domingo, 31 de janeiro de 2010

O QUE SONHEI SER E NÃO FUI

Arte de Lauren Hamilton


Aos sete anos, projetava que minha vida estaria resolvida aos 37. Administraria somente a felicidade. Dei o prazo de três décadas para não me preocupar. Talvez o paraíso naquela época fosse cabular temas, não ir à escola, muito menos ser submetido às provas. Não mirabolava encargos, superações e dificuldades. Até porque a vida adulta é distante, uma velhice para criança.

Recordo a atmosfera do que imaginava. A sensação de alívio do futuro. A felicidade seria estável e permanente. Era uma fórmula que deveria encontrar e adotá-la no restante dos dias. Algo como a receita de galinha recheada da avó. Uma vez feito o prato, ele se repetiria eternamente.

Não enxergava o estado provisório e fugaz do sentimento, um clarão que nos ajuda a suportar depois o escuro. Hoje entendo que a felicidade é rara, relampeia, olhamos onde estão nossas coisas e seguimos tateando com mais facilidade.

Não sou sinônimo de sucesso. Moro provisoriamente na residência materna, tenho duas separações, sequer possuo algum imóvel. Deixei duas vidas, duas casas, tudo o que construí e acumulei ficou para trás. Caso não tivesse me divorciado, estaria confortável e poderia investir na bolsa de valores. Guardo a biblioteca em centenas de caixas na garagem, não há como consultar os livros. Os rendimentos são subjetivos, provados pelos extratos bancários.

Mas não pretendo ser diferente, não entrarei no apartamento de amigos ricos e fingirei igualdade. Não peço emprestados outros mundos para aliviar o meu. Estou contaminado das manias para mudar.

Apesar da fragilidade, não me coloco como um coitado, uma vítima de decisões erradas. A cada mês, sou obrigado a inventar um salário. É assustador e delicioso. Eu perco meu emprego todos os dias. Enviúvo compromissos e caso com expectativas. A rotina não é interrompida por finais de semana. Domingo e terça-feira são iguais. Não me formei em medicina para justificar plantões, ocupo a família com minhas desocupações.

Espumo águas paradas. Qualquer desastre não é trágico. Qualquer desmemória não é o fim. Sou rápido o suficiente para me digitar de novo. Desde o início. Não desmereço as frases porque já foram escritas.

Os filhos não se acostumaram com a atmosfera instável, acham que sofro à toa e que me alegro ainda mais à toa. A namorada tenta esclarecer as extravagâncias. Na casa dela, não consigo relaxar, banco a faxineira. Passo aspirador, lustro mesas, lavo a louça e dobro as roupas para brincar que é minha casa. Ela enlouquece, mas sua ternura atrapalha a raiva. Sinto saudade de varrer a rua. Saudade não é arrependimento.

Há gente que se gaba em dizer que cumpriu o sonho dos sete anos. Seguiram à risca a ambição de pequenos.

Eu fico com dó da coerência. Desse jogador de futebol que não admitiu a confusão vocacional. Dessa bailarina que não desobedeceu ao contexto. Desse cantor que não reparou na encruzilhada.

Nossa cultura valoriza demais o planejamento. Como se a linha reta fosse uma virtude.

Eu não fui o que minha infância traçou. Aquilo era fantasia. O que sei fazer é recomeçar e frustrar condicionamentos.

Para um escritor, seria uma enorme falta de criatividade ser o que imaginei quando criança.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

TOQUE

Arte de Egon Schiele


Masturbação feminina é inconciliável com a masculina.

Se a senhora tem alguma dúvida sobre orgasmo múltiplo, não pode negar seu inegável talento para a excitação prolongada. Não diga que é natural, não humilhe seu parceiro, tampouco menospreze o dom. O homem não conhece esse controle remoto do corpo.

A mulher é bem capaz de se masturbar no chuveiro, transar no quarto e não haverá nenhuma diminuição do ritmo. Sua nudez é insaciável. Assim como demora mais para se excitar, demora muito mais para abandonar a excitação. O homem facilmente se prontifica, porém larga a atmosfera com enorme rapidez.

O orgasmo liquida o homem e reinventa a mulher. Virtude de um, defeito do outro.

A fêmea ama na volta (o homem somente ama na ida). Não negará o sexo mesmo que tenha se violentado secretamente. Ficará inflamada. Desejosa. Sequiosa.

Sua libido é narração. Pretende continuar com a fantasia, aumentar a trama, propor encruzilhadas.

Caso seu parceiro pedir e merecer (as duas operações são complementares), ainda que já tenha gozado sozinha, seguirá adiante, procurando ir além do gemido. Os braços masculinos serão a continuidade dos seus dedos.

Tanto que o homem é tarado antes do ato, a mulher é tarada depois dele.

Levando o fôlego como parâmetro, mulher na cama é romancista, homem é poeta, isso quando ele não inventa de fazer haicais.

A excitação dos machos é monotemática. Até hoje supõe que bater uma é anular a chance de sexo no dia. Sua masturbação é como uma saída de emergência. Não é um aperitivo, uma preliminar, mas a aceitação do fracasso. É como um desabafo, algo como não deu para aguentar.

Nenhum adulto confessa com orgulho para sua namorada ou esposa: bati uma punheta. Tem receio de receber um olhar piedoso, de Seguro-Desemprego.

A fase adulta traz a imperiosa necessidade da transa para ser feliz. Superada a adolescência, o homem se masturba a contragosto. Lamentando que não tenha um resultado melhor. Provável que isso demarque toda sua conduta psicológica. Vive a resignação, uma espécie de solidão indesejada. Acha que se tocar é o deserto da agenda, a absoluta falta de aventura, um sinal de rejeição, que ninguém o quer, nem ele.

Na hipótese de se masturbar e transar no mesmo turno, sofrerá de retardo mental. Sem pressa alguma. Sem volúpia. Com dificuldade de concentração. Seu objetivo é um só: gozar de novo. Não é de continuar gozando. Pensa que traiu sua companhia com a ejaculação solitária.

É um processo semelhante quando escolhemos uma música como aviso de chamada do celular. Nunca mais teremos condições de apreciá-la, apesar de ser a nossa balada favorita. Os ringtones matam a leveza imaginária da canção. O toque lembrará agora trabalho, prazo, incomodação, urgência. Ao ouvir os acordes no rádio, mergulharemos em pânico, tentando localizar o aparelho.

O que me faz crer que a punheta do homem é seu ringtone do sexo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

MOCREIA

Arte de Osvalter


Eu descobri o que é a vulgaridade: o desinteresse.

Quem fala um palavrão apaixonado não será vulgar. Não será tosco. Acredita naquilo, colocará sua vida entre os dentes para estalar o chicote do desaforo.

Quem fala um palavrão por estilo, sem necessidade, acaba se vulgarizando.

Quem se oferece por excitação abarcará o peso da palavra dita, da palavra retirada, não será vulgar. Abraçará o suspense entre o pensamento e o som. O único acordo ortográfico que conheço é conciliar o que se pensa com aquilo que se deseja e conseguir ser compreendido.

Quem se oferece por hábito e técnica será tão vulgar quanto a marca do biquíni acima da calça.

A indiferença é vulgar. Não são vulgares a sensual abaixadinha e cada um em seu quadrado. O funk pode ser explosivo.

Não são vulgares os saltos enormes, os lábios pintados de vermelho ou o laquê ou qualquer adereço escandaloso. Um travesti pode ser muito elegante.

Vulgar é quem cobra por apresentação da alma durante as folgas. Não escuta os outros, não se reparte, confia que o amigo é espectador e que todos estão adorando sua companhia.

Há uma diferença entre a vulgaridade e soberba. Alguns merecem a soberba. Há uma diferença entre a vulgaridade e a maldade. A maldade tem sentimento.

Dei um giro noturno com minha namorada e sua amiga. Em cada bar que entrávamos, ela passava a mesma cantada ao porteiro com o interesse de arrebatar privilégios e uma mesa maior. Entoava um sopro infantil, acentuava os joelhos numa oferta despropositada. Sua voz era pedófila.

Bonita, pernas trabalhadas pela dança, vestido curto, rosto carismático, mas vulgar. Não alterava nunca a velocidade dos olhos não importando a lembrança. Falava com desdém, com certeza de toga emprestada para a formatura. Não estava familiarizada com o talvez, a dúvida, a hesitação. Unicamente admitia se corresponder na quarta e quinta marchas. Não voltava atrás num assunto, não dava a mão para uma conversa, não declinava de uma opinião. Seu lema: ou me acompanhem ou deixo vocês. Ela se via como a gostosa, a poderosa, a invencível, mas vulgar, porque não conquistou em nenhum momento o direito de ser conhecida. Demonstrava um talento absurdo para grosserias. Foi com o garçom, foi com o vizinho do balcão, foi com os colegas que encontrou na rua, foi comigo.

Brincava que minha namorada me chamava de gay heterossexual. Pelo excesso de cuidados e gentilezas. Ela nem me encarou. Virou os cabelos, abstraída de ternura:

— Se não fosse tão feio, seria gay.

Desprezou sua amizade antiga com a namorada, desprezou o que eu significava, cometeu um preconceito longe da paciência para convertê-lo em piada.

Vulgar. Como animais em cativeiro. Ela não sabe, nem saberá, até para avisar de nossa morte dependemos de pele.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

SENTIMENTAL


Arte de Cy Twombly

Guardo ressalvas ortodoxas. Nunca botarei cinto e sapatos brancos. Nem colarei adesivo de Betty Boop na traseira de meu carro.

Antecipo meus preconceitos. Mulher palitando os dentes teria que usar burka.

Já me sinto aliviado ao confessar. Meu temperamento era mais complicado. Eu me vejo avançando, atingindo uma flexibilidade nos costumes que não percebo nas articulações dos braços.

Até acredito que poderíamos relaxar mais. Iniciando pela casa.

Toda residência solicita uma detalhe de espelunca. Um objeto inexplicável em cima do armário. Uma mandala que não combina com os bibelôs franceses. Um pôster do Michael Jackson junto às telas de tinta a óleo. Um brinquedo de kinder ovo ao lado da cristaleira. Extraviei a vocação conciliatória. Carrinhos de madeira com emblema do Inter dividem a renda da mesa com bonecos mexicanos. Conservo miudezas e trastes que nunca serão disputados num inventário.

Existe algo mais brega do que pregar espelho na porta para afugentar maus espíritos? Pois é o que faço. Funciona melhor do que um olho mágico. Muitos desistem de apertar a campainha.

Encontro harmonia no cemitério, encontro vazios no museu, casa é um espaço altamente contraditório. Não colocarei as incoerências nas gavetas. A vida é curta demais para ter sentido.

O bom de ser pobre é que tudo tem um lugar, mesmo na carência de espaço. Os presentes vão aterrissando, qualquer que seja sua origem, e têm um encaixe imediato nas estantes. Nenhum penduricalho é jogado fora, não importa se é estranho, esquisito, esdrúxulo, o que vigora é o valor emocional. Há um cuidado em preservar o gesto acima da utilidade ou do preço do produto.

O desastre de ser rico é que nada tem um lugar, mesmo com a sobra de espaço. Qualquer utensílio reivindica um estudo do decorador ou do arquiteto. Os casais mergulham numa discussão filosófica sobre a pertinência de uma escultura. Tanto que o rico somente compra terreno na praia para desovar todos os presentes preteridos em seu lar.

O amor deve prevalecer sobre a decoração. Não é saudável estar tudo certo, tudo adequado, tudo arrumado, tudo combinando. Réplicas da Indonésia merecem a companhia engraçada e saudável de um pinguim feito pela filha. Eu sei o significado daquilo, mais ninguém.

Relaxei com a neurose da ordem. Quando solteiro, sonhava com salas limpas, ventiladas, com cada objeto ecoando o estilo dos demais. Não suportava a intrusão de novidades. Não tolerava penetras de plástico, que não tinham no mínimo a idade de meu pai. Lojas de 1,99 causavam pânico.

Com o nascimento de minhas crianças, os limites desapareceram. A sala virou um chiqueiro, com telas de proteção e portinholas nas escadas. Brinquedos apareciam no sofá, chocalhos estrilavam entre os livros, bicos germinavam debaixo das mesas. Eu me abri para as delicadezas cafonas.

Ao receber um ursinho da namorada, não incinerei a pelúcia no primeiro churrasco. Não sofri vergonha dos amigos. Não me abalei se sacrificava a macheza da tenda árabe da cama. Nomeei o animal como guardião dos porta-retratos do quarto.

Estou numa fase sentimental. Acendo lembranças nos corredores, cada janela é um santuário. Nenhuma neutralidade me seduz. Desisto de ser chique enquanto a ideia permanecer como sinônimo de falta de personalidade.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A CULPA É DO KEEP COOLER

Arte de Marie Laurencin

Nos anos, 50, minha mãe bebericava poncho em suas reuniões dançantes.

Nos anos 70, minha irmã virava Martini com azeitona na discoteca.

Hoje a moda parece ser vodka e Red Bull nas baladas.

Estou somente comentando as drogas lícitas. Cada geração sofreu os efeitos colaterais do que consumiu antes da maioridade.

Peguei a safra mais careta do bar. Nos anos 80, eu bebia Keep Cooler nas festas de garagem. Não representava bem álcool, muito menos motivava a sair da timidez. Era o travesti de um refrigerante.

Guardo o gosto açucarado da bebida na língua. O Kiwi é eterno.

Lembro que rendi piada para muitos colegas. Aos doze anos, amigos anteciparam que Cláudia estava a fim de mim, só eu não percebia. Fraudaram bilhetes que pousaram em minha mesa na aula. Estranhava a generosidade popular pelo namoro. Quem não tem nada acredita em tudo. A guria veio para o meu aniversário. A turma batia em meus ombros:

- Parte em cima dela antes que seja tarde.

Ela estava com polainas e um casaco brilhante, uma combinação adequada para o brechó do período. Naquele tempo, a sensação é que todos usavam roupas emprestadas, colhidas ao acaso nas gavetas dos pais.

Suas franjas aumentavam as bochechas. Os brincos de argolas esperavam aias para serem carregados. Ela tinha lábios carnudos, transparentes.

Na maioria das vezes, minha coragem foi emprestada. Eu me aproximei e a convidei para dançar. Esqueci que não sabia dançar. Achei que fosse fácil, mas na hora não conseguia cantar e coordenar os passos. Se tivesse que dançar o hino nacional esqueceria a letra. Alguns já esquecem mesmo parados. Ela indicava os pés, eu embaralhava os joelhos. No fundo do quintal, com um globo improvisado de luzes, remexia num ritmo que somente eu ouvia. Distorcia, arranhava o compasso.

Demorei a me aproximar do pescoço de Cláudia, mais ainda para segurar sua cintura. Depois de um longo e silencioso ecoturismo em suas costas, tomado da respiração balouçante, arrisquei um beijo. Pulei como um cego ao seu rosto. Ela colocou as duas mãos em meu peito e pediu distância. Qualquer um entendeu como um empurrão.

- Não quero qualquer coisa contigo, Fabrício, somos amigos.

O fora surgiu no fim da música. Exatamente no último acorde. Sua voz ecoou pelo corredor, como um playback desmascarado.

A roda de impostores ria aos berros. Acompanhava nosso giro, torcendo pelo movimento de repulsa. Encarnei aposta, sofri zombaria e, por culpa do keep Cooler, não perdi a ingenuidade.

É um vício necessário. Talvez o que faço melhor. Fico pronto para me despedaçar.

Não estou sozinho. Recebo companhia a cada minuto na nau dos insensatos.

No amor, em algum momento, você terá que ser ingênuo e acreditar. Terá que largar uma vida, refazer sua vida. Terá que abandonar a filosofia pessimista, a inteligência solteira do botequim e se declarar apaixonado. Terá que ser incoerente, contradizer fundamentos inegociáveis. Terá que rasgar a certidão negativa, a proteção bancária, os manifestos de aversão ao casamento e filhos.

Não dá para ser esperto sempre. Não dá para ser experiente sempre. Don Juan e Casanova também se quebraram. Napoleão e César também foram derrotados na intimidade. A ingenuidade é um poder terapêutico. Nada pode ser mais traumático e mais libertador dos costumes. É um instante definitivo e raro no relacionamento. Quando confiamos que será diferente, que somos eleitos por uma constelação de símbolos e casualidades, quando desistimos das armas e das reservas para se apresentar absolutamente disponível e vulnerável. Não há mentiras e formalidades, frases espirituosas e comentários sarcásticos. Há apenas uma burrice infindável, o beiço e a intenção de se entregar para uma mulher seja como for.

Pena que a ingenuidade tem que acabar mal. Caso contrário, não era ingenuidade, era sabedoria.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A CHUVA É FRIA PARA TODOS

Arte de Osvalter

Quem lucra com a chuva é taxista. Os usuários de ônibus não suportam as poças, os pedestres se veem ameaçados pelos carros chapinhando no meio-fio, os idosos se perdem entre o guarda-chuva e a bolsa.

Nada como uma tempestade para criar preguiça. As xícaras fecham suas asas, as casas trocam suas chaminés pelo prefixo luminoso.

Meia hora de chuva e Porto Alegre é um hidrante aberto. O Arroio Dilúvio conversa com o Rio Guaíba, as árvores pesam uma segunda primavera.

Chuva é velório, a cidade morreu. Chuva é o Apocalipse encenado no jardim de infância.

Os únicos que estão faceiros são os taxistas. Os carpideiros do trânsito. Os agentes funerários das rótulas. Os garçons dos semáforos. É coçar o cotovelo e o motorista encosta. O ato de secar o rosto no outro lado da rua é compreendido como um pedido. Cuidado com os gestos, o reflexo da água é mais um retrovisor do taxista.

Os táxis vermelhos circulam encostados no lotação. Lotam as vias. Andam em ziguezague como uma ambulância. Ruidosos e preferenciais.

Precisaremos telefonar para três pontos com o objetivo de vencer a linha ocupada. O atendente dirá que o táxi vai demorar um pouco. Aqueles veículos que vinham em cinco minutos em tardes ensolaradas triplicam atrasos com o toró. Tão complicados como agendar consulta na Previdência. Tão disputados como autógrafo de Paulo Coelho.

Era uma de minhas três certezas na vida. Confiava que a categoria tirava o atrasado, fazia caixa, enriquecia com os sapatos encharcados dos clientes.

Mas a data mais melancólica do taxista é quando chove. É o temido dia do PF (Porta Fria). A central o convoca para um endereço, ele chega lá, estaciona na frente, espera, nenhum sinal do passageiro, desce para verificar o que aconteceu, toma umas pancadas nas costas, molha a camisa, aperta o interfone, ninguém atende. Já não sabe se fica ou parte para outra. Preenche as palavras cruzadas do jornal, liga para o rádio, cruza as pernas, pede uma decisão, desce de novo, aperta o interfone, se tiver sorte alguém atende e avisa que o responsável já foi.

De seis chamados, quatro desistem. A maior parte dos pedidos entra no vácuo. Os desesperados mudam de ideia, arrumam um jeito mais rápido de sair. A ansiedade aceita qualquer socorro e trai a confiança da palavra. Ninguém desmarca ou formaliza a dispensa. O taxista pode atravessar extremos à toa, gastar gasolina e não receber nenhum pagamento.

O sindicato teme temporais. Os empregados do serviço tampouco desejam trabalhar, desligam o taxímetro de suas personalidades.

Descobri a verdade com o Zé do bairro Petrópolis, no momento em que caía o mundo na varanda. Ele percorreu três quarteirões comigo. Fui buscar minha filha Mariana na ginástica. Ficou com a cara feia, amarrada, pela corrida curta. Quase a explicar que custou mais para vir do que para me levar.

— Só isso?
— Só, Zé, pelo menos foi uma porta morna.


Crônica publicada no site Vida Breve

OFICINA HOJE

Arte de Escher

Último dia para inscrição no curso Blog Literário, que começa nesta quarta (20/1), no Espaço Cultural Clínica Verri (rua Tobias da Silva, 267/506). A proposta é abordar questões como o cuidado com a linguagem, a revisão e sequência de textos, além de destacar a necessidade do foco e envolvimento com a história. A partir das aulas, pretendo ainda trabalhar as diferenças entre os gêneros literários e discutir experiências que poderiam resultar em textos para as publicações online.

As aulas, promovidas sempre nas quartas e quintas-feiras, seguem até 4 de fevereiro, das 20h30 às 22h30. Inscrições são realizadas pelo fone (51) 3022-4444

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

RONALDINHO, BOYAME!

Mesmo nas férias, o futebol não reduz o ímpeto da fofoca.

Rolo Compressor escreve sobre Ronaldinho Gaúcho e defende seu nome para a Copa da África.

"O sublime é a insistência do dom. Ronaldinho tem a centelha perturbadora da vocação. O desequilíbrio da movimentação, talvez porque ele drible a si mesmo antes do oponente. Sei lá direito o que significa e como acontece. Alguns jogadores provocam admiração, ele produz o calafrio. Um suspiro emendado, interminável. O goleiro inglês Seaman da Inglaterra entende disso. Algo que supera a compreensão, que não é aplicável como regra."

Leia o texto na íntegra.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

MÁRTIR


A cadeira de balanço volta a embalar dúvidas amorosas.

Esposa diz ao marido que não o quer, mas ele não acredita, bate o pé e sente que ela ainda o ama. O que fazer?

Confira o que pensa o Consultório Poético.

A verdade não usa elevador. Escada por aqui.

sábado, 16 de janeiro de 2010

O PINTO DO ALIENÍGENA



Cinema é conversar depois dele. Com meu filho Vicente, 7 anos, recapitulamos as cenas mais engraçadas, os achados do roteiro, chegamos até a cotar o desempenho dos personagens de animação. É engraçado. Entramos numa cafeteria como num bar de faroeste. Só falta a bota de cano largo. Pedimos duas doses de café com leite. Usamos uma voz grossa, distorcida, de Johnny Cash. Largamos nossos bonés na mesa, virados para cima, para mostrar a intenção de paz. Fixamos os olhos um no outro, já entendendo que o homem dá a mão quando se deixa olhar.

Somos adultos no amor. É preciso muita infância para ser adulto no amor. Apesar da cumplicidade, ainda desvalorizo seu raciocínio e omito as passagens que considero intrigantes. Ele sempre me devolve. O filme era Planeta 51, em que um astronauta pousa numa terra povoada por alienígenas simpáticos, com duas anteninhas na cabeça. O detalhe: o humano é, na verdade, o alienígena, o invasor de uma pacata cidade de carros voadores. Seus traços diferentes assustam aos mais ardentes adoradores de ficção científica daquela galáxia.

- Pai, quando o alienígena vê o astronauta nu diz que ele tem a antena em outro lugar.

O susto não foi sua frase, e sim a gargalhada. Sua risada indica a experiência no assunto. Presumi que o trecho tinha passado em branco. Foi rápido demais, como pescou? Ele me deixou preocupado. No fundo, não é que meu menino seja precoce, eu é que sou lento. Na maioria das vezes, os pais fingem que o sexo tem a mesma representação proibida e secreta de sua criação e mantém um boicote de palavras. Antigamente discordar era desobedecer. Hoje discordar é respeitar. Há a queda da autoridade paterna e materna de antes, não dá para afirmar que é assim e terminar o papo e não se discute mais. Muito menos mandar a criança para o quarto. Não há como educar por ordens. O que existe é influência, orientar e apresentar uma argumentação realmente eficiente. Sentar e detalhar, com paciência e disponibilidade, se possível com Power Point.

O filho não desistirá com contos de fadas. Ele quer o conto de fadas e a realidade para comparar.

Após bobear por um lapso de cinco minutos, confessei que era a minha piada favorita. Levantei a xícara, concluindo que não tínhamos mais nada para tirar do episódio. Meu filho sabe o que é sexo e como se faz, tudo bem, não ficarei com inveja dele, mesmo descobrindo que as cegonhas não entregavam os bebês somente aos nove anos. Mas ele retomou a sequência:

- O estranho é que se o alienígena repara que a antena do humano é na cintura, onde é o pinto do alienígena?

Pior é que eu não tinha alcançado esse desdobramento. Vou assistir de novo ao filme.


Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 72, Número 194
Janeiro de 2010

TWEETS NA ESTANTE

Carpinejar lança livro apenas com frases de seu twitter

Leonardo Vinhas

Fabrício Carpinejar, escritor e educador gaúcho, tinha 13 livros publicados (Um deles, Canalha!, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Contos/Crônicas em 2009). Agora são 14º, e o 14º veio das frases postadas em seu perfil no twitter. Adequadamente intitulado www.twitter.com/carpinejar (Bertrand Brasil), a obra é uma coletânea de suas frases diretas e cheias de efeito não premeditados. "Se eu me lembro de um sonho, é certo que vou piorá-lo"; "Procuramos sempre justificar vontades sórdidas com motivos nobres"; "O amor é um susto que não perde a graça" e outras.

A Imagine, Carpinejar expôs sua visão entusiasta e singular do microblog.

A concisão dos 140 caracteres funciona mais contra ou a favor da poesia?
A favor. Um dos principais poemas do italiano Giuseppe Ungaretti tem 20 caracteres: M'illumino d'immenso (Ilumino-me de imenso). Não é uma maravilha? Ainda sobram 120 caracteres de lona para o leitor se recuperar da porrada. Quem é confuso que escreva romance, terá todo o espaço do mundo para se alongar, quem deseja confundir escreva poesia, que é tirar espaço do leitor. O twitter é a nitroglicerina digital que todo o bardo ansiosamente aguardava. E eu que já me contentava com o torpedo, hein?

Por que compilar essas frases em um livro?
Para acabar com a desconfiança com o twitter (toda ferramenta carrega suspeitas em seu início), para expor meu lado frasista e bem humorado, para treinar meu epitáfio, para mostrar que a internet não substitui o livro, mas aumenta a excitação pelo papel. O livro é a única tomada que podemos colocar a mão e ainda sobreviver.

O Twitter virou uma compulsão para você?
Sim, uma obsessão pela melhor palavra, pelo melhor arranjo. Aquelas anotações sem eira nem beira, sem pai nem mãe, que não encontrariam sentido para um poema ou uma trama entram lá. É o mesmo que anotar um relâmpago. Somos injustos com a brevidade, parece que não tem credibilidade, esforço, seriedade. Livro sério tem que ser livro imenso. Faz favor, a chuva só escurece o que o relâmpago clareou. O twitter é o guardanapo dos bares virtuais. Não esquecerei mais de ligar para mim.

Seu filho Vicente também twita. É inevitável que as crianças tomem parte do Twitter?
É inevitável, mas os pais precisam que a convivência seja prazerosa e responsável. Quando meu filho entra na internet, ele sai para a rua. Preciso ensiná-lo a atravessar a linguagem, a olhar aos lados e cuidar com quem fala. Não é soltá-lo na rede e dizer: - Agora se vira. Isso é preguiça. Serei pai dele neste e em qualquer dos seus mundos.

Publicado na Imagine
Revista da TVA
Número 8, Janeiro de 2010
Seção Chat, Ps. 10 e 11

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

FOBIA DAS FOBIAS

Arte de Osvalter

O ansioso tem direito a três fobias. Mais do que isso, é ambição e vira doença.

Eu mesmo é que determinei a medida para não depender de especialistas. Sofro por antecipação, o que me põe a ensaiar a cena para diminuir o sofrimento. Só que organizo eventos para os atos mais minúsculos, dobrando o martírio no fim das contas. Ao invés de sofrer na hora, sofro um dia inteiro pensando na hora que vou sofrer. O incômodo passageiro é um desconforto permanente. Banalidades do cotidiano geram desproporcional tremedeira. No intuito de preveni-las, eu me canso em hipóteses pessimistas, desculpas furadas e boicotes.

Carrego uma postura catastrófica. Sou dramático nas amenidades, sóbrio nas tragédias. Sinto o pânico no lugar errado e no momento errado. Serei tranquilo num deslizamento, numa enchente, num incêndio. Mas perderei a lisura ao não encontrar um livro em minha biblioteca. O fóbico não é o que usa uma lupa para ampliar o tamanho das coisas, mas fixa a lente com tamanha insistência que acaba queimando o que vê com o reflexo do sol.

Meus medos são modestos. Exótico é o Roberto Carlos, que somente executa curvas à direita ao volante (chegará sempre a Brasília).

Irreverente é o compositor Arnold Schoenberg, oposto do Zagallo. Sofria de triscaidecafobia, pavor do treze. Seus raros erros estão concentrados no compasso desse número.

Estranha é a poeta Emily Dickinson. Permaneceu vinte e cinco anos reclusa em sua residência em Massachusetts. Consta o registro que saiu duas vezes do quarto para visitar o oftalmologista.

Existem fobias para qualquer drama. Não há limites no céu. Fobia de estrelas (siderofobia), por exemplo. Imagine o neurótico, que mora sozinho com o cachorro e teria que levá-lo para mijar. Olha a janela, repara o céu espocando brilho e lamenta: hoje não Rex, aguenta aí!

É um museu infindável de opções. Um playground masoquista. Fobia de ficar sentado (tassofobia), que atinge grande parte dos espectadores de Gerald Thomas; ou fobia de espelhos (isotrofobia), como feio deveria possuir, mas desperdicei a chance de cativar a mania na infância. E fobias terríveis, absurdas, indesejáveis inclusive aos inimigos, como de nudez (gimnofobia) e de sexo (genofobia).

Minhas dificuldades ainda não possuem nome científico. Uma delas é dar ré num carro no estacionamento lotado. Que tal apelidar de refobia? O globo ocular distorce a pacata garagem numa jamanta pré-histórica. Dezenas de veículos balançam nas costas do animal, que rosna e me ameaça. Entro na festa ou no restaurante em pânico, antecipando como me livrarei da manobra. Não solicitarei ajuda, é certo, o fóbico não confessa o que incomoda por vergonha. Suportará – em segredo – as alucinações. Tem consciência do ridículo de seu receio. A absoluta incapacidade de nomear engrandece o obstáculo. Ao mesmo tempo em que se cala, pondera que o ambiente inteiro repara nele e aguarda o vexame. Suará frio, umedecerá o rosto no toalete, não conversará nada que preste.

A segunda complicação comigo é a faca no café da manhã (proponho a alcunha de manteigageleiafobia). Meu pai conservava o ritual de me agradar e preparar bolachas com geléia de morango. Antes colocava manteiga em seu pão. Não mudava a ordem do gesto, muito menos limpava a lâmina na transição dos potes. Eu detestava manteiga. Comia a contragosto os resquícios brancos na crosta dura de sal, sem a mínima capacidade de reação, de falar um simples e educado “deixa que eu faço”.

Eu vejo que terminei fóbico pela independência. Sendo mais claro, sou dependente pela ilusão de independência. Acredito que ninguém tem condições e entendimento para me socorrer. Muito menos eu.

De todos os males, o que não suporto de verdade é que ofenda os inofensivos hábitos de Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Fóbico é um chamado carinhoso e me permite continuar vivendo.

Quem diz que não estou contraindo a fobofobia, o medo das próprias fobias? Já seria um amadurecimento.




Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

MEU ANJO ESTÁ COMENDO

Arte de Marc Chagall


Quando estou triste, enfrento um impasse: não sei mais por quem estou chorando. Perco a página, a música. Perco onde estava, o endereço da frase. Não localizo o que procurava. Tudo geminado. Igual. Como um bairro que já foi favela. Casas grudadas, com a mesma pintura e inclinação dos telhados.

A mão não acende mais suas unhas. A ausência de sentido faz com que o passado seja preguiçoso. Puxo o que é mais recente, o que aconteceu agora, como um gole de café e um texto. E nada me serve.

Não me interesso pelas roupas que uso, pela próxima refeição, pelos boletos bancários. Meu luxo é o silêncio. O desejo foi despejado. Não existe sequer o bocejo, a dormência vem desacompanhada.

Talvez não morra porque acredito que não serei lembrado. Queria ser lembrado o suficiente para vingar todas as vezes em que esqueci de mim. Não haverá alguém me preservando, insistindo, fazendo luto, batendo nos meus pulsos. O luto nunca vai durar mais do que uma morte. É um obituário, uma missa, um mal-estar, uma saudade, uma nostalgia e uma pedra.

Agarro-me na insuficiência respiratória como uma rédea. Até onde ela pode ir? Até onde posso soluçar? O desespero é uma cadeia exata de movimentos, uma máquina fabulosa de nervos saltando e contrações provocando as dobras. Não seria capaz de repetir numa aula de ginástica. Contorço os ombros para aumentar o desconforto.

Sofrer já é uma atividade física: o pulmão assobia. O mesmo chiado de praça. O barulho das correntes do balanço segue sem mim, sem ninguém balançando. Um momento; e o corpo não está mais lá, mas seu impulso.

Ao falar, não me escuto. Simplesmente porque não me reconheço. O timbre fica infantil quando choro. Nunca vi um adulto chorar como adulto.

Encontro uma esquisita felicidade na fraqueza. A desistência é parecida com a esperança. Posso levar uma como se fosse a outra e perceber a confusão tarde demais. E não há como reclamar e devolver uma desistência usada.

O instrutor do desespero repara que parei um pouco, tomei ar e pede que eu prossiga com os exercícios. Pode ser mais fraco, Fabrício, vai! Levante mais lembranças, grite a cada golpe, apague lentamente a vontade de viver. Os cílios ainda estão secos! Vai, Fabrício, pode sofrer mais! Somente isso que consegue? Cadê a renúncia? Cadê o sacrifício?

Hoje eu não me sinto feio, eu me sinto triste. Não dá para ser os dois ao mesmo tempo.

Nem me ofender tem mais graça. Quase estou rindo dentro do sofrimento. Dentro da mais absoluta dor, há uma risada. Pressinto. Há uma gargalhada sonora, límpida. Um riso que deve trazer câimbras. Difícil é chegar lá sem enlouquecer. Não conheço ninguém que voltou para contar a piada.

Há uma gargalhada no fundo, lembra um zumbido de abelhas, ou o chiado do balanço, ou o pulmão baqueando. Estou longe. Como chegar mais perto? Como?

Uma carta tem sempre um nome para começar, eu tenho apenas meu nome para terminá-la.

sábado, 9 de janeiro de 2010

FLORISTAS DO MAL

Arte de Magritte


Tenho rinite alérgica. Sou daqueles que não dependem do seu bom gosto, mas da escolha dos outros. Como um time que nunca será campeão pelas suas pernas. Aguarda resultados paralelos para conquistar o campeonato. Meu olfato é tênue. Todo cheiro excessivo e adocicado, fico indisposto. Vêm tosses gritadas, enxaqueca e tonteira. Estarei imprestável para o resto das horas.

Pode ser minha noite perfeita: eu me arrumo com rigor, escolho o restaurante predileto, solto frases engraçadas, minha namorada já elogia o romantismo do enredo, a urdidura da cena. Sabe aquele momento em que descerei a lomba com a bicicleta das palavras, nem preciso mais pedalar? Comigo, não funciona. Tudo acabará porque, na mesa ao lado, janta uma senhora com duas camadas de um perfume que lembra talco líquido. O corpo adoece, mergulha em depressão respiratória, não me obedece mais. Tento não respirar, avermelho as bochechas, escapa a concentração e o verniz da cafonice mergulha nas terminações nervosas. O que me resta é congelar o relacionamento para o dia seguinte. Claro que o sexo não terá o mesmo gosto, mas fazer o quê?

Meus vexames são inspirados. Vivo sendo boicotado.

Começa com um vizinho que usa desodorante como creme hidrante. Por onde anda, deixa um rastro insuportável. Não deve ser spray, mas aquela embalagem que se aperta como pasta de dente. Com um furinho na tampa. Conheço desodorantes econômicos e versáteis - empregados também como detergentes. É o caso dele. Não vou mencionar a marca para não fazer merchandising. Nome do diabo não se fala. Demoro um bom tempo para tirar a sensação de secura da boca. Ele transforma a rua numa saída de construção civil.

A romaria prossegue no elevador do emprego. No último instante, quando a ascensorista suspira diante do painel iluminado, entra um executivo em decomposição perfumosa. Com uma fragrância francesa, cara, dada pela esposa para espantar a concorrência e indiscrições orais. Se boicotar o presente, seu casamento termina. O azar é que subirá ao meu andar. Prefiro o cheiro de naftalina e da Minancora. Ao menos, representam cheiros familiares.

Repito o martírio no teatro e no cinema. Desde a infância, o fede-fede me procura. Larguei sessões pela metade. Coleciono filmes inacabados, gafes, crises histéricas de espirros. A educação é cheia de pudores e não pretendo atrapalhar os demais espectadores.

A coriza me aniquila. Inviável conversar com o nariz em prantos. Não há como ser heroico com coriza. A masculinidade morre na primeira fungada - é o macho derretendo. Tuberculose, pneumonia, febre amarela, doença de verdade não diminui a hombridade. Envolvem complicações de saúde que nos põem em luta, num estado primitivo de animal combatendo a fraqueza. Seremos sobreviventes. Seremos mais nobres pela batalha. Receberemos medalhas de honra ao mérito.

Ao abandonar o hospital, ouviremos comentários viris dos familiares. "Ele venceu a tuberculose, acredita?"

Traremos uma tristeza no olhar, um abatimento que confere mais legitimidade ao riso. A sedução requer tristezas antigas. Não conheço sedutor sem dor. A delicadeza deve estar acompanhada de um vento agreste, hostil. Nada como uma cicatriz ou uma ferida para acentuar o mistério. A incompreensão colabora para a malícia. Um homem somente é confiável depois que sofreu.

Coriza, por sua vez, não atrai seriedade. É uma bobagem. Produz unicamente constrangimento. Pede lenços de papel. Quer algo mais desmoralizador do que carregar uma caixinha de guardanapos no bolso do casaco?

As mulheres não aceitam como desculpa. Confundirão nosso bigode com buço. Homem com coriza é fraco demais para o acasalamento, riscado da cadeia alimentar.

- O que deu errado com ele?
- Foi a coriza!

É igual a espalhar a fofoca de que o cara broxou. Coriza vem de um resfriado. E resfriado é a broxada da gripe. O sujeito não conseguiu nem uma gripe, teve resfriado. Sua reputação desaparece.

As essências desencadeiam pavores diários. Comigo, as flores não são poéticas, são carnívoras.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

DUPLA FALTA DE PERSONALIDADE

Arte de Francis Picabia


A namorada desconfiou quando desfilei com a roupa do seu irmão. Passaria a semana em seu apartamento e preparei uma mala de intercâmbio para diversificar os turnos. Dez camisetas, calças, camisas de festa, tênis e sapatos. Não sujei praticamente coisa alguma.

Por que eu não saía com minhas bermudas?, ela quase me perguntava. Escolheu suspirar no lugar. Para ser sincero, bufou. Bufar é um suspiro com raiva.

Durante cinco dias, fardei-me com calção e camisetas esportivas do Gustavo, que tem estatura e peso iguais ao meu e estava em Florianópolis. Não tive sensibilidade para notar o quanto é desagradável. Não é excitante me enxergar passeando no sofá como um parente. Quase abrimos os álbuns para rememorar os pais em comum.

Lembro que pegar a roupa dos outros é relaxante, reinauguramos as pernas e os braços nas mangas e bainhas fora do nosso tamanho. O primeiro empréstimo foi numa festinha aos cinco anos. Na afoiteza do parabéns a você, naquele amontoado selvagem por um lugar perto das velas, pestinhas derrubaram guaraná na minha camisa branca de babados e o dono da casa me alcançou (forçado pela mãe) um conjunto azul de marinheiro. Eu que empregava o mesmo escudo de Elvis em todo encontro social, agora mudava a fantasia. Um alívio brincar de morto.

Mas não é avareza, muito menos diversão nostálgica a utilização de um armário suplente. Eu me levanto mais cedo do que Cínthya. Para não acordá-la, fecho a porta e me despeço dos meus objetos. É sempre um incêndio, não há condições de carregar nada, folga para escolher o que é mais importante nas próximas horas, não transporto sequer os chinelos. Pulo da cama e escapo das labaredas dos seus ouvidos. É insano, porém necessário. Ao aparecer para recuperar um livro ou um casaco, vou derrubar uma xícara, arrastar o abajur, pisar em gnomos. Sou muito atrapalhado para fazer silêncio.

Ou fico seminu até o meio-dia ou roubo as peças do aposento vizinho. Nem adianta explicar para ela. Ela jura que não desejo gastar meu figurino. Está braba comigo porque não sou honesto, porque escondo as verdadeiras intenções.

A sorte é que sobra resistência para defender meu ponto de vista. Convenço pela repetição dos argumentos. Repito e repito até enlouquecê-la. Suponho que ela nunca aceita as explicações. Muda de assunto, mas não aceita. Acredita que é exagero, que é uma desculpa furada, que não respeito o inconsciente.

Colocando de novo minhas roupas, com saudades dos botões e das cores extravagantes, aceito que ela está certa. Falsifico origens, confundo para simular profundidade.

Entre nós, confesso que meus mistérios são óbvios. Fazia tempo que desejava botar as roupas de seu irmão. Agora posso voltar a ser o namorado dela.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

DOIDEIRA DESCARTÁVEL

Arte de Osvalter

Tomei um porre e não lembro nada.

Depois de toda bebedeira, adotei essa desculpa, mas eu me lembro de tudo. Sempre me lembrei. Até do que não vivi, guardo intactos os dilemas um pouco antes da atitude. Lembro com quem transei, como transei, a cor da calcinha dela, da arruaça que aprontei na festa, da minha dança vampiresca no balcão do bar que assustou quem jurava que me conhecia. Lembro que estava especialmente desafinado no karaokê, que trocei de um policial, quase fui preso, que mijei num hidrante pensando que fosse uma árvore, que beijei aquele boneco de vento do posto de gasolina.
A amnésia é uma invenção moral. Para evitar constrangimentos, para prevenir explicações, que são a parte cansativa da aventura. É totalmente irritante o inquérito após a embriaguez: dizer o que, como, onde, para quê?

A convenção se consolida na adolescência quando os pais perguntam como estava a festa enquanto o banheiro exala um cheiro familiar e terrível de vômito. Não estão perguntando sobre a festa, doce ilusão, mas sabendo do estrago e testando nossas histórias.

Desde lá, desprezamos as reminiscências pela resposta consensual e simpática: não me lembro. O assunto termina ali. Todos acreditam porque também possuem coisas terríveis para serem esquecidas em seu passado. É uma troca: não lembra o que fiz e eu não lembro o que fez.

Às vezes gostamos de beber mais da conta, para a mentira ser menos mentirosa. Raramente o excesso funciona. Pode estragar o corpo, não a memória. Eu somente me esqueço em coma alcoólico — e olhe lá.

Mais simples alegar que perdemos os arquivos, que o disco rígido foi corrompido. Se a gente diz que recorda, haverá algum chato perguntando o motivo de tanta agressividade. Há uma crença de que ninguém se destrói sem motivo. Bobagem. Eu me destruo para encontrar um motivo.

Somos cínicos, não ingênuos. O cinismo é uma ingenuidade perversa.

Talvez seja uma prova de companheirismo, para os amigos descreverem nossas peripécias com detalhes, como se a gente não estivesse presente e as circunstâncias fossem inéditas.

A graça da brincadeira é simular o total desconhecimento dos últimos instantes da própria vida. Ainda comenta-se com ceticismo: “Não entendo onde estava com a cabeça”.

Os amigos adoram editar nossos melhores piores momentos. O curioso é que ninguém é louco sem testemunhas. As mais cruéis bebedeiras partem de um cenário planejado. Carregamos os fieis escudeiros a tiracolo, para assistir a desintegração da personalidade. Premeditamos, portanto, o vexame. Isolado da audiência, apenas choramos e manchamos o travesseiro. A dor é palhaça quando desfruta de público e se sente segura entre conhecidos. Analisamos o lugar da queda, para verificar se é confortável, e se haverá pessoas do bem para nos amparar e nos carregar no colo. Não é assim?

Diria que o exagero é calculado: não acontece quando somos estrangeiros numa balada. Não é inconsequente como ousamos alardear. A explosão não se desenrola à toa, ao léu, surgirá em locais prediletos e já frequentados. Olharemos as portas de incêndio para atear fogo na garganta.

O bêbado é uma agência de notícias. Não lhe interessa beber, porém ser visto bebendo. Não é didático, é redundante. Avisa que vai beber todas. Em seguida avisa que está bebendo. A cada copo virado, nos mantém informados de que está bebendo mesmo. No decorrer, vai concluir que está bêbado, aciona o saquinho de risadas do bolso e não para. Mesmo bêbado, continuará bebendo para reforçar que está bêbado.

Desesperados são os que liquidam a garrafa, solitários em seu apartamento, longe de qualquer encenação. Os exibicionistas etílicos não passam de carentes.

A embriaguez seguida de desmemória é uma armação. Desconfie. Queremos enlouquecer um dia, não manter a loucura durante a semana. Trata-se de uma doideira descartável, como seringa, camisinha, absorvente. Aprontamos e nos aprumamos rapidamente para seguir o trabalho e continuar encarando o chefe. A onipotência não está em fazer, mas em fingir que ninguém viu e que não lembramos.

O esquecimento não é para qualquer um. Tem que merecê-lo.







Crônica publicada no site Vida Breve

OFICINA DE BLOG LITERÁRIO



Seis encontros
Quartas e quintas
Dias: 20, 21, 27 e 28/1 e 3 e 4/2
Das 20h30 às 22h30

Valor: R$ 300,00


OBJETIVOS
Trabalhar a literatura em blogs, com postagem de textos, revisão e criação de perfil. Valorizar o cuidado com a linguagem, a necessidade do foco e do envolvimento com a história. Mostrar as diferenças entre os gêneros e discutir as experiências que podem render boas tramas e assuntos. Preocupar-se com a sequência de textos e o amadurecimento do estilo. A partir da conversa em grupo, vencer o medo da exposição, fortalecer a solidão criadora e superar tabus e o senso comum.

POR QUÊ
O blog é um laboratório de escrita criativa. Perdeu seu estigma de catarse e escrita sentimental para adquirir o status de uma janela fundamental para a comunicação com os leitores. Muitos autores passaram a ter chance numa editora a partir do que publicavam na rede, do exercício laborioso e continuado de ficção.

CASE
O blog virou uma vitrine para a descoberta de talentos pelas editoras. É o caso da paulistana Fal Azevedo. Após dois livros independentes, e de mandar originais para as editoras sem resposta ou recusados, terminou descoberta pela Rocco e recebeu convite para publicação em função do estilo carismático desenvolvido no Drops da Fal. Pelo selo, editou o romance "Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite", uma narrativa fragmentada e híbrida, carregando traços característicos da internet.

O PROFESSOR
Fabrício Carpinejar, 37, publicou quatorze livros, venceu prêmios como o Jabuti 2009, por Canalha!, e Olavo Bilac 2003, da Academia Brasileira de Letras, por "Biografia de uma árvore". Representa um dos mais antigos blogueiros em atividade ininterrupta no Brasil, postando crônicas desde 2003. Seu novo lançamento www.twitter.com/carpinejar (Bertrand Brasil) reúne aforismos publicados no twitter.

INSCRIÇÕES
E-mail: atendimento@clinicaverri.com.br
Telefone: (51) 3022.4444
Clínica Verri
Rua Tobias da Silva, 267/506, Moinhos de Vento, Porto Alegre)

EPÍSTOLA AOS BLOGUEIROS

Fabrício Carpinejar

Nunca invejei Santo Agostinho pela sua salvação. Não conseguiria repeti-lo. Guarda-se a impressão de que ele quis se livrar da danação no ombro do Pai. Olhando de perto, ele foi mais corajoso do que conformista. Antecipou o inferno. Não esperou para sofrer na outra dimensão. Pagou à vista o inferno. Converter não é encontrar Deus, é encontrar o inferno.

Blog é prova de resistência. Um big brother ao avesso dos gêneros literários. Em vez de ser conhecido, corresponde a mergulho no anonimato. Distinto da noção do senso comum de que se trata de um lugar para aparecer. O resultado final (a possível badalação de um endereço virtual) não expõe a realidade. Os exibidos foram antes tímidos, os extrovertidos foram antes introvertidos. É a mais dolorida experiência editorial. O mais severo teste vocacional. Uma ferramenta do diabo, capaz de sugar sua vida ou sua aspiração.

Indica a fronteira entre o amador e o escritor, entre o diletante e o renitente, entre o curioso e quem não consegue se afastar da compulsão narrativa. O amador cansará nos primeiros meses. Vai deduzir que não vale a pena o trabalho, que ninguém lê. Uma tortura postar textos durante três meses e não receber nenhum comentário. São os 40 dias do deserto, com as tentações sobrevoando o teclado. "Então Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio e, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, teve fome" (Evangelho de Mateus, capítulo 4, versículo 1).

Você pensou que aquilo seria a glória instantânea. Caprichou na redação, no humor e nas perspectivas singulares de captura do cotidiano. Mas o único que entra no site é você. Chega a esbarrar consigo entre tantos acessos e atualizações. Uma miragem. Cada texto é um quarto vago. Procura contornar o drama. Manda um aviso de postagens para os amigos; manda um aviso de postagens para os desconhecidos, catando endereços aleatórios. Nada mais o separa de um Spam. Recebe avisos ásperos: "não o conheço" ou "favor me excluir da lista". A humilhação não começou. O desespero o obriga a fazer atos impensáveis: entrar de computadores diversos para fazer com que o contador se mexa de alguma forma. Assim como um atacante chuta a bola para as redes alheio à marcação do impedimento. Para se livrar do azar. Ainda que esteja quebrando uma das regras básicas do jogo e leve um cartão amarelo. Não há nem juiz para lhe dar cartão amarelo.

Percebe que lançou um texto com um erro gravíssimo de português. Estava na rua quando lembrou a indecisão ortográfica, longe de qualquer terminal. Corre para uma lan house, consome seu suspiro sem sentir o gosto, arruma e conclui que tampouco alguém reparou.Decide escrever qualquer coisa que continuará sendo qualquer coisa. O isolamento do blog produz alucinações. O contador de visitas parece uma bomba-relógio: anda para trás. Mas tortura é quando finalmente recebe um comentário. Alegria aflita para abrir a janela, quem será? quem será?, descobre que partiu do pai ou da mãe, solidário com sua desgraça.

Sua personalidade passará a se dividir, e não multiplicar como desejava. Sede de laranjas. Laranjas! Sem pudor, cria pseudônimos para deixar comentários (o blog, pelo menos, obriga que seja seu próprio leitor). Diverte-se no sofrimento ao inventar formas de agradecimento pelos textos. Não economiza elogios ao estilo. Estará perto da internação quando se convence de que aqueles comentários não são seus e ainda responde aos e-mails falsos. Hora do soro!

Escrever na rede é uma tentativa de suicídio. Um aviso escandaloso da nossa fragilidade. Pensando bem: publicar é um suicídio frustrado. Quando o ímpeto de sair da vida é usado para entender a própria vida e as dificuldades enfrentadas pelos demais autores.

Uma das virtudes do blog é sua provação. Agüentar os contratempos no osso. Ver que não é um elogio que o fará continuar, muito menos uma crítica que o fará desistir. Que nascer para a letra é amar a insuficiência. O escritor se sucede progressivamente. Melhora. Estar sozinho é ainda estar povoado. Povoado por dentro. Pelos personagens, pelas histórias familiares, pela observação aprofundada dos seus arredores. Só quem foi fantasma um dia poderá alimentar seus fantasmas. Procura-se um reconhecimento externo e encontra-se algo mais preciso: a afirmação pessoal na persistência. Procura-se lá fora o que já se tinha. Como diz Santo Agostinho: "Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim."

O esforço de sair da solidão ajuda curiosamente a fortalecê-la. Compreende que não escreve para completar um diário, ou para repetir sua história, se fosse assim não contaria com assunto para atualização semanal, mesmo que desfrutasse uma trajetória acidentada e heróica como a de Hemingway. Escreve para duvidar e se banhar na luminosidade da confusão biográfica.

Um texto postado é como um texto impresso. Mais fácil para localizar os erros, os tropeços, formar distanciamento. Confere uma maioridade na escrita, reforça uma postura profissional de jardinar e cuidar do verbo, de alterar a prosa e a poesia em nome da transparência e da fluidez. Há a formação gradual de uma assinatura, transmitindo uma visão de ser responsável por aquilo que se diz, de assumir honestamente as dívidas da boca. Organiza-se o rascunho, que é bem mais duro do que redigi-lo.

Não é fácil a rotina da blogosfera. Terá que superar vários fins, várias negativas, várias mortes. Superar a expectativa de fama pelo prazer do texto. Por isso, o prazer necessita ser mais forte do que a dor. O masoquista é o que gosta mais do sofrimento do que da carícia. O blogueiro é o que esquece a ferida pela alegria. A diferença entre guardar o inédito no blog e na gaveta: o blog é uma gaveta aberta.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

FILHA?

Arte de Lauren Hamilton

O casal é uma gangorra. Um dos dois precisa estar acabado para que o outro possa rejuvenescer.

É a minha vez. Bem que minha namorada tentou tirar o ranço de mais velho. A nostalgia é como uma gripe mal-curada. Qualquer resfriado e retorna o desânimo inicial.

Foi justo quando parei de dizer "no meu tempo", "na minha geração", "não somos da mesma época". Recuperava minha juventude ou disfarçava o peso com a irreverência. Controlava os impulsos saudosistas e as referências aos filmes, seriados e desenhos da década de 70. Mas fracassei. Venho me sentindo mais feio do que na minha infância e mais esquisito do que na minha adolescência, o que não é difícil conhecendo meu biotipo. Não é depressão; depressão pode ser tratada.

Entrei num período em que não me sinto admirado, confiante, independente. Experimento o vácuo de personalidade. Qualquer palavra é áspera, qualquer amor não é suficiente. O mundo inteiro passa ocasionalmente por isso, quem se aproxima dos quarenta passa todo dia. O primeiro choque foi na bilheteria do cinema. Uma espectadora me afofou como se fosse de brinquedo, parecia um garoto de programa. Faltou somente enfiar notas em minhas cuecas.

- Nas entrevistas na tevê, você é mais feio e mais gordo. Assim parece menos horrível.

Era na entrada do filme, desfrutaria de duas horas para apagar os resquícios do ataque. Comi um saco gigante de pipoca mais pela ansiedade do que pela vontade.

O drama eclodiu no primeiro andar do mesmo shopping. Circulava pelo supermercado com o Vicente, curtindo sua euforia de se antecipar à lista da compra e buscar itens nas prateleiras mais distantes. Uma leitora se esgueirou nas frestas dos refrigerantes e me fez cara de “achei!”; os traços sorridentes de coruja acordando a árvore:

- É o escritor?
- Sim, sou.
- Ah, é seu filho?
- Sim, é.
- Eu só lhe vejo com sua filha. Não o conhecia.
- Não deve ser, minha filha mora em Brasília.
- A gente sempre comenta como o amor de vocês é bonito. Vivem se abraçando, coisa que não é natural entre pai e filha.
- Não é minha filha, está errada.
- Claro que sim, tem cabelos negros, um pouco mais baixa do que você, gosta de vestidos.

No instante em que você é reconhecido como pai da namorada, dispense qualquer preocupação estética. Terminaram as pretensões. Pode usar suspensório, beber cerveja de roldão, sair de casa com polainas. Não há como piorar a aparência. Não se preocupe mais com a cintura. Aceite a velhice, a barba branca, a ausência de comunicação com os jovens. Morreu, agora é escolher entre ser enterrado ou cremado.

Tenho uma diferença de oito anos com a Cínthya (29), a senhora cumpriu o prodígio de dobrar a idade. Para ser pai dela, mesmo forçando a barra, necessitava da distância de 16 anos. Ou seja, ela calculou que minha idade girava em torno dos 45/50. Engatinho na crise dos 40, ela me convoca para pular etapas.

Já sofria em silêncio ao ser confundido como o primogênito de casa, sendo que sou o terceiro dos quatro. Aturava quando pediam minha carteira de identidade para comprovar a data do nascimento.

Ela não me questionou, concluiu. Diante de sua convicção, eu me enxerguei em desvantagem com o próprio passado.

É demais. Logo serei preso por pedofilia.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

POR QUE O TWITTER?

Arte de Miró

Porque o Twitter é a lápide do trivial.
Porque é educado avisar que não estamos no corpo e que já voltamos.
Porque devolvemos os peixes pequenos ao mar.
Porque sou conciso desde que assobiei.
Porque deixo reverências ao crepúsculo, que pode vestir árvores.
Porque o palavrão é curto e o medo é rápido.
Porque a preguiça é longa e precisa de poucas palavras.
Porque não sei dizer bom dia sem perguntar o que minha mulher sonhou.
Porque não sei dizer boa tarde sem perguntar o que minha mulher almoçou.
Porque não sei dizer boa noite sem rezar por ela.
Porque o espelho do feio é o retrovisor do carro.
Porque em toda a carteira há um vale a ser descontado.
Porque as informações importantes cabem num rótulo de cerveja.
Porque a grande obra passa a sensação de ter sido feita num final de semana.
Porque a boa ação me deixa mais envergonhado do que o pecado.
Porque a paixão não tem memória, não vai me prevenir para a próxima.
Porque amar é conhecer desconhecendo.
Porque odiar é desconhecer conhecendo.
Porque o que é bonito assusta, como a tempestade.

Porque um vizinho nunca será seu leitor.
Porque jazigos não podem ser alugados.
Porque meu pai tinha mais segredos no escritório do que janelas.
Porque é um modo de curar a paranóia, realmente estão nos seguindo.
Porque nos perdemos para despistar o passado.
Porque os anéis são a velhice dos brincos.
Porque o gemido é a alegria da dor.
Porque os gatos são câmeras pela casa.
Porque um bilhete de suicida tem que ser escrito todo dia.
Porque quando uma amiga está interessada em mim sente culpa e pergunta sobre a namorada.
Porque olhar é julgar as palavras e perdoar as aparências.
Porque a geladeira vazia tem mais luz.
Porque não nasci o suficiente para emprestar nascimentos.
Porque o samba está numa caixa de fósforos.
Porque não há como chorar sem fungar.
Porque fumar é o telhado do suspiro.
Porque as formigas ruivas são terra transparente.


Porque quando finalmente entender o corpo feminino não terei mais corpo.
Porque a esquina é o cotovelo da rua.
Porque os pássaros desaparecem de noite.
Porque o canto do galo é apenas seu grito dentro do pesadelo.
Porque os filhos podem fechar seu quarto a qualquer hora.
Porque sempre arrumamos uma despedida para festejar o retorno.
Porque um fio de cabelo de outra cor termina um casamento.
Porque guardamos o papel-presente para embrulhar a mudança.
Porque há livros que nunca serão lidos e sempre citados.
Porque o sonho dos pirilampos é dormir de luz apagada.
Porque a humildade do narcisista é conversar com o megalomaníaco.
Porque escrever não é desistir de falar, é empurrar o silêncio para fora.
Porque o romancista pode errar, o poeta deve errar.
Porque não preciso de mim para ser feliz.

Publicado em Pernambuco
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado
Janeiro 2010, Recife (PE),
p. 24

domingo, 3 de janeiro de 2010

GAY HETEROSSEXUAL

Arte de Jean Dubuffet

- Você é um gay heterossexual, Fabrício.
- Eu?
- Sim, um gay que gosta de mulher e só de mulher, essa é a diferença.
- De onde está tirando isso? Eu adoro futebol.
- Meu cabeleireiro também adora.
- Gosto de lavar carro e sofro com todo arranhão.
- Meu estilista também.
- Ai meu Deus. Você não me ama mais.
- Viu como é dramático? Qualquer coisa é uma ópera. Gay!
- Não sou nada. Não uso piteira para tragar as palavras.
- Olha aí, humor refinado, seu humor é gay, quem entenderia essas piadas?
- Está provocando à toa.
- Não, acho extremamente viril um gay ser heterossexual.
- Me mostra que sou gay?
- Lembra quando fez strip na última semana?
- Lembro, e daí, não gostou?
- Vibrei, sabemos, mas você arrancou a camisa, a calça, jogava para o lustre, para a janela, mostrava um desinteresse passional. Um furacão.
- E...
- No instante de retirar as meias, criou um novelo com as duas, como se fosse guardar na gaveta.
- Não me diz que é gay?
- Foi uma parada gay.
- Para de polemizar. Não posso ser gentil, educado, afetuoso e já me rotula.
- Conversa de gay, não recordo de marmanjo defendendo sua ternura.
- Sou vaidoso do amor, e daí?
- Pinta as unhas, corta o cabelo uma vez por semana, seu guarda-roupa é duas vezes o meu, adora lojas, é refinado, disposto a debater duas horas se leva uma echarpe ou não.
- Não vejo a vida com maniqueísmo: homo e hetero.
- Quanto tempo suporta uma mancha no tapete?
- Cinco minutos.
- O tempo para buscar o desinfetante, né?
- Quer uma prova de que sou inteiramente masculino?
- Inteiramente? Estranho, um gay é que emprega muito o advérbio.
- Deixa falar?
- Me diz qual a prova irrefutável?
- Eu tenho poncho.
- Gay não usa poncho?
- Vou mandá-la para o Analista de Bagé para acabar com essa frescura.
- Tudo bem, é um homem, um homem gay.
- Poderia arrumar seu brinco? Está caindo...
- Falei? Repara em tudo, comenta qualquer pessoa que passa, o jeito que ela se veste, o jeito que fala, tomado de uma maldade alegre.
- Falando mal dos outros é que aprendi a me criticar.
- Nunca tem fim uma discussão de relacionamento, emenda um problema no outro, não termina um assunto
- Acho que você estava acostumada com o desprezo...
- Está me ofendendo.
- Eu puxo seus cabelos.
- E, se encontrar um nó, desembaraça.
- É um detalhe.
- Observa agora sua quebradinha de quadril para afirmar que não é gay.
- Não é suficiente.
- Combina cueca com camiseta. Homem não escolhe a cueca. Pega a primeira que aparecer pela frente.
- Não me convenceu. É capricho.
- Limpa a casa com entusiasmo, vocação maternal.
- É uma vingança porque canto ABBA na cozinha.
- Não me entenda mal, acho você um homem perfeito. Mais: o super-homem do Gil.
- Gilberto Gil, pretende me desmoralizar...
- É um elogio, porra!
- Parece um homem falando agora.
- Vá se danar.
- Descobri o que quer com essa conversa. Já transou com gay, acertei?
- Tudo bem, sua paranóia é masculina.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

ATAQUE SEDUTOR

Foto de Fabrício Carpinejar

Minha namorada tem um cãozinho. Cora. Branca, com o pelo fofo, graciosa, carismática. Não me estranhou nas primeiras visitas. Faço carinho forte em seu pescoço para mostrar autoridade. Quando ela me enxerga, dá piruetas, cambalhotas e aperfeiçoa uma mania bem peculiar de morder o rabo em movimentos circenses e repetitivos, como um helicóptero pousando.

É uma ginasta canina: apesar de mirrada (4 quilos) e de sua pequeneza de colo, pula meio metro na captura de brinquedos e ossos. Rápida, não ficaria atrás de um Grey Hound. Tem eficiência e comicidade, como Garrincha na linha de fundo. Seu andar lembra um desenho animado, com o movimento vesgo e embaralhado. Dribla a perna direita com a esquerda. Um andar fanhoso, que desperta piedade da pedra. Na hora de subir a escada, levanta as duas patas traseiras ao mesmo tempo, o que acentua a compaixão de manco. Transforma todo obstáculo em escadaria de igreja, toda caminhada em pagamento de promessa. O mistério lambe seus dedos.

Cínthya costuma levar a cadela na Praça da Encol. Acho que o nosso namoro evoluiu e poderia arrematar mais um grau de compreensão: partilhar o cachorro.

- Deixa?
- Não é incômodo? Não sei se é uma boa ideia...
- Sim, será divertido. Sim? Sim?
- Ok, tome cuidado ao atravessar a rua, ela é especial.
- Fique tranquila, espere em casa que a gente já volta.

No ano novo, colegas escrevem carta de intenções, o que deve ser feito para melhorar a vida nos próximos doze meses. Eu também, mas de segundas intenções e mastigo o papel para não sofrer constrangimentos. Passear com cão para seduzir era uma delas.

Debaixo de minha generosidade, escondia a astúcia de testar a Cora como chamariz feminino. Uma isca para pescar tubarões loiros e morenos. Fácil começar um assunto despretensioso com a mulherada sobre seus filhotes. Estão mais acessíveis do que nas baladas, onde é arriscado sobreviver ao exame rigoroso das amigas. Encontram-se leves na praça, vulneráveis, dispostas a confessar qualquer coisa sobre pet shops, efeitos de xampus e medicações, qualquer detalhe do cuidado animal. Nem um pouco dificultoso entabular um papo.

"Ai que lindo, que raça é?, como é bem cuidada, moram perto?, sempre vem aqui?, qual o signo do cão? e o seu?, mesmo?, eu faço igual, como temos afinidades!, me ensina a receita?, me deixa seu telefone para pedir conselhos".

Feito, não precisamos de mais nenhum pré-requisito a não ser amar cachorros. Tudo fica ainda mais excitante se os bichos decidem trepar em nossa frente.

Aprendi a cuidar da guia, a mantê-la próxima de mim, arrumei saco plástico destinado à higiene e parti na minha missão sagrada. Sentei no banco de madeira e aguardei o assédio. Porque não precisava me aproximar de ninguém, bastava aparecer no clube a céu aberto e juntar as sobrancelhas de responsabilidade. Quanto mais tímido, mais confiável.

Cora brincava com os cadarços soltos de meu tênis e, de repente, uma jovem morena e gostosa se aproximou.

- Que bonitinha, é sua?
- Claro que é, Cora.
- Qual raça é?
- Cusco, uma mistura com Terrier.
- Ah, você adotou?
- Meu coração não resistiu ao olhar carente dela.

(Já me projetava no cachorro, criando uma linguagem ambígua e indireta)

A conversa seguia exatamente como ensaiei, a moça tinha traços tailandeses, fogosos. Seu cachorro era um Jack Russel, de nome Rolo, raça que sinalizava um espírito de aventura.

Botei a Cora em meu colo, amansei meu nariz em seu focinho, preparando o agrado final, que geraria intimidade para confissões arrebatadas.

- Posso tocar?
- Sim, é mansa. Ela vai abanar o rabo de felicidade.

Seus dedos avançavam maravilhosos e torneados de anéis, as palmas abertas como uma escova. Quando ela foi tocar em suas orelhas, Cora produziu um salto fulminante, imprevisível. Sequer latiu antes do ataque. Não consegui contê-la. Com os dentes, puxou uma mecha da moça, gerando gritos afobados, gemidos histéricos e uma forçosa inclinação da cabeça.

Ainda ficou rosnando com o aplique arrancado. Salivando como um Fila albino em miniatura.

- Ela é horrível, você é horrível, não devem estar aqui. Vão embora.
- Desculpa, é a primeira vez que acontece...

Fugi do convívio correndo, proscrito do Bela Vista, ameaçado eternamente de desterro, proibido moralmente de frequentar o entardecer naquele lugar.

Não imaginava que Cora tivesse ciúme de mim.