sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

SEPARAÇÃO CRIATIVA

“Relacionar-se é vocação, difícil e rara. A concentração é contínua, o trabalho é de artesão. Um desafio delicioso”
Cinthya Verri


Arte de Sir Sidney Nolan



Eu adoro a palavra. Sou fascinado pela palavra, não é nenhuma novidade isso.

Mas não coloco mais a palavra em primeiro lugar. Não sou mais coletor de ofensas.

Se meu filho explode e avisa que não me ama não irei castigá-lo ou obrigarei que ele desminta em minha frente. Não o puxarei pelos braços, não responderei para procurar um pai diferente, não subirei no púlpito e ordenarei maldições. Tem a liberdade para me odiar. Eu sei que ele me ama. Eu sei que ele me quer.

A sabedoria não está em evitar o sofrimento, e sim ao não fugir dele

Já observei casamentos desfeitos porque um falou para outro que acabou e não voltava mais. E nenhum dos dois cedeu e insistiu e perguntou de novo. Passaram a história inteira para provar o que ele ou ela desperdiçou e o dano irreparável de suas frases.

Enterremos logo nossas maldades para velar as injúrias. É só oferecer ao nosso par a mesma capacidade que temos de nos perdoar. Desapareceria metade dos problemas. Os inimigos são netos de nossas teimosias.

Castigamos com silêncio quem temos certeza que nos ama, torturamos com silêncio quem temos certeza que nos ama, somos indiferentes a quem temos certeza que nos ama. Por uma palavra dita na dificuldade absoluta de comunicação. Não vale o que foi vivido antes, será enviado um boleto bancário de um grito, de um palavrão, de uma observação injusta. A cobrança será eterna quando seu significado era provisório, próprio do desabafo, de um momento infeliz.

Não conheço dor que não seja desajeitada, ela vai declarar do jeito errado e do modo errado. Por que não desculpar?

Terapeutas conhecem o assunto a fundo. Toda discussão é um desespero e não pode sair agrados e elogios. Mesmo assim, fazemos de conta que é difamação e desrespeito. Mais fácil odiar do que continuar trabalhando as próprias limitações.

O boicote é uma forma de educar pelo sacrifício. A pior forma. É ficar preocupado em honrar o castigo. É preparar uma vingança ao invés de se distanciar um pouco para entender o que gerou a discórdia.

Trata-se ainda de um sacrifício mútuo, os dois vão perder a possibilidade de criar uma intimidade maior e mais generosa.

Aquele que atacou pedia ajuda. E atacou pois não sabia justamente pedir ajuda. Preocupados em nos defender, não alcançamos o apelo e retribuímos o inferno.

A palavra engana. A palavra manda embora e o corpo pede um abraço. Há de se procurar o gesto. O que me interessa é o gesto, o resto da palavra. A origem. Se aquilo foi feito para permanecer mais perto.

Quando viajo para serra gaúcha, as estradas me ensinam a importância do que é torto. Elas seguem a natureza ardilosa dos morros, assustam com suas curvas, mas sempre me deixam na cidade em que nasci.

É na briga que mostraremos nossa criatividade. Poderemos repetir os clichês: desaparecer para impor uma lição ou aparecer com namorado/namorada para humilhar ou fingir que nada sente. Poderemos repetir as convenções, defender o orgulho acima de tudo, nos preocupar com a honra mais do que com a relação, chamar de preguiça a falta de cuidado com o que foi dito, reclamar responsabilidade, impor ao outro a severidade de nossos princípios para mostrar o quanto somos nobres, coerentes e firmes.

Ou poderemos contrariar as expectativas com um talento incomum ao humor e ao entendimento.Só um debate tem tréplica. O diálogo não conta o tempo nem limita o direito de falar.

Se a separação depende de motivos, a reconciliação é muito melhor, não precisa deles.

Amor não dá a última chance, dá chance sempre. O capricho é cuidar do erro. Não há capricho sem usar a borracha e reescrever de novo.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

EXCESSO DE DOM

“Você diz não saber o que houve de errado e meu erro foi crer/ que estar ao seu lado, bastaria/ Ah meu Deus, era tudo que eu queria/eu dizia seu nome, não me abandone jamais”
Os Paralamas do Sucesso


Arte de Tim Burton, o preferido dela.



Meu apelido de pequeno era patinho feio. Estudei numa escolinha com esse nome, chorei quando minha mãe me leu o livro, considerava uma tragédia o animal se transformar em cisne – era perder sua essência.

Desde aquela noite, não confio no final feliz da história de amor. A maioria não tem nem final.

Até porque ninguém acredita que terminou. Continua a se viver ou por um milagre, na expectativa que um dos dois quebre o pacto educado do silêncio, ou por hábito, o que nos empurra para frente são o trabalho, as necessidades dos filhos, o amparo curativo dos amigos.

Meu romance com Cínthya foi terrivelmente bonito. Tão bonito que não existe rascunho.

Eu e ela tentaremos narrar, surgirão fragmentos desconexos, vamos nos emocionar e lembraremos agora da raiva. A raiva de não estarmos mais juntos. Uma raiva sem culpados, mas com dois mortos.

E um morto não pode enterrar o outro. Não sei quanto tempo ficaremos ao relento. O mar talvez nos puxe por compaixão.


Por favor, não me pergunte nada dela hoje. Não pergunte nada de mim para ela hoje. Reinará o ódio. Por trás dele, de todas as brigas e rumores, dos temperamentos incompatíveis, sobrevive uma ternura incontrolável, um amor genuíno e violento.

Eu direi absurdos de seu comportamento, para aceitar que tomei a atitude adequada. Ela repetirá crueldades do meu posicionamento para se tranqüilizar. Terei meus motivos e ela, seus motivos, e nunca aceitaremos que as explicações não dão conta do mistério. Somos muito menores do que aquilo que vivemos juntos.

A incompreensão será o nosso complexo de inferioridade.

Formamos um enigma. Não é possível fazer resumo de impressões, o raciocínio se esvai nas primeiras estocadas: por que nos encontramos? Por que tentamos nos entender? Por que trocamos sacolas de pertences na despedida se não nos pertencemos mais?

O pé de pato é o sapato de Cinderela. Que engraçado lembrar só de contos de fadas.

Ela surfava com um par todo colorido, vermelho e amarelo, mas perdeu o pé esquerdo em Tramandaí (RS). Três anos depois, ainda um completo desconhecido dela, eu achei a peça extraviada em Imbé, na praia vizinha.

Guardei o objeto por teimosia, assaltado pelo vexame da concha sobrenatural e inútil. Qualquer um largaria na margem para que seu dono o localizasse. Carreguei para a casa, envolvido na completa dificuldade de me livrar do que é sozinho.

Quando a conheci e visitei seu apartamento, observei na varanda o pedal de peixe parado, ilhado, solteiro, duvidei que pudesse ser verdade, que fosse possível. Aleguei coincidência, gozação, até que o número 38 me convenceu a desistir de perguntar.

Eufóricos, arriscamos andar com pés de pato pela areia, pelo gramado, pelas ruas. Não nos acalmava a informação de que eles funcionavam apenas na água. Considerávamos um desperdício diante da grandeza da predestinação. Para nós, não havia diferença entre o raso e o profundo, tudo era mergulho. Tudo sempre foi mergulho. Um excesso de dom.

Não confio em final, mas não contesto o começo. Sou realmente seu par, que não virou cisne.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

BEIJO MULTIMÍDIA

Arte de Tereza Yamashita

Amor ensina o óbvio. É o que eu mais gosto de aprender.

Nem sempre mereço atenção. As crianças têm o direito de serem tolas, por isso são mais sábias.

Minha namorada narrava as diferenças entre o Playstation e o Nintendo Wii e mencionou a expressão device. Eu nunca descobri o significado. No passado, utilizei o termo pela intuição, coitado de quem me ouviu.

— O que é?
— Está brincando?
— Não sei, o que é?
— Para de gozação!

Admiti que conhecia, pois estava ficando chato. Já me sentia um ignorante. Como desconheço device aos 37 anos? Como?

Ela anteviu que tirava sarro dela, que me fingia de burro para que explicasse à toa. Como ninguém quer ser idiota, fica complicado salvar a idiotice alheia.

Eu era burro mesmo. Tentei resolver essa lacuna e abrir espaço para outras ignorâncias. Confesso que careci de coragem para teimar e imprimi uma risada apaziguadora. Soou como brincadeira.

O que me arrebata é a chance de ser puro. Como muitos juram que sou malandro e maquiavélico, arriado e abusado, dificilmente alguém confia na minha limitação. A curiosidade sofre os efeitos colaterais da reputação e não recebe reforço.

De vez em quando, Cínthya esquece quem eu sou para me amar mais. E é minha melhor professora.

Teimei em entrar com uma ameixa em seu carro. Vermelha, lustrosa, com todo o verão dentro. Estávamos atrasados. Costumo comê-la com o rosto inclinado ao chão para derramar o prejuízo no tapete dos pés. Não estudei como destroçaria a fruta em seu carro. Sentei no impulso, traindo minha atitude selvagem e desprezando o encolhimento do espaço.

Dei uma mordida e o sumo escorreu para a calça; ela olhando, limpei. Na segunda investida, já de pernas abertas, o líquido infestou o banco; ela olhando, disfarcei. Quando consegui espirrar no vidro, ela interferiu na operação, não havia como se manter distante. Ou falava ou seu twingo se transformava num liquidificador:

— Vem cá, por que não chupa ao morder?
— Chupar ao morder? Posso?
— Claro, depois que larga os dentes, chupa.

Ela aceitou meu despreparo e contornou o caroço e mordeu e chupou perfeitamente. Engoliu a lasca e o suco. Vi que podia. Pena que não tinha mais ameixas para exercitar.

— Onde aprendeu?
— Em Constantina, sou campeã para não me sujar.

Ainda não perguntei sobre os efeitos colaterais dessa aula. Mas não duvido que não tenha influenciado até minha forma de beijá-la.


Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

FANTASMAGORIAS

Arte de Paul Delvaux


O verdadeiro desespero emagrece. Quem está engordando já se curou da desilusão amorosa.

O Consultório Poético projeta o abajur sobre a angústia de uma mulher que não suporta as alternâncias de seu namorado.

Leia meus recados ao fantasma da ópera.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O QUÊ?



O jornal Globo publicou matéria sobre os enigmas vocabulares da MPB. Debato o sucesso e o significado de canções como 'Shimbalaiê' e 'Tchubaruba'.

Confira divertido texto "Que língua é essa?", de Ricardo Calazans.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

UM JUIZ ATRAPALHADO


Inter está fora da decisão do primeiro turno do Gauchão. Mas o protagonista da comédia é Jean Pierre, que apitou a derrota colorada de 2 a 1 para o Novo Hamburgo neste domingo (21/2).

Humor negro no Rolo Compressor.

O ENRUSTIDO

Arte de Christian Schad


Por que um homem chama outro de feio, de ET, de monstro, quando ele passa na rua e nem conhece?

O que o impulsiona a caracterizar um comparsa do mesmo sexo de alienígena?

Atração sexual!

É o desejo que fará um barbado parar seus movimentos, girar seu quadril, largar suas atribulações, a possibilidade de comentar os resultados da última rodada, para ofender um desconhecido. Não é para humilhar e constranger, é vontade de estar junto. Eu, ingênuo, pensava que era bullying. É tara, tesão, hormônios romanos.

Ele não iria se esforçar à toa. Não gastaria saliva com um marmanjo enquanto dispensa de agir com o mulherio à disposição no mundo. Não é pouca coisa. Desperdiça os assobios e os agrados perfumosos às mulheres para se dedicar de corpo e alma a injuriar um alvo masculino. No fundo, está a fim, louco para ter um urso acolchoando seus ombros, um leopardo em seu travesseiro, uma onça em seus lençóis. Banca a hiena para ficar dentro do zoológico e visitar seus colegas durante os sonhos. Não há como se libertar, ainda se vê reprimido pela imagem residual de ruralista e conservador. Negará a impressão até a morte.

Não estou catalogando todos os machos, e sim colocando a luz de palco no tipo truculento, engraçadinho, atacado e que palpita sobre seus amigos e desconhecidos como jurado vitalício do concurso de feiúra. Deve se lembrar de alguém na escola ou no bar, aposto.

Não ataca para se sentir melhor, por insegurança, ou para se sentir mais bonito, por comparação.

As aparências escondem as mais perversas fantasias.

Ao depreciar sistematicamente o outro está expressando suas vontades recônditas. Gostaria de dizer o contrário, que o interlocutor está incomodando com seu magnetismo, que é impossível resistir, mas não tem coragem e desabafa apenas que ele é horrível. É o máximo que consegue sussurrar socialmente. Pra não dar na vista.

Sua provocação é arrebatamento. Sabe-se que homem não perde tempo. Quando ofende, então, prepara um investimento. Ele lança a gozação em nome de uma carência violenta e reprimida.

Qual o sentido de avaliar alguém fisicamente senão o interesse graúdo? O cara está olhando demais, ultrapassou o limite da discrição e se julga culpado pelo interesse e logo empenha uma grosseria para disfarçar.

O enrustido desafora torcendo pela violência física e contato corporal. Reza em segredo:

- Tomara que agora ele venha me pegar!

Em toda a minha vida levei cantadas e não percebi.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O SACRIFÍCIO FILIAL

Arte de Andrea del Verrocchio

Meu pai se separou da mãe quando tinha sete anos. A saudade apertava. Tanta saudade que conversava com as roupas dele. Criava diálogos imaginários com seus bonés, com suas gravatas, com suas camisas listradas. Eu me trancava no armário, dormia entre seus casacos, o desespero brinca com qualquer lembrança, eu entendia que dormir ali significava subir de novo em seu colo.

Mas minha mãe não me contou que o casamento dos dois acabou. Ficou no ar. E não perguntava para evitar o choro. A dor nos proíbe de falar certos assuntos.

O que ouvi é que o pai simplesmente viajou. Havia a expectativa de que ele pudesse voltar a qualquer momento. A qualquer hora. Como uma loucura que se cansa. Como um trabalho que se termina. Até hoje olho a porta por hábito, minha esperança não é de um homem, mas de um cão. Farejo as frestas e vou latir para a campainha.

Eu protegia minha mãe porque jurava que ela tinha sido enganada pelo destino. Que a vida não tinha sido justa. Que o pai nos esqueceu. A espera se transformou em resignação e migrou para uma raiva silenciosa.

Não calculo bem se me tornei um menino obediente por mim ou por ela. Não ansiava atrapalhar, somente isso, e talvez tenha me anulado. Fui mais fixo e previsível do que uma mesa de jantar. Odiei meu pai durante anos para ser fiel à mãe. Depois odiei minha mãe para conseguir me reconciliar com o pai.

Nunca escapei daquilo que não foi dito. Careci de alguém que nomeasse exatamente o que aconteceu. Uma frase me contentaria:

- Eu e seu pai nos separamos e vamos continuando criando vocês em casas diferentes.

O subentendido me apavora, tremo diante de silêncios longos.

Não pretendo levar, portanto, minha filha a me repetir e decorar meus problemas com flores.

Ela ama sua mãe. Reclama, lamenta a ausência de compreensão, mas nunca irá morar comigo. Por mais que insista, acredita que me viro sozinho. Ama com veemência, com determinação, pode dedicar toda sua vida para provar que sua mãe não está errada. Não duvido que consiga.

É o sacrifício de Isaac sendo reencenado ano a ano, família a família.

Eu admiro minha adolescente, admiro os filhos que desculpam sua mãe tentando ser iguais a ela. É uma renúncia espartana, uma oferenda secreta. Não é fácil, não é pouco. De repente, escolhem uma carreira, casam, tomam uma atitude que não aceitariam por desejo próprio, somente para abençoar um exemplo. É um agrado involuntário. Para ficar do lado delas. Para defendê-las da verdade.

Apagam suas vocações, suas biografias, suas aspirações para concordar com a educação que receberam, mesmo sabendo que poderia ser diferente. As explicações para o abandono de sonhos serão idênticas as alegações maternas. Para dizer que sua mãe não estava enganada, vão largar o balé, o futebol, o cinema, a música, a literatura. Oferecem um amor sem limites e, conseqüentemente, sem personalidade.

Amargam um dilema: ou discordam com o enfrentamento (e uma grande dose de traumas) ou apóiam tentando conservar aquilo que foi ensinado. Não serão filhos, mas advogados, elogiados quando concordam no ato, incentivados quando obedecem. Não questionam a versão oficial, confiam em absoluto nas descrições do berço. É fácil descobrir quando isso acontece: as histórias são mais sentimentos do que fatos, mais suspeitas e impressões do que lembranças.

Há mães que não entendem que os filhos não são iguais, nem devem. Não cortam o cordão umbilical. Não alcançam à ideia de que a felicidade é pessoal. Aquilo que pode me deixar eufórico, por exemplo, é capaz de deprimir o outro. Pensam assim: "tudo que foi bom para mim será bom para o meu filho". Não respeitam diferenças de idade, carências, temperamentos diversos. Anulam a época, as mudanças de costumes, as conexões da linguagem.

Se a mãe estudava seis horas por dia, o filho também terá que seguir a mesma receita. Se ela namorou tarde, não custa o filho esperar mais tempo. Se trabalhou cedo, permanecer no quarto é vadiagem. Se a moda é secundária, o filho não depende de nenhum luxo, usará somente o básico. Se ela dorme cedo, nada de luz acesa de madrugada. Se não gosta de música, som alto é barulho. Se não viveu com pai, o filho tampouco necessita.

É óbvio que a casa explodirá em brigas, censuras e castigos. Não existe modo de convencer a criança a fazer do nosso jeito. Porque a ditadura vem da falta de escolha, uma simples mudança de costume surgirá como uma birra, uma afronta inaceitável. Dar o exemplo não é ser o exemplo.

Essas mães, como a minha, como a sua, como a de qualquer um não fazem por mal, ainda não descobriram que podem mudar o passado e repetem suas mães para provar que elas também não estavam erradas. É um efeito dominó, longe de um fim.

Por mais alguns anos, suportarei a distância de minha filha. Mas não quero sua dependência para me sentir importante, quero sua independência para que ela seja importante.




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 58, Número 195
Fevereiro de 2010

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O BARULHO É NO ANDAR DE CIMA

Arte de Tereza Yamashita


Enfrento alguns defeitos básicos.

Um deles é derramar água quando coloco a fôrma de gelo de volta. Vou empoçar a cozinha e molhar os pés.

São décadas cumprindo vagarosamente os passos da pia até a geladeira e sempre desequilibro na última hora, seja ao abrir o congelador, seja ao procurar uma fresta entre as comidas e o pote de sorvete. A ordem é frágil. Atinjo o cume, finco a bandeira e um desmoronamento de neve termina com a paz.

Não é saudável minha insistência, porém odeio fracassar. Não tem sensação pior do que se enganar e mentir aos outros para tentar se convencer.

Talvez não faça questão de sair de uma crise e goste realmente do pessimismo. São hipóteses para fugir das certezas desagradáveis.

Já sondei fazer um curso ou assumir a função de garçom nas férias para efetivar o equilíbrio. Duas coisas se deve ensinar ao filho para evitar frustrações sexuais no futuro: amarrar o tênis e guardar o gelo. O resto ele aprende sozinho.

Durante a contratação pela universidade, agendaram com incrível antecedência o teste psicotécnico. O RH garantia um privilégio e concedeu duas semanas de preparação. Ou seja, uma quinzena para exercitar minha paranoia e refinar o bruxismo.

Não posso esperar muito tempo senão apodreço. Acalentei pesadelos por noites seguidas em que o teste admissional seria caminhar com a bandejinha cheia por todo o campus. Acordava gelado.

Não ria de mim, aquilo não é fácil, é um dos mais horrendos crimes da civilização, ao lado dos buracos da camada de ozônio. É a força do Inconsciente Coletivo pesando os braços.

Antecedentes devem puxar nossa espinha. Reencontramos nas vértebras os arrepios dos condenados injustamente pela Inquisição enquanto caminhavam para o cadafalso.

Eu me vejo próximo da tosse de Giordano Bruno, primo do suspiro de Joana D’Arc.

O problema não é meu, ninguém deseja renovar a bandeja — na maioria das vezes, encontro a morrinha com duas ou três lascas. O familiar usa e devolve como se não houvesse nenhum desfalque. É a maior cara-de-pau.

Deixa o suficiente para seu uísque de madrugada, e só. Claro que descobriremos os tabletes vazios tarde demais, no momento de receber visitas e retornar do mercado com as garrafas quentes do refrigerante.

A generosidade do casal não está nas atitudes ostensivas que fazem parte do repertório de provocação e que permitem flagrantes como trocar o papel higiênico ou não largar a toalha molhada na cama ou manter seca a tampa da privada.

Generosa é a substituição do gelo, uma ação sem sabor e transparente como a água. Discreta, qualquer um pode disfarçar e fingir desinteresse.

Contrariar pequenas preguiças traz sobrevida amorosa. Repondo as pedras, asseguramos a longevidade da relação.


Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

QUE TAL UM FINAL DE SEMANA COMIGO?

Arte de Henri Rousseau

Conduzo oficina de imersão, no gênero crônica, durante sábado e domingo (27 e 28/2) no Centro de Vivências Integria, em Picada Café (RS), a 80 km de Porto Alegre. O lugar tonteia qualquer visitante, que ficará indeciso entre o charme das cabanas, a deliciosa padaria artesanal e a paisagem acachapante da serra gaúcha, aberta ao quintal da Mata Atlântica.

Além das aulas, será possível fazer trilhas e tomar banho de rio de montanha com hidromassagem natural.

As vagas são limitadas e preenchidas por ordem de inscrição.

Informações pelo e-mail info@integria.com.br ou pelo telefone (54) 8402-3744

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

MÁRIO FAUSTINO - CLÁSSICO DO MÊS

Reedição do livro "O Homem e Sua Hora" confirma a importância do poeta que, na década de 1950, aproximou dois polos até então inconciliáveis: a tradição e a transgressão

O poeta Mário Faustino. Apreço pelos jogos sonoros, em versos como: "Agora o bandoleiro brada e atira/ Jorros de luz na fuga de meus dias"


Há a tentação de apontar as estruturas clássicas do verso como sinônimo de conservadorismo e anacronismo. Uma noção vestibulanda de que estrofes e rimas pertencem a uma ourivesaria inútil. O novo residiria no poema visual, no haicai e no verso livre.

As aparências enganam. Dois dos poetas brasileiros mais populares, Mario Quintana e Vinicius de Moraes, foram hábeis sonetistas. Talvez seja um argumento pertinente para revisitar Mário Faustino, que privilegiou a renovação do antigo mais do que a inovação pela ruptura. Cultivou formas consagradas numa postura combativa, de crítico dentro da própria criação.

Natural de Teresina (PI), morreu precocemente em 1962, aos 32 anos, num desastre aéreo. Em sua trajetória curta, transformou a crítica literária com uma página semanal no Jornal do Brasil, atormentando o compadrio elogioso entre os amigos e enfrentando figurões do porte de Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade. Como tradutor, sincronizou o horário brasileiro com os relógios poéticos da Europa e dos Estados Unidos ao verter Charles Baudelaire, T. S. Eliot, Ezra Pound, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine.

Lançou um único livro de poesia em vida, O Homem e Sua Hora (1955), que a Companhia das Letras acaba de reeditar, numa versão de bolso. Embora não tenha estabelecido um jeito original de versejar, desempenhou um papel decisivo e aglutinador. Representou uma figura de apoio entre duas pontas até então inconciliáveis: a tradição e a transgressão. Permitiu, assim, o surgimento do concretismo e a subsequente valorização da recriação na tradução. Assumiu uma condição ambivalente de vanguarda na crítica e retaguarda na poesia com o lema "repetir para aprender, criar para renovar".

Cantou como um barítono, extremamente alusivo, esbanjando aliterações e jogos sonoros. "Agora o bandoleiro brada e atira/ Jorros de luz na fuga de meus dias -/ E mudo sou para cantar-te, amigo,/ O reino, a lenda, a glória desse dia". Ressuscitou uma verve classicista, fundada em Virgilio e Dante Alighieri, com um mergulho intransigente na mitologia e na metalinguagem. Também adotou o tom imperativo e severo dos profetas bíblicos, de censura e ameaça. Não ficou com medo de Deus, apesar da tônica marxista-realista dominante da época. Alternou em seus versos símbolos do cristianismo (como sarça, peixes, serpente e sudário) e transfigurou os temas mais prosaicos em conflitos subjetivos e atemporais.

Não encontraremos nele o deboche, a ironia, os trocadilhos e a distensão modernista, mas um estado elevado de transe metafórico, de limpidez lírica. Desafiando a linguagem e revelando certa adoração pela morte, Faustino exibiu a luminosidade intensa e breve de um cometa.

Publicado na Revista Bravo!
Fevereiro/2010, Ano 12, Nº 150
Primeira Fila, p. 18

domingo, 14 de fevereiro de 2010

SUNGA OU BERMUDÃO?

Arte de David Hockney


"Eu já fui fã de bermuda na adolescência, quando era surfista pelas roupas. Nem prancha tinha. Não me imaginava de sunga. Mas depois dos trinta, como não tinha mais jeito de ser bonito, eu me vi sem conserto. Sem conserto é a coragem dos feios.

Andar de sunga talvez seja uma virtude dos exibicionistas. Aqueles que não têm mais nada a perder. As bermudas sugerem um homem que ainda acredita na pose, na aparência e na reputação. Não pretende perder o que já tem ou arriscar a aparência de repente. Por isso, o jovem e o adolescente gostam tanto de bermudas – o futuro ainda é maior do que o passado. No meu caso, não adianta mais negar o passado.

Não suporto amigo de sunga branca. É o fim da raça masculina. O cara fica com jeito de Pantanal. Cafona, Julio Iglesias litorâneo. Só falta aparecer de roupão branco, garoto-propaganda de hidromassagem de motel.

A pretinha básica é para os iniciantes, tímidos das coxas, perfil pai de família.

Uso sungas coloridas e extravagantes, com desenhos e mapas, para distrair o volume das espectadoras praianas. É o mais próximo que cheguei de uma praia de nudismo."

Depoimento ao jornal Zero Hora
Confira a opinião de
Claudia Tajes, Xico Sá, Vanessa Barbara e Mario Prata
Caderno Donna, p. 07, Porto Alegre (RS), 14/02/20010

ALEGRIA PARA DAR E VENDER



As faixas colocadas nas fachadas dos prédios noticiam a façanha a toda a praia e algumas até definem por antecipação a especialidade a ser seguida pelo recém-aprovado


Os argentinos enlouquecem na hora de procurar apartamento na orla gaúcha.

Andam desorientados pelos calçadões. Identificam centenas de faixas que fogem do tradicional “aluga-se”. Não assimilam as mensagens cheias de siglas nas sacadas dos prédios. Não definem se o imóvel está disponível ou corresponde a recados televisivos a Galvão Bueno:

“Luciano é Bixo.
Odontologia UFRGS”

“Fabi, valeu!
Bixo Veterinária PUC”

Se os bixos pintam o rosto para comemorar, os pais tingem e estendem lençóis pelas fachadas de seus apartamentos. Um enxoval tão disputado como o do nascimento de uma criança. Indispensável como o canudo e a toga na formatura.

Quem não recebe a homenagem não pode se matricular.

Trata-se de uma vingança emocional dos pais aos beijos negados na adolescência. Os velhos exorcizam os atrasos e reencontram uma segunda infância do filho, onde gritos, abraços e diminutivos são novamente permitidos.

Colocar a mensagem é a desforra dos ásperos silêncios dos últimos meses. Quase um grito de independência. Algo como o rótulo de champanha. Não, champanha não, rótulo de sidra. Excessivamente doce, como os olhos das crianças.

A loucura, portanto, tem justificativa. Esconde uma longa mobilização paterna e materna. Uma retaguarda de equipe.

Preocupado com o desempenho, o vestibulando não tem ideia de como influenciou a casa, desde a decoração aos hábitos alimentares. O casal disfarçou o nervosismo, os irmãos se controlaram para não atrapalhar, até o cachorro miou em segredo.

Não menospreze a contundência da tinta vermelha no tecido. Se não soasse absurdo, seria escrita com sangue.

A exposição não tem controle, contenção, elegância. Não existiria graça em cochichar uma façanha. É um grandioso mico. É para perder as estribeiras. Não restar dúvida da corujice.

Um movimento disposto a constranger pesado, a atrair a atenção do condomínio, do bairro, da garota-verão e do prefeito. Alguns escancaram a intimidade com apelidos fofos e inconfessáveis. Outros extrapolam a medida e definem por antecipação a especialidade. Se o jovem ingressa em Direito, a família festeja o futuro promotor. Se ele passa em Medicina, anuncia um próximo ginecologista.

Por mais que tentem, os pais não envergonham os filhos. A felicidade supera o vexame. Nenhum aprovado fica chateado. Está muito emocionado para raciocinar. Tomado de um otimismo insuperável, é capaz de descobrir valor num ônibus pinga-pinga ao litoral e explicar que é um modo fascinante de conhecer todas as praias da região.

Nem sempre o amor pode ser vaidoso. Nem sempre tem direito de ser cafona. Não é justo desperdiçar essa chance.

Quando entrei em Jornalismo na UFRGS, minha mãe não esperava. Foi pega de surpresa. Sequer programou uma comemoração. Não contava com faixa para exibir aos vizinhos, muito menos conhecia empresas para confeccioná-la. Armada da linha e da agulha da irreverência, tomou um terno escuro do pai e bordou em suas costas:

“Bito é jornalista.
Meu filho.
UFRGS 1990”

E colocou no portão, preso num cabide de madeira, substituindo o enfeite natalino.

A roupa balançou altiva na chuva e sol durante meses. Era um espantalho orgulhoso, que recebia a visita curiosa de pintassilgos no fim da tarde.

Mesmo na vitória, ela conseguiu inventar uma maneira de continuar a dizer para não me esquecer do casaco.




Publicado no jornal Zero Hora
Foto de Adriana Franciosi
Editoria Geral, p. 19, seção Estrelas do Mar
Porto Alegre (RS), 14/02/20010

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O MAR PEDE UM TEMPO

Não há como subestimar a capacidade inigualável das crianças de arrumar de arrumar amigos e fantasiar


Quando há sol no litoral, a praia nos chama rápido com seu chiado de chaleira, a fome é maior do que o almoço, a sesta nem espera o bocejo, as crianças se divertem naturalmente. As horas correm de modo automático, quase um liga-desliga no próprio mar, sem a necessidade de controle remoto.

A chuva é que traz o nervosismo. Não contamos com um plano B ou uma saída alternativa. Vem a irritação. A geladeira é a única porta com luz.

Apesar do barulho chuvoso das calhas, tentei dormir até tarde para não decidir nada, mas fui obrigado a me acordar para não ter nada para decidir. A sensação é que não poderia desfrutar de vida naquelas 24h. Deveria deixar meu filho Vicente, sete anos, viver em meu lugar.

Fiquei interditado: é agora que meu filho vai se entediar. Não admitia que tivesse monotonia. Praia é sinônimo de verão inesquecível, um dia melhor do que o outro. Ele telefonaria para sua mãe no final da tarde e reclamaria:

– Hoje foi péssimo, não fizemos nada.

Já o pressenti riscando o dia de sua agenda, desenhando uma cruz nas paredes, amaldiçoando minha absoluta ausência de criatividade.

Comecei a me angustiar. Como posso alegrá-lo? Queria ler e larguei os poemas de Antônio Nobre na cabeceira. Queria caminhar e abandonei a excitação dos exercícios. Somente pensava em como satisfazer meu filho. Já era uma profissão, uma questão emergencial.

De cara, armei uma guerra de travesseiros, pena que esqueci que não tinham penas. Não houve aquela imagem linda de plumas esvoaçando, a cena só doeu. Ele choramingou quando dei um safanão com a fronha em suas costas. Não dosei o gesto e quase perdi sua cumplicidade. Depois de acalmá-lo, partimos para jogar pingue-pongue. A bola quebrou no meio com a violência da raquetada. Não desanimei, estava obcecado em arrancar a felicidade de seus lábios e entrever os dentes do fundo. Partimos para assistir filmes no DVD, com pipoca. Mal terminou e o convidei para um futebol na areia. Emendei a saída para comer crepe. Em seguida, disputar fliperama. Não existia folga, experimentava uma gincana escolar, ávida de algazarra, ininterrupta.

Quando iria convidá-lo a brincar de taco, ele me observou com toda ternura:

– Me deixa quieto e sozinho um pouco.
– Por quê? Está triste?
– Não, estou com saudades de mim. Não consigo pensar.

A carência era minha, não dele. Não suportava a minha solidão, eu é que não sei ficar quieto. Não permitia meu filho definir suas vontades, descobrir seus impulsos. Odiava a chuva e julgava que ele tampouco gostava. Já fui me antecipando, raciocinando em seu lugar, impondo uma rotina de aventuras.

A paternidade não era substituí-lo, mas respeitar sua imaginação. O sofrimento aumenta na ânsia de disfarçar a dor.

Atolamos e sobrecarregamos as crianças porque concluímos que o silêncio é tristeza e que elas não têm coisa alguma para brincar.

Estamos errados. Elas se viram. Não há como subestimar a independência delas, a capacidade inigualável de arrumar amigos, fantasiar e idealizar jogos de meros prendedores e caixas de sapatos.

Levamos os filhos no shopping, levamos nos brinquedos, levamos nas lojas, levamos nas tabacarias. Sob alegação de preparar uma surpresa, nunca perguntamos se realmente querem sair de casa.

Vicente se distanciou de mim, sentou no chão do quarto para brincar com seus bonecos. Conversava baixinho, zunia espíritos dos sons, articulava sirenes. Pela primeira vez no dia, soltou uma risada. Uma risada límpida, sem a minha ajuda. Aquilo me envergonhou. Talvez desejasse ser o responsável pela sua alegria, mas deveria cuidar primeiro da minha.

– Feliz, filho?
– Sim.
– Desculpa, não percebi o cansaço.
– Sabe por que chove, pai?
– Para diminuir o calor?
– Não, é para o mar pensar. Ele não consegue pensar com tanta gente dentro dele.





Publicado no jornal Zero Hora
Foto de Adriana Franciosi
Editoria Geral, p. 23, seção Estrelas do Mar
Porto Alegre (RS), 13/02/20010

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O MAIOR SEDUTOR

O homem que passa protetor na costas da companheira faz sucesso entre as mulheres.

O homem delira com as possibilidades de um protetor solar. Sonha ser abordado por uma desconhecida na praia. Ela deitada, sozinha e indefesa, com mínimas peças, implorando com voz rouca de tele-sexo:

– Por favor, não alcanço minhas costas, me ajuda?

Mas o mesmo garanhão não é capaz de atender ao pedido recém feito pela própria mulher. Não sustenta nenhuma fantasia com quem já dorme. Faz a contragosto, com desleixo e obrigação. Realmente envergonhado da tarefa diante dos amigos. Esfrega ao invés de passar. Como se o creme branco e cheiroso fosse um rosado e pegajoso caladryl.

– Calma, amor, senão me queimo.
– Queimado está meu filme.

Não serão os movimentos imaginados e circulares de esponja, mas gestos econômicos e rudes de lixa. Deseja se livrar da incômoda tarefa o quanto antes.

Macho acredita que seduz somente fora do casamento. Quando se fixa demoradamente numa jovem, quando pisca o olho a uma estranha, quando dá em cima de uma beldade, quando examina a bunda de uma gostosa. Confia que flertar e soltar indiretas são suficientes para garantir seu domínio territorial. Sua tese é parecer disponível em tempo integral, ainda que comprometido.

O conceito masculino é esquisito, feito de verdades parciais. Há sutilezas inacreditáveis em seu raciocínio. Não enxerga problema em pular a cerca desde que não visite a casa. Alega que não tem segundas intenções, mas troca sorrisos abobados com terceiras.

Suas desculpas mudam de acordo com o contexto.

Grande parte dos varões erra na arte da conquista. A falha é reforçar a caricatura, confundir ficha corrida com reputação, cair na cilada de provérbios populares como “fama de rico e comedor não se desmente”.

Carrego, portanto, a certeza de que o maior sedutor não é o malandro, não é o esperto, mas o monogâmico. O fiel. O que tem olhos apenas para sua a patroa.

Ele não pescará decotes mais profundos na vizinhança. Deslizará protetor em sua mulher, com calma oriental, comovido, o olfato sinceramente interessado. Acompanhará as mãos com o corpo. No fim, se aproximará dos ouvidos para sussurrar uma barbaridade. O arrepio feminino produzirá um maremoto de cangas nas proximidades.

Não precisa de mais nada para chamar atenção, toda a praia estará suspirando por ele. Abrirão uma comunidade no Orkut para homenageá-lo.

Nada mais ostensivo e perigoso do que um homem amando sua esposa.

Ninfetas, trintonas, lobas e septuagenárias vão se derreter por aquele barbado gentil e romântico. Vão concluir que ela é uma felizarda. Vão arrastar as pálpebras e tirar binóculos da bolsa para acompanhar detalhes de perto.

Diferente da piada, a fofoca nunca vem inteira, ocorre em capítulos:

– Meu Deus, ele puxa a cadeira.
– Repara como ele a acompanha nas caminhadas?
– Não desgruda um minuto da mão dela!
– Foi buscar água de coco. Não duvido que sirva café na cama.

A conclusão é que ele alcançou a glória, certo?

Não, ainda é uma decisão precipitada. O público feminino não se apaixona pelo homem, mas pela mulher do sujeito. Pretende estar em seu lugar. Ocupar sua posição. Desfrutar de igual admiração. O início do amor é sempre lésbico, depois é que pode ficar heterossexual.

Não custa avisar. Cuide de sua mulher antes que ela se interesse pela vida de outra esposa.





Publicado no jornal Zero Hora
Foto de Adriana Franciosi
Editoria Geral, p. 85, seção Estrelas do Mar
Porto Alegre (RS), 12/02/20010

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

CASINHA DE SALVA-VIDAS

Guarita que serve de brincadeira para crianças de dia se transforma em abrigo de namorados à noite.


Nossa residência em Rainha do Mar tinha dois quartos e 10 colchões. Bastava apertar um pouco e surgia lugar para mais um. Vigorava uma generosidade que não conhecia em Porto Alegre.

Os parentes descobriam o endereço e apareciam de repente para descolar uma hospedagem de graça. Nem avisavam, desciam a bagagem com a vibração das cornetas dos sorveteiros. O sofá servia de beliche, não me pergunte como. Um primo acabou dormindo no chão da cozinha. Não se podia pegar água, senão o acordava. Não conferi o telhado, não duvido de tios roncando nas calhas.

Familiares ocupavam as mínimas frinchas. O último a voltar do mar sofreria para puxar uma sesta. Tomar banho, nem se fala, uma fila se formava no corredor, com o pessoal segurando suas roupas.

Apesar da multidão espremida na mesa, dos imprevistos financeiros e da falta de conforto, minha família nunca brigava no mar. O cheiro do mar agia como um chá de camomila. As discussões sobre os problemas de casamento desapareciam na areia branca.

O litoral representava um alegre esquecimento. Dois meses de paz em que não enxergaria a porta trancada do quarto com minha mãe chorando ou meu pai na varanda olhando melancólico para as formigas nos contornos dos azulejos.

Eles selavam um pacto de felicidade. O único momento em que tiravam fotografias. Em todas as minhas imagens da infância, estou com calção de banho. Penso que não existe jeito de ser triste com o barulho do oceano.

Na praia, eu fiz mais amizades do que na escola. As residências sem cercas, a bola que atravessava as fronteiras dos guarda-sóis, o amontoado gostoso da padaria, tudo ajudava para puxar conversa. Amizade acontecia com o esbarrão, não precisávamos saber quem o outro era e de onde vinha. Com um riso, logo estávamos marcando um jogo de futebol ou dividindo um picolé de fruta.

Na capital, havia o cuidado com os estranhos. No litoral, havia o cuidado para não ser estranho.

Cresci aguardando as férias para crescer. Aprendi a andar de bicicleta nas ruas inclinadas de pé-de-moleque. Aprendi a ficar de pé na prancha e ainda acenar para a turma. Aprendi a cortar grama com a camisa amarrada na cabeça como um hindu. Aprendi a dirigir na solidão dos descampados. Aprendi a esperar a chuva amainar jogando cartas e varetas. Aprendi a despertar com o sol inundando o quarto.

Mas aprendi a amar, principalmente.

Eu me apaixonei no momento errado. Conheci Laura justamente no seu último dia de veraneio. A gente se encontrou descendo nas dunas em caixas de papelão. Apostamos corrida, em seguida entramos no mar. Sua boca: um biquíni vermelho cobrindo a brancura maravilhosa dos dentes. Encostei sua mão em meu ouvido. Gemido bom de concha. Brinquei de telefone com os dedos dela. De tanto que me estendi, devo ter ligado para a África.

Na volta, mostrei minha casa. Ela me mandou um bilhete de tarde com desenhos de Minnie. Foi a primeira carta de amor que recebi.

“Fabrício olhos de jabuticaba
Vamos casar? Na guarita. 18h.
beijo
Laura”


Os casais namoravam escondidos na guarita. A escada acentuava a aventura.

Expirava o horário dos brigadianos e os apaixonados se protegiam do vento e assumiam os cuidados do horizonte. Muitas vezes, salvaram a lua em seus mergulhos noturnos.

Escondi o papel no bolso. Com 11 anos, aquilo foi assustador. Como contaria aos pais que iria casar? Preparei uma malinha levando minhas bolinhas de gude, meu time de botão, duas bermudas e três camisas. Achava que era suficiente para uma vida a dois.

Deitei na rede e não me mexi para o tempo passar. Quando não me mexo, é que o tempo demora.

O cansaço doeu e virou saudade. Lutei contra o sono, mas é impossível impedir o avanço do bocejo, sonhei que dava um beijo leve em sua boca de pano.

Minha mãe me acordou às 20h. Estava abraçado à mala.

– Ai, perdi o encontro!

Não vi a menina na manhã seguinte, nem depois.

Quando caminho pelas margens da praia ao entardecer, talvez por cisma, talvez por esperança, espio por dentro das casinhas de salva-vidas.




Publicado no jornal Zero Hora
Foto de Adriana Franciosi
Editoria Geral, p. 55, seção Estrelas do Mar
Porto Alegre (RS), 11/02/20010

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A PRINCESA E O SAPO

Arte de Osvalter

Sou fascinado por experimentar roupas. Ainda procuro alguma peça que seja alquímica, ainda suspiro por um tecido que me beije e me transforme de sapo em príncipe.

Entendo as mulheres que caçam o jeans perfeito ou a blusa de sua vida. Sou igual: aceito meu corpo devagar. Não tenho interesse em mudar minha nudez, mas me acomodar dentro dela.

Se houvesse alguma maratona dentro das ruas de um shopping, seria o favorito disparado. Demoro muito. Não tomo banho de loja, é caldinho. Saco em todo momento expressões para acalmar minha namorada ou filhos: “Deixa espiar” ou “Só um minuto”. Vitrines não são de vidro, são de vento. Entro em cada uma delas com um sopro.

Arrasto qualquer um que me acompanhe para cumprir meus objetivos. A dificuldade é que não saio de casa com objetivos definidos (uma calça ou um terno), desvendarei na hora as promoções e criarei necessidades súbitas. Mentirei que achei uma oferta imperdível, que nunca aconteceu um preço igual, que não existe como abrir o guarda-roupa se não levar aquela camisa. Meu desejo mente, não sou eu. Eu me vejo como um cleptomaníaco que rouba de si — cansei de vigiar os desfalques.

Sofro, portanto, pelos homens que são carregadores de bolsas nas viagens às lojas. Há muito tempo deixei de cumprir esse papel deprimente e submisso. Aceito transportar o tíquete do estacionamento e mais nada.

Alegam que estão sendo enganados. Não se conscientizaram de que estão sendo mesmo enganados.

Eles precisariam relaxar. Não assimilaram o processo histórico apesar da insistência, da reincidência, das repetições quinzenais. “Vamos dar uma volta?” significa retornar no dia seguinte. Significa atravessar quarteirões e quarteirões de manequins até surgirem bolhas nos pés.

A resistência somente aumenta o passeio e a curiosidade feminina. É mostrar indisposição que a mulher fica mais excitada. Mais impulsiva. Mais indomável.

Os namorados e maridos são previsíveis em sua tristeza. Coaxar, para quê? Mal atravessam a porta e perseguem o primeiro banco alto para sentar. Não soltam uma única risada odontológica. Cruzam os braços e insistem em baixar o rosto. Incorporam leões de chácara, vigias, seguranças — trabalham de graça para os lojistas. Não mexem em nenhum dos cabides, não mostram interesse. Desprezam a beleza das atendentes por teimosia, sacrificando a simpatia de rostos harmoniosamente pintados. Acenam afirmativamente diante dos provadores e não opinam mais do que um lindo sobre as roupas.

Aqueles homens são crianças mimadas, contrariadas, emburradas. Dos pais, herdaram a resignação do castigo. Não aproveitam o momento, anulam aquelas preciosas horas de seu expediente amoroso em nome do orgulho.

Poderiam soltar a franga, testar novos modelos, desfrutar da imprevisibilidade cômica.

Caso entrassem em surto consumista, sua mulher raciocinaria duas vezes antes de convidá-lo para as compras. Não é viável um casal com dois gastadores. Deveriam enlouquecer e provar as gravatas disponíveis e pedir para sua companhia fazer o nó. Ou por que não se aproximar do balcão e fingir que é um bar? Solicitar café, água gelada e biscoitos, olha que delícia, sem nenhuma conta ao final. Ao invés de ser puxado, tomar dianteira e anunciar: quero que veja uma loja imperdível de sapatos. Ela se assustará, ela temerá sua alma feminina. Cinderela odeia concorrência.


Crônica publicada no site Vida Breve

MINHA VIDA NUM ISOPOR

Famílias dividem a tenda na areia de Capão da Canoa, além do isopor, uma espécie de cofre das riquezas líquidas


Sou farofeiro. Como um caxiense legítimo.

Gringo é exagerado, passional. Desce a serra ansioso pelo mar. Não há como ser discreto se por acaso nasceu em Flores da Cunha ou São Vendelino ou Bento Gonçalves ou Veranópolis. Esqueça a timidez. Haverá uma mãe centenária puxando o coro e pedindo para não mergulhar no fundo. Haverá manos brigando pela fatia com mais leite condensado da torta.

O que é farofeiro?

Os que moram na areia como mariscos, caranguejos, escorpiões.

Seu medo é desperdiçar as férias, então passará o dia enfurnado entre as ondas e as dunas. Quer tirar o atraso de um ano inteiro em 30 dias.

Simples de encontrar. São amplificadores ao natural. Cada farofeiro é uma caixa de som que atinge até 150 decibéis.

Repare ao lado e verá um bando de gente num estado indefinível entre berro, lamúria e risada. Somos nós.

É uma tribo que tenta ser prática e acaba trabalhando o dobro. Seus integrantes são sacoleiros, carroceiros da maresia. Virão curvados das ruas.

Atolados de bugigangas. Não levam apenas cadeiras e sacolas, mas bicicletas, pranchas e colchonetes. Se tivesse tomada na orla, carregariam ventiladores e geladeira. Têm mais pertences na praia do que na própria casa.

O isopor é seu principal componente, o cofre das riquezas líquidas. O tamanho da caixa de gelo sugere o tempo de permanência, que pode durar de seis a 12 horas. Tanto que existe o zelador do isopor, uma espécie de tesoureiro, figura escolhida por votação, responsável por controlar a saída da bebida.

Ele põe o pé em cima da tampa e não permite que um dos veranistas se beneficie mais do que os outros.

O farofeiro não quer gastar à toa nos quiosques. Por isso, economiza e transplanta sua cozinha para a beira-mar. Enquanto o normal é segurar uma latinha para consumo na hora, ele faz estoque.

Tem uma inclinação grandiloquente. Mede a alegria pelo número de cervejas que tomou.

Jura que é de uma raça mais resistente ao sol. Nunca ficará bronzeado, mas vermelho, rosa, lilás. A verdadeira cor da pele aparecerá de noite, depois de tirar as camadas de bife à milanesa.

Os farofeiros gaúchos – não confundir com os argentinos, que representam a ala internacional do setor – transformam lanche em piquenique, convertem almoço em ceia. Foram ampliando seus territórios de lonas. De um guarda-sol, cresceram para uma tenda e já estão dispostos a fundar uma feira. Sua ambição não tem freios. É o case de maior sucesso de empreendedorismo litorâneo.

É aquela trupe esquisita e numerosa, que não deixa nenhum banhista ler um livro quieto. De vez em quando, a trupe conversa num dialeto, que pode ser italiano ou apenas língua presa.

É uma tropa que não chega à praia, mas invade. Simboliza a única comunidade hippie que deu certo.

De uma turma modesta, mínima de farofeiros, é possível formar um time de futebol, um time de vôlei e três duplas de bocha. E ainda sobram reservas.

Não é fácil atingir esse nível de despretensão. Requer um marasmo inato, para não sair do lugar e muito menos reclamar da insolação.

Qualquer mudança de ordem terá a cobertura de suas fofocas. Gritam para um aviãozinho ou helicóptero. Se há ameaça de afogamento, juntam-se com rapidez para formar uma multidão aflita, rezando terço e arremessando os braços ao céu.

Pertenço a uma família de farofeiros, confesso, não tenho cura. Estou estragado para o resto da vida.


Publicado no jornal Zero Hora
Foto de Adriana Franciosi
Editoria Geral, p. 39, seção Estrelas do Mar
Porto Alegre (RS), 10/02/20010

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

COMPLEXO DE GUAIPECA


Gaúcho tem a obrigação de ser feliz nas férias. Sua felicidade é praia. Quem permanece em Porto Alegre e não consegue ir ao litoral se sente culpado diante dos filhos. Pede desculpa com o suspiro.

É diferente do carioca, que tem sua alegria parcelada dia a dia. Do nordestino, que comprou à vista o oásis. Do catarinense, cercado de ilhas para todos os poros.

Gaúcho depende do mar para se enxergar de folga. Seu problema é que não fica satisfeito porque não pode ostentar. Sofre do complexo do guaipeca. É como se nosso mar não desfrutasse de pedigree para expor aos amigos e faltassem curvas para confirmar sua sensualidade.

Inventamos de achar que Torres é a exceção de uma praia monótona, retilínea e sem exuberância.

Talvez seja o momento de terminar com a depressão turística. A realidade significa um ponto de partida, nunca o destino final.

O que é feio pode ser inteligente. O que não é formoso pode ser exótico.

A imaginação é uma virtude que forma o triunfo de qualquer banhista. Tem proporcionado benefícios incalculáveis para a resistência da personalidade gaudéria.

Imagina se aqui fosse Angra? Não daria certo.

Beleza demais me deixa preguiçoso, terei que exercer montanhismo, caminhadas pelos morros, descer dunas. É tanta coisa para olhar e fazer que acabarei não me molhando.

Água transparente não é uma maravilha, gera incômodo, lembrarei apenas que não cortei as unhas dos pés.

Nas praias achocolatadas do sul, posso perder a sunga e não serei preso por atentado violento ao pudor. A malha marinha demorou anos de erosão de conchas para atingir esse impagável vidro fumê, que conserva a privacidade do mergulho. Em Copacabana, uma bunda branca já seria manchete. Nossa praia é involuntariamente de nudismo e não causa escândalo.

É parar e pensar como o Nordestão vem sendo uma dádiva. Gerou a melhor arquitetura do guarda-sol do país. Ninguém coloca um guarda-sol como a gente. É fundo, firme, intransponível, existe uma técnica militar apuradíssima somente conhecida pelo exército otomano, capaz de enfrentar e amansar ventos automobilísticos. Diante de toda adversidade, ele não voa. Verifica se o mesmo vai acontecer em algum pacote pela Bahia? Nunca.

As crianças aprendem lições de trânsito ao natural. Carregam uma visão privilegiada das leis. Não serão atropeladas. Pelo método Piaget, as bandeiras explicam o funcionamento do semáforo.

Os salva-vidas não são broncos. Modelam castelos defronte de suas guaritas, para mostrar que a arte é uma espécie de socorro.

Os surfistas desencavam manobras e não dependem da altura para andar em tubos. São imbatíveis em campeonatos, íntimos das marolas, transformam o cochicho de espuma em maremoto.

O protetor solar recebe uma fina camada de areia que impede a entrada dos raios ultra-violeta. Temos muito menos risco de câncer.

Nosso repuxo é terapêutico, muito mais benéfico do que uma fisioterapia. As pernas aparecem torneadas de ir e voltar de um banho. Já observei jogador de futebol se recuperar de lesões sérias. Entra mancando e volta correndo.

Não abaixaremos a crista com a chuva. Com o alagamento repentino das ruas, experimentamos a chance de encenar Woodstock. Muita lama e liberdade, um contato direto com a natureza.

Dizem que Ronaldinho Gaúcho inventou o drible elástico em Cidreira fugindo dos esguichos dos carros.

Na ausência de programas, criamos passeios para analisar as residências alheias. A curiosidade nos permite ampliar os conhecimentos de decoração.

Não nos interessa unicamente a vista paradisíaca. O que vale é a interação com os vizinhos, reunir a família, reencontrar colegas. A areia torna-se um pretexto para intensificar o convívio e antecipar fofocas.

Como nossa praia não é linda de morrer, continuamos vivendo, graças a Deus.


Foto de Adriana Franciosi
Arte de Gonza Rodriguez
ZH, Geral, p. 45
Porto Alegre (RS), 9/02/10
Faço a minha estreia na série "Estrelas do Mar". De terça a domingo, publicarei crônicas sobre o litoral gaúcho no jornal Zero Hora.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

BELICHES

Arte de Kurt Schwitters

As imobiliárias deveriam oferecer serviço de assistência psicológica. Há clientes que não resistem ao trauma de alugar um apartamento. Eu sou um deles.

Dependia de um fiador. Respondi para corretora que isso era barbada. Tenho dois irmãos com imóveis, ambos de carreira consolidada. Tive o impulso de discar na hora e resolver o pré-requisito na frente dela, mas me guardei, delirando que brigariam para ocupar o posto.Liguei primeiro para o mais velho, expliquei a urgência, sustentei que sempre paguei todas as minhas contas em dia, sofro pânico de atraso, ele sabe, mas foi enrolando e enrolando, avisando que não queria assumir nenhum risco. Risco? Que risco?

Ele prometeu retornar em seguida. Nunca mais me telefonou.

Não desanimei, acessei minha irmã. A prosa foi ainda mais árdua. Ela começou a me rebaixar para justificar que não desejava ser minha fiadora. É natural que o outro nos coloque em julgamento para se desculpar. Argumentei que não desfrutava de condições para empenhar o seguro-fiança, porque vivia os meses mais difíceis a um escritor, janeiro e fevereiro, sem palestras e movimentação literária. Ela não declinou, acentuou a violência do timbre.

- Precisa se virar sozinho.
- É a regra, não há como ser sozinho.

É terrível quando alguém se mostra vulnerável e o interlocutor aproveita para atacar. Poucos são os que sabem receber a fraqueza de um familiar. Ela passou a me agredir, falando que minha carreira é instável, que não podia apostar em mim. Retruquei que cuido de dois filhos, que assumo as responsabilidades, que gosto de ser adulto. Ela lamentou: mais um motivo.

Fui solicitar apoio e já mendigava.

Cansada da discussão, colocou a culpa no marido. "Meus bens são partilhados, ele não admitiria". Pedi para que trocasse ideia com ele. "Não vou estragar meu casamento por tua causa".

Eu me espantava com as nossas diferenças, adotei então uma posição nostálgica, quase masoquista:

- Lembra que você se chamava de Théo (irmão de Van Gogh) e que me ajudaria?

Ela foi cínica:

- Van Gogh era esquizofrênico, você não.

E desligou na minha cara.

O que aconteceu com a gente, manos? Na infância, vocês seriam capazes de deixar de comer para que comesse, vocês seriam capazes de guardar segredos para não me assustar, vocês seriam capazes de apanhar para não me denunciar aos pais.

Quando a mãe separou o beliche em dois quartos, dormimos juntos no chão. Para não perder as conversas no escuro.

A sensação é que largamos nossa origem após o casamento. Viramos um feudo. São somente os filhos, a esposa ou o marido, todos os demais são intrusos e incômodos. Não confiamos para gerar confiança, não tranquilizamos a esperança. É o boicote, o medo, a paranóia.

Ao procurar um calço entre meus irmãos, vejo que não tenho família. O dinheiro termina com qualquer laço. O amor não tem fiança.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

HARÉM

Arte de Osvalter

Para Gustavo

Não compreendo como o homem ainda não descobriu o melhor lugar para caçar.

Não é insano cogitar a academia, onde são comuns as abordagens na partilha dos aparelhos. Tampouco é.

Não é despropositado responder que é o supermercado, em que são normais os pedidos por informações. Também não é.

Assim como não é a balada, não é a piscina, não é a praia, não é um acampamento de estudantes.

Onde as mulheres sempre aparecem, desprezando os anúncios meteorológicos? Pode soar as trombetas de Jericó que não mudarão a rotina. Adiam as cólicas para o dia seguinte e a enxaqueca para outro horário. Não correm o risco de morrer naquele instante.

Elas desmarcam qualquer coisa. Qualquer coisa. Nenhum trabalho, nenhuma agenda supera em importância aquela meia hora.

Sei que não é fácil imaginar uma mulher aguardando, elas costumam transpirar atrasos, trocam a roupa de repente, lembram de mais um detalhe, passam pincel e batom no espelhinho do carro.

Mas o tempo se espreguiça neste local. Acomodam-se nas poltronas e esperam. Aprumam-se nos sofás e cadeiras e esperam. É a verdadeira agência de casamento.

Loiras, morenas, ruivas. Casadas, desquitadas e solteiras. Três gerações no mesmo ambiente. Para todos os gostos, para quem sofre de complexo de Peter Pan, de Édipo, de Electra, de Ozzy Osbourne. Para quem não foi a um analista. Para quem não largou o analista.

Os adoradores dos pés não deveriam faltar. Os adoradores das marcas dos biquínis não deveriam se ausentar. Os adoradores das mãos deveriam largar o amadorismo das fotos na internet.

São ninfas definitivas, esbeltas, descontraídas. Circulam pelo tremor das pupilas como se fossem seus quartos. Abrindo portas, fechando janelas. Maldizendo os trincos, permitindo — inclusive — que mexam em suas bolsas.

Raramente rudes. Raramente grosseiras. No máximo, vão se desembaraçar e pedir licença para buscar água e café. Não encontrará o tipo fatal que volta para casa contando quantos foras deu na noite.

Reina um pacto de cordialidade, uma trégua secreta, um bem-estar improvável. Nada reduzirá o espírito de gueixa. Confiam na seleção natural do endereço. Respeitam urgências esperançosas. Não desmerecem visitantes.

Onde?

Onde as mulheres ficam sem sandálias, saltos e chinelos, com as pernas para cima, confessando seus relacionamentos, suas fraquezas?

Com os braços largados na montaria e cílios carentes.

Não precisará pagar ingresso, consumação, não mendigará uma mesa, não suportará o constrangimento de se movimentar a todo custo e criar amizades instantâneas para ampliar o território, nem terá que esguichar frases inteligentes e espirituosas a cada gole. Não dependerá nem de uma música ou de uma bebida para se soltar. E o mais atraente: não enfrentará blitz e pedágio de amigas, barreiras opinativas que discriminam avanços. Elas deixam seus anjos e guarda-costas na recepção.

Caminham livres dos pais, dos laços familiares, dos vexames.

Onde é esse ponto de franca sedução, de riso e gentilezas fáceis?

Os pecados surgem frescos, meteóricos. Taras, fantasias e bobagens se entreolham, cúmplices.

Com um pouco de acetona, tinta e lembranças serão removidas. Com uma lasca de lixa, contornos e falhas serão corrigidos. Elas falarão mal de seus namorados, de seus ex, avisarão o que desejam com uma objetividade inédita.

Ali aprenderá em minutos o que levaria uma vida perguntando.

Fico abismado quando entro no salão de beleza para fazer as unhas e somente há mulheres.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

DOEU!



Não admitimos o ódio quando amamos. Somente admitimos quando separamos. Por isso que é incompreensível a mudança radical de opinião da ex. De um dia para outro.

Ela não mudou, escondeu. Não foi coroada por uma epifania, muito menos decidiu ouvir suas amigas.

O ódio já existia durante o relacionamento, fazia suas economias, seus investimentos, separava frases, ofensas e diálogos para fundamentar a distância. Ela é que não confessou por medo de ser inconveniente ou para se preservar e não ser taxada de neurótica.

Se não agimos com naturalidade com os nossos pensamentos, como seremos espontâneos?

Ao não estragar o momento, estragamos - num único rasgo - a vida inteira a dois. O que deixamos de contar nos enfraquece e será cobrado igual, com a mesma severidade se fosse usada a franqueza.

Censurar o ódio é anular parte do amor e de sua revanche. Quem nunca diz que odeia reprime a própria cura. Adoece o quarto e contaminas as roupas.

Partilhar a raiva é a maior demonstração de ternura que conheço. É permitir que o par cuide e conheça nossa vulnerabilidade. Só o maniqueísmo não sente vergonha. Só a perfeição não pode se apaixonar.

Eu tenho ganas de destruir minha namorada, raivas de aniquilar, vontade de abrir suas córneas e beber seu passado. Não é sentimento vão e passageiro, desejo que desapareça de minha frente para chamá-la em seguida com todo o desespero. Para perdoá-la, eu me perdôo primeiro. Aceito minhas maldades imaginárias.

Amor pleno é quando o ódio termina também sendo correspondido.

Cínthya Verri criou o blog Matando Carpinejar. Ela me destroça nos desenhos para me preservar a seu lado. Há um mês, carrega um caderninho para retratar violências e apressar o inferno.

Curioso que me assassina e sofre junto, tem um pesar autêntico no meio dos traços. Conversa com a ilustração:

- Coitadinho! Que pena isso estar acontecendo.

Demonstra que seu ciúme não é burro, é bem inteligente.

Não é fácil. Confesso que fico cansado de tanta ressurreição.

Participe dos homicídios passionais.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

UM TÉCNICO LEITOR


Rolo Compressor analisa o novo técnico do Inter, o uruguaio Jorge Fossati, responsável pela vitória colorada de 1 a 0 sobre o Grêmio, pelo Campeonato Gaúcho, no domingo (31/1).

"O Inter tem novamente um técnico de cabelos brancos. Fazia tempo que não passava pela casamata colorada um líder com as melenas totalmente grisalhas. O uruguaio Jorge Fossati lembra Ênio Andrade, técnico campeão brasileiro de 1979. Não sugere um desígnio, mas uma coincidência de perfil: o mesmo estilo discreto, simpático e compenetrado.

O cabelo branco é um dom. Um merecimento. Não é para qualquer um, muito menos surge de forma harmônica para seus ungidos. Nem todos podem ostentar o charme de Walmor Chagas, aquela cabeleira nevada, viço da inteligência e verdadeiro rival do vigor da juventude."


Toda a tese aqui.