anéis e roer as unhas indefesas.

Brigará com toda razão e desrazão. Com palavrões fortes e pichações de banheiro. Andará como uma viatura pedindo passagem, atropelando qualquer um que surgir pela frente.

O amor finito traz o vexame, a confissão intragável; saía de perto.

A indelicadeza é carregada de verdades.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

RIMA LABIAL

Arte de R. B. Kitaj


Quando minha namorada toma iogurte, não aceita que acabou.

Raspa a superfície com a colher, gira pelos contornos, arremata as sobras da tampa. Confesso que me enerva um pouco, como alguém pressionando o botãozinho da caneta sem parar.

Sua investigação não termina com os dedos. Coloca sua pupila no interior da embalagem, tal luneta. Faz um bigode nos cílios. Sua aproximação é extravagante. Já temo que vá diminuir e sumirá de repente pelas bordas.

O caso é que ela não confia na aparência, precisa conferir; olhar por dentro à procura de um fundo falso. Toda manhã é igual. Nem com parede de plástico, se aquieta. Continua fuçando.

O que me põe a concluir que Cínthya é muito diferente de mim. Incrédula. Totalmente cética. Ardo de ansiedade e ela esfria a conversa em desconfiança. Estarei constantemente me antecipando e ela compreenderá a antecipação como cobrança.

Não tem jeito, Cínthya odeia ser pressionada, eu odeio que não me dê resposta na hora. Qualquer ato de delicadeza e entra em pânico, prevendo meu controle da retribuição. Qualquer indelicadeza e entro em pânico, com medo de sua incompreensão.

Mesmo quando reajo impulsivo, articula uma lógica maldosa por detrás da atitude. Ela me considera tão maquiavélico que me sinto ingênuo.

Não se entregam fácil essas mulheres de Constantina. Ela não deseja nem ficar muito junto para não sofrer. Supõe que será enganada. Seu modo de se defender é me espantar. Às vezes consegue.

Diz que não sou o centro do seu mundo; pois não entende que não quero ser o centro do seu mundo, e sim seu bairro mais populoso.

Chega a afirmar que tento dominá-la, imagina?

Pior que é verdade, tento dominá-la, mas com toda elegância.

Sabe o que me irrita sinceramente no iogurte? Dificilmente ela concorda comigo, obcecada em preservar sua independência. Existem momentos que nem eu concordo, sem problema. Mas sempre? É demais, não consigo respirar, volta minha asma. Vejo que estou puxando a coberta para o meu lado, a cena pode significar o contrário.

Talvez raspe a tampa e analise o interior por excesso de esperança. É como se me admirasse do outro lado reparando em sua rima labial.

Vem a sensação de que ela seria a minha letra caso escrevesse com a mão esquerda. Não se contenta com o que é permitido, intensifica o barulho da colher como uma extensão dos dentes, disposta a desafiar os limites e provar que os contrários se completam.

Será?

Ao pegar a embalagem e botar no lixo, acho que não é nada disso, viajei novamente.

Encontro chateação onde aparece somente fome. E o que ela gostaria era de repetir o pote, sem nenhuma filosofia.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

NO MEIO DE TUDO

Arte de Tereza Yamashita

No guichê da companhia aérea, sempre avanço sobre o computador do atendente, espichando o queixo e exigindo:

— Corredor ou janela, não me deixe no meio, não quero o meio, abomino o meio.

O funcionário explicou que reservaria o lugar desejado, sem problema, que me acalmasse. Com a emissão do bilhete, terminou minha principal ansiedade, o corpo já deslizava com rodinhas para a sala de embarque.

Demonstro preconceito mesmo com a localização, uma exigência pessoal em cada partida, tão importante quanto lembrar em acumular as milhagens no cartão.

O meio é o inferno do céu. Para quem viaja excessivamente como eu, é humilhante ficar prensado entre um que dorme e o outro que também dorme, desconhecidos prestes a desabar em meus ombros e fazer gargarejo do ar refrigerado. Comprovado cientificamente que o passageiro encurralado entre as pontas é incapaz de cochilar. Atordoado como uma babá em seu primeiro dia de trabalho. Sofre de hipertensão arterial, encolhido, cacto na chuva, pronto a se defender dos lapsos dos seus vizinhos. Não poderá se mexer durante as longas horas do trajeto, muito menos trocar de livro e buscar seu laptop. Ou ele pega tudo o que necessita no momento em que entra ou esquece, inútil mudar de ideia. Até para mijar, pensará como acordar seus obstáculos. A voz do comandante é a única abertura com o andamento da viagem.

No voo, descubro que fui enganado. Não havia meio, mas duas poltronas. Eu me vi lesado. Sem alguém pior do que eu, não estou melhor. A janela ou o corredor perdem importância. Precisava zombar de quem não conseguiria colocar o braço nos apoios, de quem sofreria a sensação interminável de sequestro, esmagado como um guarda-sol na garagem.

Aquela empresa estragou o luxo da comparação, arruinou minha brincadeira sádica, pôs abaixo a subdivisão de classe que existe na ala econômica. O meio era a chance de tirar leve vantagem na pobreza.

No corredor sem meio, estava duas vezes no meio. Representava ainda a metade que faltava.

Se estivesse acompanhado da namorada, festejaria o formato: extremamente adequado, romântico, propício para preparar cabana e puxar o edredon. Sozinho, impossível gostar. Parecia que formava um casal com um barbudo anônimo, de óculos e franjas retrô. Parecia amizade forçada por professora. Parecia um encontro arranjado por agência. Parecia um casamento por dote.

Eu e ele formando uma fileira inteira, independente, um encontro às escuras. Uma improvável mesa para dois no bandejão universitário. É muita intimidade para se dedicar a um lado só. Com três passageiros em bloco, é trabalho em grupo, a privacidade sobrevive. Dá para variar o pescoço. Com dois, é torcicolo, tarefa em dupla, chega a ser desconfortável não puxar conversa e não segurar o refrigerante para o repentino colega.

Tomo algumas precauções. Sob nenhuma hipótese aceitarei amendoim. Não posso facilitar.





Crônica publicada no site Vida Breve

EFEITO NEYMAR



A nova teoria do Rolo Compressor é que a genialidade somente surge da boa vizinhança.

"Boa vizinhança, digo e repito. A fama do bairro depende de seus vizinhos. Nossa ânsia por um salvador nos estraga. Nossa fome personalista subestima a importância do partido. Pensamos na realeza e esquecemos a corte. Procuramos um Messias e desprezamos a religião.

Portanto, o craque não surge sem time. É o time que faz o craque."


Leia mais.

terça-feira, 20 de abril de 2010

POÇOS DE CALDAS


Sou convidado da V Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas (MG). Faço palestra no domingo (25/4), às 17h30, no Teatro Espaço Recreativa. O tema é "Canalha, Órfão e Viúvo - os tipos mais perigosos da sedução". Informações na página do evento.

domingo, 18 de abril de 2010

UM PIRADO, POR FAVOR!



Rolo Compressor pede um pouco de loucura na seleção brasileira, suspender a normalidade previsível da convocação e do esquema tático.

"O louco é a carta essencial do Tarô para o time brilhar. Não é um jogador comum, mas o imprevisível, que pode sair driblando cinco e fintar uma muralha com cisco de calcanhar.

Um grande time é aquele que tem um louco, os times inesquecíveis são os que tiveram a sorte de contar com dois. Time com três não dá certo, é manicômio, os loucos passam a disputar excentricidades e se anulam."


Confira nossa tese terapêutica.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

FARDO DOS DENTES

Arte de Paul Klee

Namoro mesmo começa quando mostramos os álbuns de fotografia da família. Antes disso é flerte ou amasso.

Experimenta-se uma operação frágil e delicada, desde retirar o pó das caixas até virar as folhas plastificadas com capricho de colecionador. Nosso passado é sempre um livro raro, requer uma longa pausa dos dedos.

Reprisei as cenas de menino e não encontrei nenhuma foto rindo dos seis aos nove anos. Meu rosto estava sério, compenetrado, quase ameaçando a câmera. Não olhava passarinho, muito menos fazia xis. Ué, que estranho, eu me tinha por uma criança alegre, caseira, alucinada por colo nas poses. Os ombros da mãe correspondiam às minhas pernas-de-pau. Seu vestido, uma lona colorida de circo.

- Nossa, como você era mal-humorado?, comentou a namorada.
- Eu?

Inspirava realmente ares sombrios, de um guri problemático, com ternura violenta, represada. Poderia constar naqueles fascículos escolares como um futuro psicopata.

Fiquei intrigado durante semanas, assobiando a dúvida entre as tarefas do trabalho. Assobiar é minha hipnose regressiva. Com a cauda melódica de uma canção, sou capaz de passar o meu nascimento e pousar no piano de Beethoven.

Não compreendia a extravagância entre o que me lembrava e aquelas imagens. Pasmo com o tanto que me iludi.

Ao levar o Vicente para escola, caíram finalmente seus dois últimos dentes de leite da frente. Ele estava agora banguela, com uma inocência comovente. Festejei:

- Que lindo, como é mimoso!

Ele fechou o rosto e pisou num silêncio adulto e fúnebre, sequer me encarou. E lembrei, lembrei que eu não ria nas fotografias pelas lacunas da dentição. Emudeci os lábios, selei como envelope secreto. Eu me achava desengonçado, patético.

Reconheci como é terrível para o filho ganhar elogio na queda dos dentes. Os pais pulando em torno, pedindo para que ele mostre, fofocando aos amigos, orgulhando-se da transformação, oferecendo as pedras brancas às formigas em troca de dinheiro.

É impossível quitar essa dívida. Ele não está se sentindo bonito, terá que enfrentar a escola, abrir a fome na merenda, suportar mais duas séries até que os permanentes ocupem seus espaços, disfarçar o desfalque nos flashs dos torneios da escola. Tempo de apreensão, de passar toda hora a língua na gengiva. Período confuso, em que reconhecemos uma ausência e velamos o fim iminente da infância.

Para ele, não era engraçado, mas dolorido.

Vou respeitá-lo. Darei uma gaita para que complete – por enquanto - sua boca com música.

Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 119, Número 197
Abril de 2010

quarta-feira, 14 de abril de 2010

APELO SEXUAL

Arte de Tereza Yamashita


Toda mulher cria seu fetiche: um detalhe pessoal e intransferível que ela adora num homem. Uma atitude que vai diferenciá-la de qualquer estratégia varejista.

Talvez você, macho leitor, só desvendará o segredo pela convivência, e olhe lá, talvez nunca descubra. É um trejeito que executa de modo inocente e que perturba violentamente sua cara-metade, realmente a excita mais do que um beijo e um abraço. Aquilo que é imperdoável para a ex será visto como estimulante para a nova companhia. Não há como repetir ou patentear. Pode ser um tique nervoso, uma manha, uma feição contrariada ao longo do aceno. Ou algo que nem gosta e procura esconder.

Não é uma piscadela ou um beiço consciente, elimine o repertório básico de sedução, diz respeito a uma postura ou um gosto discreto, vadio, que não nasceu para pose.

Juro que não tenho como ajudar, não existe padrão. Muda conforme o histórico escolar da moça.

De repente, é um acessório de sua aparência, não duvido que seja o modo como deixa a camiseta para fora da casa ou sua inclinação à porta no instante de suportar um atraso. O complicado é detectar o atrativo durante o relacionamento. Caso localize, gozará de um poder especial de tirá-la do sério quando quiser e de escapar ileso de uma briga.

Enquanto procura, é uma bomba-relógio instalada em seu corpo. Já foi acionada a contagem regressiva. Trate de iniciar a investigação. Onde está seu apelo sexual? Onde?

Convivi com uma colega que se emociona com cadarço desamarrado e longo. Bem longo. Alucinada pelo tipo que não amarra e pula corda com seus próprios calçados. Arrepia-se diante do fio arrastado; as serpentes no chão; a língua bifurcada antecipando o bico. Não procure compreender, fantasia não se explica, cresce no mistério. Quem usa velcro está imediatamente descartado. Ela escolhe seus parceiros pelos pés. Lamento que perdeu a época do kichute, organizaria um leilão de pretendentes.

Outra amiga baba por motorista que emprega uma única mão para estacionar de ré, girando os dedos como uma enceradeira. Sem direção hidráulica, então, o cara ganha amor eterno. Ela se enxerga dominada pelo movimento. Arrebatada. Confessa que suas pernas tremem, os cabelos deslizam para os seios. Mas não dá mole, entabula regras rígidas de autoescola, cobra baliza no primeiro encontro: não admite que empregue a mão esquerda como apoio. Uma mão! Sonha com o que ele será capaz de aprontar apenas com uma mão.

Uma terceira repara no pulso. Homem graúdo, legítimo, tem que ostentar relógio grande, o pré-histórico cebolão. Considera grave afronta a variação digital, destinada aos analfabetos amorosos. Desdenha também das pulseiras de plástico, endereçadas para as barbies. Caça o ponteiro muito mais do que uma aliança. O relógio é a cabeceira frondosa da cama. Em sua fantasia pontual, o pertence de ferro sugere superdotados incansáveis que perderiam a hora.

Já a minha namorada nutre uma paixão pelos meus ombros. Acho que careceu de exigência ou foi mesmo falta de opção. Eu me envergonho deles, pelos ossos saltados. Não exibo forma de escravo romano, não curto musculação, sou magro, quase um cavalete de quadro. Mas Cínthya passa os dedos com volúpia na pia batismal do pescoço, muda a respiração, engole o sopro de volta num suspiro invertido.

Sua admiração produziu até neologismo. Inventou de chamar meus ombros de pollockianos, uma homenagem a arte de Jackson Pollock.

O que me intriga é que o americano somente fez pintura abstrata.




Crônica publicada no site Vida Breve

sexta-feira, 9 de abril de 2010

DESPRETENSIOSA BLUSA AZUL

Arte de Degas

A mulher não decide tudo de uma vez, mas nunca deixa de decidir.

Segue a vida por capítulos. Acompanhar seu raciocínio é entender que o dia de hoje será completado amanhã. Atende outro calendário, talvez o dos maias ou dos incas. Não arrisque bebê-la de um gole. Muito menos lento demais.

Não é como o homem que toma atitudes definitivas a cada manhã para sofrer em seguida e remoer o orgulho em silêncio. Ele não pretende justificar suas escolhas. A mulher não cansa de explicar para desvendar novos motivos.

Eu sei como minha namorada funciona. Uma simples compra de uma blusa azul não é simples. Não comprou porque desejava, e sim porque estava nervosa, ansiosa, excitada com o excesso de trabalho. É, da alma feminina, encontrar um pretexto para a compra. Ainda não escutei de nenhuma amiga que levou por levar.

Além das sacolas, carrega a culpa de sua beleza. Precisa revestir o ato de uma nobreza maior, orná-los de um sentido existencial e messiânico. Declara-se vítima duma vontade indomável, dum contexto irreversível. Será uma reunião importante, uma apresentação difícil ou até uma dívida. Compreenda, a mulher é a única que se cura das dívidas gerando mais dívidas.

O consumismo não é objetivo como na visão viril, é terapêutico pelas gentilezas envolvidas, haverá uma atendente passando a roupa por cima do provador e elogiando suas medidas.

Toda mulher bem que tentará achar algo que demore muito para estragar. Como se a duração compensasse o investimento. Cobiça uma roupa que possa usar inúmeras estações. Mas é apenas uma justificativa para seguir com a compra, pois ela irá adquirir do mesmo jeito, sendo uma extravagância ou uma urgência básica. Herdou da mãe a fascinação pelos artigos duráveis e sofisticou o raciocínio a seu favor. Entra na história a questão da marca. Optará por um produto mais caro, com a alegação de que não envelhece. Sua teoria desembocará, em alguma hora, na relação custo-benefício, acrescida de evocação pessoal.

- Lembra daquela minha calça preta, que levanta a bunda e você adora?

Não adianta inovar. É só uma resposta para permanecer junto.
- Sim, eu lembro.

Ela se enche de autoridade:
- É dessa grife, tenho há cinco anos, dura até hoje.

Refere-se a um argumento implacável. A malandragem é empregar uma preocupação antiga e tradicional, uma missão familiar de economia repassada de geração a geração, para acessórios dispensáveis. Complicado definir o que é essencial, é do feitio da mulher julgar nada dispensável, por isso o homem ainda permanece vivo.

Eu falei que sei como Cínthya funciona. Ela, portanto, comprou uma belíssima blusa azul. Não pegou para completar um conjunto em casa. Bendita ilusão. Foi o primeiro degrau de várias escadas rolantes.

Amornou o assunto por uma semana quando acordou de repente afirmando que não existia modo de vesti-la sem um scarpin da mesma cor. Lamentava o desperdício, o tecido parado no armário. Antes ela julgava uma loucura comprar uma blusa azul, agora loucura era não comprar seu complemento. Da falta de necessidade, criava necessidades. Bingo, é o maior golpe de estado armado para cima de mim.

Eu absolutamente não sei como minha namorada desliga. Nem faço questão.

Publicado na revista Shopping Life
Porto Alegre (RS), abril 2010

quarta-feira, 7 de abril de 2010

PROPAGANDA DO AMOR OU AMOR DE PROPAGANDA

Arte de Tereza Yamashita


Há casais contra qualquer ostentação. Não realizam propaganda do seu amor. Não narram vantagens, não se elogiam em público, não descrevem o que ele ou ela preparou de especial na noite anterior, não geram ciúme, muito menos inveja entre os amigos. Não se derramam em abraços de aeroporto em cada esquina.

São os casais ideais, certo? Talvez durem para sempre, o que não traduz perfeição.

Não há como ser feliz sem merchandising do que se está vivendo. Sem morder a língua. Sem fofoca. Sem contar um pouco mais. É pensar e divulgar.

O amor é público, desde quando se estendeu a mão pela primeira vez com muito nervosismo para andar na rua com ela.

Não existe como disfarçar. Sensibilidade controlada é indiferença.

Um dos graves traumas afetivos é a falta de amor pelo amor.

Os pares se amam, mas estão descontentes por amar. Não desejavam estar amando. É um amor contrariado, um amor dissidente. Como uma maldição: Por que foi acontecer comigo logo agora?

É como se a companhia não fosse apropriada. Ou que não devia ter surgido naquele momento, é bem capaz de atrapalhar os negócios ou a vontade de viajar e de ser livre. Ou porque é diferente e não responde automaticamente. Perderemos tempo, perderemos a agilidade que tanto nos caracterizava.

Não se enxergam abençoados, e sim traídos pelo destino. Não tratam de alardear seu relacionamento como um feriado de sol. Por receio ou insegurança, não se orgulham da companhia. Nunca falarão: estou com quem sonhei, é perfeito para mim.

Não identificam que já têm o mais complicado, que o restante é simples: um cartão, um torpedo, uma cartinha, uma lembrança, um prato predileto, um capricho, um colo.

Amam ao mesmo tempo em que odeiam. Amam ser, odeiam estar. Por aquilo que a convivência exige, pelo mal-estar de uma conversa truncada, pelo ciúme passivo e sempre existente, pela necessidade de telefonar e de se apaziguar, pela dependência ruidosa e ávida.

Quem ama alguém, mas odeia o amor não terá paciência. Entrará num clima de cobrança permanente, de suspeita irremediável. Conhece como o par fica irritado e trata de testar os limites. Não agrada para criar contrariedade e arrecadar sinais do fim. Quer se livrar do amor, não do outro, mas o amor está no outro que acaba pagando a conta.

Não consegue se separar, tampouco se entrega verdadeiramente.

Quando está em paz, enlouquece. Quando está estressado, age com distração e depois reclama da cobrança. Ou cobra a cobrança. Ou antecipa a cobrança que não viria. A briga está condicionada a uma postura catastrófica. Mobilizado a provar que não tem mais jeito. Em vez de elogiar, reclama. Em vez de se declarar, ironiza. Em vez de confiar, pragueja.

A mulher pode amá-lo, o homem pode amá-la, só que ambos não amam o próprio sentimento. Cada um não se ama por amar. Não basta amá-la, tem que se amar por amá-la. Não basta amá-lo, tem que se amar por amá-lo.

Mas a reflexão não termina por aqui. Caso contraiu piedade do que não ama o amor, há ainda um tipo mais terrível: aquele que ama o amor, mas não ama seu parceiro. Ama seu modo de amar e não aceita mais nada. Faz o amor de propaganda, que é o contrário de fazer propaganda do amor. Experimenta um delírio romântico. Tudo o que o outro oferece não é do jeito conhecido, portanto não serve. Alimenta uma insatisfação constante, autoritária, como um diretor que recusa o improviso de seus atores e manda repetir a cena. Não reconhece os gestos mais naturais e singelos. Sufoca o que vive de fato pela pressa de um cartão-postal. Funciona na base do escândalo: da serenata na janela, da Kombi do aniversário, dos presentes imensos e das provas vistosas. Será insaciável, pressionando para receber o que somente ele imaginou (e nunca confessou).

É um desalmado da privacidade, um amante genérico, porque ama demais a si para amar quem quer que seja.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 6 de abril de 2010

EM BELO HORIZONTE



Projeto Terças Poéticas
- Fabrício Carpinejar homenageia Carlos Drummond de Andrade -

Leitura de poemas e crônicas
e sessão de autógrafos do livro "www.twitter.com/carpinejar" (Bertrand Brasil)

Data: 13 de abril
Horário: 18h30
Local: Jardins Internos Palácio das Artes
(Avenida Afonso Pena, 1537, Belo Horizonte, Minas Gerais)
Entrada franca
Informações: (31) 3236-7400

segunda-feira, 5 de abril de 2010

DILEMAS DA VIDA A TRÊS

Arte de Patrick Heron

Depois de atração por colega de trabalho, mulher entra em crise no casamento. A birra intelectual com seu marido talvez seja mais do que concorrência.

Entre no Consultório Poético, mas não feche a porta.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

LUXURIOSO

Arte de Peter Blake


Minha mãe assistia novelas, eu assistia propagandas. Acreditava que as propagandas eram novelas para crianças. Curtas, rápidas.

Andava como cego, raspando as mãos nas paredes. Minhas mãos ficavam vermelhas de tanto caminhar.

Achava que uma propaganda completava a outra. E a novela era a propaganda da propaganda. Ninguém nunca me provou o contrário, até porque nunca falei isso. O segredo é uma forma de manter a opinião.

Eu completava o enredo: juntava carros com máquina de lavar com gel para cabelos. A cada dez minutos, um novo capítulo. A infância mistura mais os olhos do que a comida.

Suspirava quando apareciam as caixas de sabonete de Madeiras do Oriente, fascinado por uma expressão que uma loira dizia: espuma luxuriante. Aquilo me excitava, mesmo não entendendo o significado. A excitação aumenta com a incompreensão. Batia uma vontade de raspar as pernas nos muros. As pernas ficaram vermelhas de tanto andar parado.

Eu queria ser invisível. Havia uma mulher invisível na televisão. Creio que ela usava uma poção ou talvez as caixas de sabonete de madeiras do Oriente. Espumava e desaparecia. Luxuriante.

Na primeira tentativa de sumir, empreguei camadas de Minancora por todo o corpo. Aumentei a visibilidade. Rendeu efeito oposto, mas senti que estava no caminho correto. O contrário é o vizinho do acerto. Um inimigo ama com o ódio. Eu não tinha inimigos. Criava superstições para evitar danos e doenças. Meu medo não dormia. Olhava as fotos da família para definir qual era a foto de morto de cada um de meus parentes. Existe uma foto de morto quando a pessoa ainda estava viva. É a foto que sairá no jornal ou no anúncio fúnebre ou na lápide. No instante em que ela é tirada, a morte surge. Já posso ter minha foto de morto, cabe analisar com cuidado os álbuns de família.

Quem mais chegou perto da extinção foi o tio Luis, que entrou em coma por dois dias. Coma é um comercial da morte.

Não desejava morrer, mas desaparecer para voltar. A morte é uma desaparição perfeita. Eu me acalmava com os ruídos.

Pensava e respirava em separado. A asma complicava meu raciocínio. Um gato chiava dentro de mim – não o enxergava por mais que cavasse com a boca.

Alentava hipóteses malucas para apagar a carne por instantes. O talco que gerava a falta de ar deveria ser o responsável pela minha salvação. Uma nuvem atravessa aviões. A nuvem é transparente. O que faz mal pode curar. Como o antídoto retirado do próprio veneno de cobra.

Abandonei as roupas, respirei fundo e borrifei o pó inteiro numa só cremação. Meu pai recebia escritores, entre eles o Mario Quintana. Conversavam animados na sala, tomando cafezinho e criticando qualquer um que ousasse escrever poesia.

Atravessei pelado o longo corredor e passei pela sala cheia de visitas. Girei o corpo, ginguei a cintura, arrisquei polichinelo e nenhuma reação, susto, torcicolo. Não fui visto, consegui. Consegui! Voltei ao quarto e beijei o milagroso Johnson. Chato é que veio uma cisma, recomendando confirmar o experimento. Acabei seduzido pelo poder da repetição. A repetição é domínio.

Retornei ao pulmão da residência. O silêncio depois do grito é escandaloso. O pai me puxou pelos cabelos, espalhou poeira pelos tapetes, e me botou de castigo. Restei no quarto. Sem sinal.

Entendi que não é possível ser invisível duas vezes seguidas. Eu me excedi.


Crônica publicada
no livro "Os Televisionários"
(ARdoTEmpo, 400 ps),
de Walmor Bergesch

quinta-feira, 1 de abril de 2010

OFICINA DE CRÔNICA EM SAMPA



TANTA TERNURA
(Oficina de crônicas)

Fabricio Carpinejar

de 10 a 14 de maio
de segunda a sexta
das 19h30 às 22h30

b_arco
RUA DR. VIRGÍLIO DE CARVALHO PINTO, 426
SÃO PAULO - SP - (11) 3081-6986
E-mail: contato@obarco.com.br


A literatura dá tempo para que cada um se descubra. Dá ritmo para que cada um encontre sua voz dentro da letra. Dá força de vontade para que cada um siga a própria vocação.

O premiado autor apresenta suas teorias sobre o fazer literário, como o termo conficções (confissões inventadas), e estabelece uma possibilidade de acentuar a beleza da banalidade, musicar a conversa e pensar com ternura todo detalhe do cotidiano.

Se somos feitos de palavras, quais as palavras que escolhemos ser?


COMPETÊNCIAS
Capacidade para compreender, avaliar e produzir criticamente a natureza da crônica

CONHECIMENTOS
História comentada da crônica: diferenças entre crônica, artigo e conto. A despretensão e a espontaneidade. Simplicidade e surpresa. A leveza não é superficial. Manter o foco. A cozinha do trivial: o assunto é o estilo. Os três E da crônica: Estranheza, Exemplo, Emoção. O detalhe é Deus. Hesitações de uma conversa: a proximidade com o leitor. O ponto de vista minoritário. A importância da poesia na elaboração da atmosfera. O humor no gênero brasileiro: de Sérgio Porto a Luis Fernando Verissimo.

METODOLOGIAS
Exercícios criativos
Debate
Jogos de interação
Produção textual

Para todos os interessados.
Dias 10/5, 11/05, 12/05, 13/5 e 14/05
Carga horária: 12 horas


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